Antes de se firmar como o mago das superproduções com aventuras de mundos fantásticos, diferentes deste nosso insensato aqui – a trilogia O Senhor dos Anéis, depois a trilogia O Hobbit –, o então bem jovem neo-zelandês Peter Jackson chocou e encantou todos os cinéfilos do planeta com uma história tragicamente real: um crime brutal cometido por duas adolescentes em seu país, em meados dos anos 1950.
Heavenly Creatures, criaturas celestiais, no Brasil Almas Gêmeas, que Jackson dirigiu em 1994 (além de ser co-produtor e um dos dois autores do roteiro), retrata, sim, uma história bem real – tão real que diversas falas do filme são a transcrição exata, fiel, dos diários de uma das duas adolescentes que protagonizaram o que ocorreu. Mas, de uma maneira talvez perversamente fascinante, a história real permite que Jackson viaje – exatamente como faz na grande maioria de seus filmes – em imagens psicodélicas, surreais, de um universo paralelo, como é o da saga de J.R.R.Tolkien ou o de Alice no País das Maravilhas.
Isso porque as trágicas protagonistas da história, Pauline Yvonne Parker e Juliet Marion Hulme – garotas de muita imaginação, de uma imaginação fervilhante, obsessiva – criaram para si mesmas exatamente um universo à parte, muito distante deste nosso mundo real. Inventaram uma espécie de conto de fadas, ou de bruxas, de horrores, um relato medieval à la Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda, e viveram imersas nele.
Assim, não é à toa que Peter Jackson tenha optado por contar essa história apavorante, cruel, amarga. Muito mais do que o fato de ter sido uma história real, o que seguramente atraiu o realizador foi o mundo de ficção que as duas adolescentes criaram, e que Pauline registou nos seus diários escritos ao longo de 1953 e 1954, quando ela tinha 14 e 15 anos de idade.
Com base no universo imaginado pelas duas, Jackson pôde fazer aquilo que é sua especialidade – transformar em imagens as fantasias mais desvairadas, delirantes.
Pode-se gostar ou não da trilogia Senhor dos Anéis, por exemplo – mas ninguém pode dizer que o visual criado por Peter Jackson deixa de ser belíssimo, fascinante, mesmerizante.
Almas Gêmeas, seu quarto longa-metragem, foi o filme que primeiro mostrou isso para todo o mundo. Transformou de imediato o realizador neo-zelandês – que estava então com apenas 33 anos – em uma figura reconhecida em todo o mundo como um talento maior.
Uma abertura aceleradíssima, a mil por hora
É talento de sobra, saindo pelo ladrão. E é um talento que o realizador não tem vergonha de mostrar – muito ao contrário. Almas Gêmeas tem todos os tipos de fogos de artifício possíveis e imagináveis. A cada momento, Peter Jackson está berrando no ouvido do espectador: veja só como eu sou genial!
E não é possível discordar dele. É talento demais mesmo, fazer o quê?
O começo da narrativa já mostra bem o que poderá vir em seguida. Abre com um breve acorde em notas suaves: por uns dois minutos, vemos uma peça publicitária sobre a cidade de Christchurch, dessas aparentemente feitas para ser apresentadas em cinejornais antes da projeção dos longa-metragens. Um locutor com voz oficial enumera as qualidades da pacífica, bela, porém progressista cidade do interior da Nova Zelândia.
Corta, e o nível vai lá em cima. Se fosse uma música, seria um momento de fortíssimo, toda a orquestra em volume alto. A câmara avança a mil hora no meio de um matagal, as folhas das árvores batem na câmara assim como batem nos dois vultos que correm desesperadamente, com a câmara atrás delas.
Àquelas tomadas rápidas, montadas de forma aceleradíssima, da corrida desesperada no meio do mato, alternam-se tomadas também rápidas, em preto-e-branco, de duas moças correndo de encontro a um casal, a bordo de um navio que se prepara para zarpar.
As duas sequências vão sendo mostradas paralelamente, a mil por hora.
É de manter a respiração do espectador em suspenso.
As duas moças que correm no mato chegam até um casarão. Uma mulher sai lá de dentro. Uma rápida, rapidíssima tomada das moças mostra que elas estão cobertas de sangue. Uma delas diz: “Socorro! É minha mãe! Ela está muito ferida!”
Fade out, a tela fica toda negra e surgem os créditos iniciais, com um letreiro que informa: “Ao longo de 1953 e 1954 Pauline Yvonne Parker manteve diários registrando sua amizade com Juliet Marion Hulme. Esta é a história delas. Todas as frases do diário são as palavras da próprio Pauline.”
