Em seu terceiro filme, o autor e realizador Philippe Claudel confirma que tem talento e sensibilidade de sobra. Sabe criar personagens bem delineados, complexos, retrata o dia-a-dia deles e suas relações afetivas com esmero e é um excelente diretor de atores.
E que atores. Aqui, ele reúne os veteranos e competentíssimos Daniel Auteil, Kristin Scott Thomas e Richard Berry mais a jovem mas já experiente Leïla Bekhti.
Da mesma forma que em Há Tanto Tempo Que Te Amo (2008) e Tous les Soleils (2011), Claudel – que publicou vários livros antes de se dedicar ao cinema e dá aula de literatura na Universidade de Lyon – é o autor do argumento e do roteiro deste Antes do Inverno.
Como seus filmes anteriores, este aqui é um drama familiar – mas tem também uma dose de thriller que não havia nas duas obras anteriores. O filme abre com Daniel Auteil em plano americano, olhando diretamente para a câmara, que está fixa diante dele. Na verdade, ele está olhando para dois homens sentados diante dele – parece óbvio, de cara, que ele está sendo interrogado numa delegacia de polícia. Este é o diálogo:
– “Eu a tinha operado há muito tempo.”
– “Tem certeza?”
– “De apendicite.”
– “Segundo o legista, não há cicatrizes no corpo dela. (Pausa.) Foi ela que lhe falou sobre essa operação?”
– “Foi. Da primeira vez que me abordou.”
– “O que mais ela disse sobre ela mesma?”
O interrogado fala lentamente, faz pausas. Está visivelmente surpreso, diante de uma situação absolutamente inesperada.
– “Ela era estudante… Os pais viviam longe. Seu pai era… Posso beber um copo d’água, por favor?”
Paul, o protagonista, é um cirurgião workaholic, que não dá mais atenção à mulher
Corta, e rolam então os créditos iniciais, curtos – letras brancas sobre fundo negro. Ao final dos créditos, estamos em uma bela propriedade, um espécie de chácara, com um imenso jardim muitíssimo bem tratado. Um grupo de amigos está reunido festivamente ali para um almoço. Os donos da casa são o homem da sequência de abertura, Paul, e Lucie (o papel de Kristin Scott Thomas).
É bastante óbvio que voltamos atrás no tempo: Philippe Claudel optou pelo que eu chamo de narrativa laço, aquele esquema de começar com um fato acontecido bem recentemente, e em seguida voltar no tempo, num flashback que ocupará praticamente o filme inteiro. Só bem no final voltaremos a ver Paul, o personagem de Daniel Auteil, sendo interrogado pelos policiais.
Esse esquema de narrativa laço tem sido usado com extrema freqüência nos filmes, e muitas vezes até sem justificativa, sem propósito. Em Antes do Inverno o recurso é extremamente bem usado. É necessário que o espectador saiba desde o início que houve algum crime, e o protagonista está sendo interrogado, talvez como um suspeito, no mínimo como testemunha.
Veremos que Paul é um competente, respeitado cirurgião. Trabalha numa boa clínica e tem seu consultório particular. É um workaholic, vive para o trabalho, tem pouquíssimo tempo para a bela mulher que o espera na casa rica ao final de todos os dias de trabalho.
Em função exatamente disso, o casamento não vai lá muito bem. Não que Paul e Lucie briguem, discutam. É até pior do que isso: depois de mais de três décadas casados, eles se falam pouco. Não conversam de verdade, não partilham suas experiências. Fica bem nítido que a culpa por isso é dele, de sua dedicação intensa ao trabalho. Lucie demonstra que ama o marido, e está ali, sempre disposta, pronta para agradá-lo.
Têm um único filho, Victor (Jérôme Varanfrain), casado com Caroline (Vicky Krieps), e o jovem casal tem uma filhinha. Mas Paul não dá muita bola para a netinha e, com o filho, não se entende: quando se vêem, não param de discutir, implicar um com o outro.
Paul não tem também a menor paciência com a cunhada Mathilde (Laure Killing), a irmã problemática de Lucie, depressiva, que vive entre uma internação e outra em hospital psiquiátrico.
Os únicos momentos em que Paul relaxa um pouco parecem ser os jogos de tênis com o maior amigo, Gérard (o papel de Richard Berry), um psiquiatra, cujo consultório fica no mesmo prédio em que Paul tem o seu. Os dois são amigos há mais de 30 anos; na verdade, os dois se conheceram no mesmo dia em que também ficaram conhecendo Lucie.
E vai ficando claro para o espectador que Gérard tem imensa admiração pela mulher do maior amigo. Imensa admiração, e talvez, ou muito provavelmente, amor.
Uma bela jovem aparece para mexer profundamente com a cabeça de Paul
Num bar que freqüenta, Paul é abordado pela jovem e bela garçonete Lou – o papel de Leïla Bekhti (nas duas fotos abaixo). Ela diz que o conhece: quando ela era bem garota, ele a havia operado de apendicite. Paul não se lembrava daquilo, e Lou diz que é normal, já que fazia tanto tempo.
Pouco depois desse encontro, começam a chegar flores para Paul, enviadas por alguém que não se identifica. Rosas vermelhas – chegando na clínica, no consultório, na casa.
Num recital de música lírica a que vai com Lucie, Paul vê Lou.