O filme que introduziu a maravilhosa Kate Winslet
Os nomes dos atores adultos aparecem primeiro. São nomes que, creio, eram pouco conhecidos em 1994 e continuam pouco conhecidos hoje – pelo menos fora da Nova Zelândia. Sarah Peirse e Simon O’Connor fazem Honora e Herbert Rieper, os pais da garota Pauline. Diana Kent e Clive Merrison fazem Hilda e Henry Hulme, os pais de Juliet. São quatro bons atores, e suas performances no filme são excelentes, irrepreensíveis. Entre os quatro, no entanto, quem mais impressiona, talvez por interpretar a pessoa que mais sofre, entre os quatro pais, é essa Sarah Peirse, extraordinária.
Os nomes das duas atrizes que fazem as protagonistas, Pauline e Juliet, aparecem depois, abaixo da palavra “introducing” – respectivamente Melanie Lynskey e Kate Winslet.
A neo-zelandesa Melanie Lynskey é de 1977, estava portanto com 16/17 anos no ano do lançamento do filme. Almas Gêmeas foi de fato sua primeira aparição numa tela de cinema. Em meados de 2014, tinha 54 títulos no currículo, seis prêmios e outras oito indicações.
Kate Winslet, inglesa de Reading, bem perto de Londres, é de 1975, exatamente o ano da minha filha, e estava portanto com 18/19 anos no lançamento do filme, mas tinha então uma absoluta baby face que a fazia parecer ter os 15 da personagem. Uma das melhores atrizes de sua geração, uma das grandes atrizes de todas as gerações que fizeram a História do cinema, Kate já tinha participado de quatro minisséries da TV inglesa quando foi para a distante Nova Zelândia filmar sua estréia no cinema. Nos 20 anos que se seguiram a Almas Gêmeas, juntou 67 prêmios, inclusive um Oscar, fora outras 80 indicações.
Se não tivesse qualquer outra qualidade, este Heavenly Creatures já seria um filme importante apenas por ter sido o que revelou ao mundo os talentos de Peter Jackson, Kate Winslet e Melanie Lynskey.
As adolescentes potencializaram as qualidades e defeitos uma da outra
A família de Pauline era classe média bem média para quase média baixa; Herbert, o pai, era gerente de uma loja, e Honora complementava o ganho do marido alugando quartos de sua ampla casa para pensionistas. Pauline é mostrada como uma jovem isolada, solitária, sem amigos, tímida, com gosto pela leitura e pela escrita e um rosto que expressava muita angústia e prenunciava loucura.
Já a família de Juliet era classe média alta para rica, muito mais educada que os pais de Pauline. O dr. Henry era o reitor da Universidade de Canterbury, a melhor da região, e sua mulher Hilda tinha porte elegantíssimo, de mulher bem tratada a vida inteira. E Julie era a expressão mais pura da mocinha metida, presunçosa, a que se achava a melhor de todas sempre, em qualquer lugar. Bem educada em ótimas escolas, de fato se sobressaía entre as colegas de classe – conseguia ver erros até nas lições dadas pelos professores.
Ao se encontrarem, Pauline e Juliet potencializaram suas qualidades e seus defeitos. Uma excitava a imaginação, a criatividade da outra. E aí criaram seu mundo à parte.
Peter Jackson demonstra o tempo todo ser um rato de cineclube
Não há um truque, um movimento de câmara, uma invencionice na montagem de uma tomada com a seguinte, nada, absolutamente nada que Peter Jackson tenha deixado de lado na construção do visual dessa história apavorante. Ele usa e abusa de todo tipo de recurso possível e imaginável na linguagem cinematográfica para brilhar. Maximiza e em seguida minimiza as cores, passa do berrante ao opaco, mistura cor e P&B. Alterna planos gerais com super ultra big close-ups: bota a boca de um personagem, apenas a boca, para ocupar a tela inteira, por exemplo. Distorce os rostos dos personagens em close-up extremos, extremados.
Bota a câmara lá em cima, bota a câmara abaixo da linha do olhar. Mistura nas mesmas tomadas atores e artifícios – os bonecos criados, inventados pela imaginação louca das duas adolescentes.
Bota personagens reais – Mario Lanza, Orson Welles – para dentro da história, convivendo com os personagens do filme.
Tem mais fogos de artifício do que no 4 de julho, o 7 de setembro dos americanos.
Eu, pessoalmente, tenho cada vez gostado menos de fogos de artifício, e me encantado mais com boas histórias contadas de maneira simples, direta, sem frescura. Mas não dá para desgostar dos fogos artifício de Peter Jackson em Almas Gêmeas: é tudo muito, muito bem realizado, é talento demais.
O diretor demonstra, ao longo de todo o filme, ser um apaixonado por filmes, um daqueles ratos de cineclube que viu tudo, assistiu a todos os grandes clássicos, acompanhou todos os gêneros. E, depois da metade dos 99 minutos de filme, bota Juliet e Pauline para ver, em um cinema do centro da cidade, O Terceiro Homem, o filme que o inglês Carol Reed fez em 1949 com Orson Welles e Joseph Cotten – e dizem que foi mais dirigido por Welles do que pelo próprio Reed. Ao saírem do cinema, não dá outra: claro, as duas garotas são perseguidas por Orson Welles (interpretado por Jean Guérin), em parte em cenários idênticos aos do filme O Terceiro Homem.
E não bastou botar Orson Welles em cena. Jackson também deu uma de Alfred Hitchcock, e aparece rapidamente numa tomada – ele faz o mendigo que Juliet beija ao sair do cinema após a sessão de O Terceiro Homem.
É tão óbvia a paixão demonstrada por ícones do cinema (e também da música) que é estranho que ninguém envolvido na produção tenha atentado para o errinho bobo cometido em uma sequência lá em que as duas garotas passam por um pôster de Creatures from the Black Lagoon. O filme, que ficou famoso como um exemplo perfeito do cinema de terror dos anos 50, da paranóia da Guerra Fria, foi lançado em 1954, e a ação, naquele momento, se passava em 1952.
Há outros errinhos desse tipo, registrados no IMDb, como o aparecimento de uma capa de um LP de Doris Day de 1961 Bright and Shiny, viajando no tempo até meados dos anos 1950. Bobaginha, coisa menor.
Heavenly Creatures foi indicado ao Oscar na categoria de melhor roteiro. Não levou, mas Peter Jackson ganhou o Leão de Prata no Festival de Veneza. No total, o filme teve 17 prêmios e outras 9 indicações.
Juliet virou escritora de livros de mistério; Pauline, católica devota, cuida de crianças
Aí vão informações curiosas e/ou interessantes sobre a produção, a maioria tirada do IMDb:
* A idéia de fazer o filme foi da co-roteirista Fran Walsh. Foi dela a sugestão para Peter Jackson. Desde a infância ela era fascinada com o caso real, que foi exaustivamente tratado, na época, pela imprensa da Nova Zelândia. A equipe de produção procurou por todo o país pessoas que tivessem conhecido Juliet Hulme ou Pauline Parker, e entrevistou diversas delas.
* Muitos dos locais de filmagem foram os locais onde os fatos reais aconteceram. A casa de chá que aparece rapidissimamente na sequência inicial, onde as duas garotas vão pedir ajuda, e que volta a aparecer bem no final da narrativa, é exatamente a que existia nos anos 1950. A maior parte dos atores foi escolhida por causa da semelhança física com as pessoas da vida real. A garota Melanie Lynskey foi escolhida para fazer Pauline duas semanas antes da data marcada para o início das filmagens; ela foi descoberta pela co-roteirista Fran Walsh, que visitava escolas do lugar à procura de alguém que tivesse semelhança física com a Pauline da vida real.
* O pessoal de casting fez teste com 175 garotas para escolher quem faria Juliet, o papel que acabou ficando para Kate Winslet.
* Nos créditos, aparece a dedicatória “For Jim”. Jim Booth foi o produtor do filme, e morreu pouco antes de a produção ser concluída.
* E a mais fascinante de todas as informações: o destino das duas personagens reais. No final do filme, há, como em boa parte das obras que recontam histórias reais, letreiros informando o que aconteceu depois com Juliet Hulme e Pauline Parker. As duas, mostram os letreiros, cumpriram as penas de prisão a que foram condenadas. O que os letreiros não dizem, e o IMDb informa, é que, na época do lançamento do filme, 1994, a escritora de livros de mistério Anne Perry, que vive na Escócia, revelou que era Juliet Hulme.
Anne Perry é autora de cerca de 80 livros. Criou dois personagens, dois detetives, que aparecem em diversos livros; um deles, Thomas Pitt, já apareceu em 29 títulos, e o outro, William Monk, em 20.
Em 1997, descobriu-se que Pauline Parker atendia pelo nome de Hilary Nathan e dirigia uma escola de equitação para jovens em uma fazenda em Kent, na Inglaterra; tornou-se uma católica devota e dedica a vida a crianças com necessidades especiais.
Em 2011, saiu na Nova Zelândia um livro sobre o caso, com um título sugestivo, interessante: So Brilliantly Clever: Parker, Hulme and the Murder that Shocked the World. O livro, assinado por Peter Graham, foi depois reeditado como Anne Perry and the Murder of the Century.
Mesmo quem comete crime inominável tem direito a uma nova chance
Mesmo ao ser revisto (eu tinha visto antes uma vez, em 2004), o filme impressiona demais. É daqueles que não saem da cabeça da gente após o final. Toda a história é muito apavorante, muito cruel. Peter Jackson consegue fazer com que a narrativa vá num crescendo em direção ao pavor, que o espectador sabe que virá, inexoravelmente. Mesmo que ele não saiba exatamente qual será o ápice do pavor, da tragédia, ele sabe que ela se aproxima.