Perto de uma flora, Paul vê Lou de novo – e, irritado, nervoso, tenso, diz para ela parar com aquela coisa de mandar flores para ele. Ela nega firmemente ser a remetente anônima. Tão firmemente que ele vai até o bar em que ela trabalha para pedir desculpas.
Ela conta para ele histórias sobre os pais marroquinos que nunca deram afeto a ela, sempre foram ausentes.
A jovem e bela moça mexe com a cabeça do médico sessentão workaholic. Mexe fundo, deixa-o profundamente abalado.
O filme fala também de injustiça social, o colaboracionismo com o invasor…
Nas entrelinhas, bem nas entrelinhas, Antes do Inverno aponta para as chagas do colonialismo e da injustiça social, o fosso entre os ricos e os imigrantes e filhos de imigrantes das ex-colônias francesas da África, como Lou.
Mais claramente, de forma explícita, o filme aperta também outra chaga difícil de cicatrizar: o colaboracionismo francês com o invasor nazista durante a Segunda Guerra Mundial, e a participação da polícia francesa na entrega de milhares de judeus aos nazistas. Uma paciente de Paul, que será operada por ele de um tumor no cérebro, a sra. Malek (uma interpretação fantástica de Annette Schlechter), pede a ele uma conversa a sós, na véspera da cirurgia. E conta que, de toda a sua família, foi a única sobrevivente, porque, quando a polícia francesa veio pegar os judeus de seu prédio, ela conseguiu escapar. Ela recita para o médico os nomes dos pais e dos irmãos, para que eles sejam lembrados por alguém, caso ela venha a morrer durante a operação.
É uma seqüência impressionante.
Philippe Claudel ainda enfiou em seu filme uma condenação aos bancos, ao sistema financeiro responsável pela grande crise que atingiu fortemente os países desenvolvidos a partir de setembro de 2008, e da qual a Europa ainda não conseguiu sair inteiramente. Durante um jantar, Paul se enfurece com o filho, que trabalha em posto importante em um grande banco e é um defensor ferrenho do sistema financeiro.
Daniel Auteil e Kristin Scott Thomas nos presenteiam com interpretações magníficas
Essas três tomadas de posição política aparecem – repito – ou nas entrelinhas, ou en passant. A preocupação maior do realizador é com as relações entre as pessoas. O quadro que ele nos apresenta do casamento de Paul e Lucie é tocante, e muito triste. Um absurdo, pessoas boas, bom caráter, que vão se deixando levar pela falta de comunicação, pela falta de conversa. A interpretação desses dois atores extraordinários, Daniel Auteil e Kristin Scott Thomas, faz com que o espectador sinta tristeza por aquele casal como se fossem amigos queridos de longa data. Mais de uma vez Paul diz que ama Lucie, e não está mentindo, ele a ama de verdade – mas deixa que se crie entre ele e a mulher que ama um fosso, uma distância que vai aumentando cada vez mais.
O filme já passa da metade quando Lucie tem um diálogo fantástico com a nora, Caroline. Ela já sabe da existência de uma outra mulher na vida do marido; está com a nora e a netinha em uma loja, Caroline está escolhendo roupas para a garotinha. E então Lucie diz: – “Caroline, queria te dizer que… Victor é meu filho, mas, se você estiver infeliz com ele, deve partir logo. Logo mesmo. Pelo seu próprio bem.”
A jovem, naturalmente, fica surpresa. Ela havia visto Paul com Lou num parque, pouco antes, e tinha até contado isso para Lucie. Mas fica surpresa mesmo assim com a declaração da sogra. Sogras não costumam dar esse conselho às noras – em geral, dão o conselho oposto.
E então Caroline pergunta: – “Por que você está me dizendo isso agora?”
E Lucie: – “Porque as pessoas nunca dizem essas coisas. Porque ninguém ousa dizer”.
A inglesa Kristin Scott Thomas faz filmes nos Estados Unidos, na Inglaterra e na França. Como fala francês com imensa fluência, tem feito cada vez mais filmes falando em francês do que na sua língua materna. Fez a personagem principal do filme de estréia de Philippe Claudel, Há Tanto Tempo Que Te Amo.
“Mais uma vez eu dei a ela um personagem aprisionado em um desconforto, um segredo”, disse o diretor em entrevista. “Adoro filmar a beleza de Kristin, a beleza de seu rosto que sempre achei límpido, enigmático e às vezes doloroso.”
Antes do Inverno já valeria a pena ainda que sua única qualidade fosse ver a beleza límpida, enigmática, às vezes dolorosa de Kristin Scott Thomas. Mas o filme tem muitas outras qualidades. É um belo filme. Philippe Claudel é um grande realizador.
Anotação em outubro de 2014
Antes do Inverno/Avant l’hiver
De Philippe Claudel, França-Luxemburgo, 2013
Com Daniel Auteuil (Paul), Kristin Scott Thomas (Lucie), Leïla Bekhti (Lou), Richard Berry (Gérard), Vicky Krieps (Caroline), Jérôme Varanfrain (Victor), Laure Killing (Mathilde), Anne Metzler (Zoé Gassard), Laurent Claret (Denis, o diretor da clínica), Annette Schlechter (Mme Malek, a paciente de Paul)
Argumento e roteiro Philippe Claudel
Fotografia Denis Lenoir
Música André Dziezuk
Montagem Elisa Aboulker
Produção Les films du 24, Samsa Film, France 3 Cinéma. DVD Paramount.
Cor, 103 min
***1/2
7 Comentários para “Antes do Inverno / Avant l’hiver”