Para qualquer pessoa que tenha tido filho, é extremamente angustiante ver como os pais de cada uma das garotas vão perdendo o contato com elas. Na adolescência, esse distanciamento é bastante comum, a gente sabe que é assim, mas no caso de Juliet e Pauline, o distanciamento entre elas e os pais é gigantesco demais, e o espectador vai sendo tomado de horror pela proximidade da tragédia.
Quando, afinal, explode a tragédia, é muito, muito doloroso.
É um crime tão inominável que os espectadores que defendem o Talião, o olho por olho, dente por dente, sentirão que seu desejo de que os criminosos paguem o preço mais pesado possível se justifica plenamente.
Mesmo os que defendem que todos merecem uma segunda chance, com dignidade, após pagar por seu crime, podem ficar abalados.
Sou desse segundo tipo – e, embora o crime que o filme mostra me deixe chocado, acho bom saber que as duas garotas cumpriram suas penas até o fim, tiveram suas novas chances, e souberam aproveitá-las.
Anotação em agosto de 2014
Almas Gêmeas/Heavenly Creatures
De Peter Jackson, Nova Zelândia, 1994
Com Melanie Lynskey (Pauline Yvonne Parker), Kate Winslet (Juliet Marion Hulme),
e Sarah Peirse (Honora Parker Rieper), Diana Kent (Hilda Hulme), Clive Merrison (Dr. Henry Hulme), Simon O’Connor (Herbert Rieper), Jed Brophy (John / Nicholas), Peter Elliott (Bill Perry), Jean Guérin (Orson Welles), Stephen Reilly (Mario Lanza)
Roteiro Fran Walsh e Peter Jackson
Fotografia Alun Bollinger
Música Peter Dasent
Montagem Jamie Selkirk
Produção WingNut Films, New Zealand Film Commission, Fontana Productions.
Cor, 99 min
R, ***1/2
Gosto muito deste filme e penso que será o melhor que Peter Jackson realizou até agora. A banda sonora é muito boa com canções cantadas por Mario Lanza, áreas de óperas e o famoso coro À Boca Fechada da ópera Madame Butterfly que se ouve na sena culminante. Muito bem feito como diz o Sérgio.
Vi esse filme faz muitos anos, tantos que nem lembrava que uma das protagonistas é a Kate Winslet.
Não lembro se era a minha fase nerd, em que tinha certos filmes que eu fazia questão de ver, pois além do cerne da história, só lembro de que achei chatíssimo, dormi antes de terminar, e não me causou uma impressão muito boa. Agora lendo seu texto, entendo um pouco o porquê: “a história real permite que Jackson viaje – exatamente como faz na grande maioria de seus filmes – em imagens psicodélicas, surreais, de um universo paralelo.”
Eu não gosto de filmes com imagens nesse formato, não me sinto bem vendo, me causam mal-estar.
E hoje com tantos filmes pra ver e rever, não sei se é algo que eu queira assistir de novo.
Vi este filme lá nos anos 90 e apesar de não lembrar muito sobre a história em si, lembro que me marcou bastante na época.
AS atrizes eram maravilhosa, mas a história com esta mistura de fantasia e realidade cruel foi o mais marcante.
Fiquei com muita vontade de rever…
Eu não sei se alguém chegará à ver meu comentário, visto como cheguei à conclusão de que poucos são interessados em ver esse filme atualmente, mas ainda tenho esperanças de que conseguirei assisti-lo de alguma forma. Minha pesquisa continua.
Olá, Brenda.
O DVD do filme está à venda no Mercado Livre: https://produto.mercadolivre.com.br/MLB-1467493582-dvd-almas-gmeas-kate-winslet-lacrado-frete-fixo-_JM?matt_tool=91006443&matt_word=&matt_source=google&matt_campaign_id=6542957445&matt_ad_group_id=78237455506&matt_match_type=&matt_network=u&matt_device=c&matt_creative=385099537083&matt_keyword=&matt_ad_position=&matt_ad_type=&matt_merchant_id=109550876&matt_product_id=MLB1467493582&matt_product_partition_id=864293977884&matt_target_id=pla-864293977884&gclid=EAIaIQobChMI75qc6of57AIV9giICR3YDgHJEAQYBSABEgL5-_D_BwE
Seguramente você poderá encontrar o DVD em outros endereços de venda on-line.
Um abraço.
Sérgio
Boa crítica, mas é inacreditável citar os pequenos erros do filmes, falar sobre outros aspectos quase irrelevantes e não fazer uma única menção ao cerne de toda a história que é o amor entre as duas? De fato inacreditavel. Crítica meia boca…