Pat and Mike, no Brasil A Mulher Absoluta, foi o sétimo dos nove filmes com o casal mil de Hollywood, Spencer Tracy e Katharine Hepburn. Além de trabalhar juntos, se amavam. Não poderia haver parceria mais azeitada, mais perfeita – e então o filme é uma absoluta delícia.
A história e o roteiro são de autoria de outra dupla tão afiada quanto Pelé e Pepe, Tom e Vinicius, George e Ira Gershwin: Garson Kanin e Ruth Gordon. É deles o roteiro do filme anterior da dupla Tracy-Kate, A Costela de Adão/Adam’s Rib, de 1949 – que, como este filme aqui, foi dirigido por George Cukor.
Pat and Mike, lançado em 1952, foi obviamente escrito para o casal. Dá perfeitamente para imaginar que, sentados à frente de suas máquinas de escrever, Kanin e Ruth Gordon ficavam antevendo como os diálogos que redigiam seriam falados pelos dois atores.
Criaram para Spencer Tracy um papel um tanto diferente dos que ele costumava interpretar. Tracy é um ator que exalava dignidade, honestidade, retidão moral – o Mike Conovan que ele faz aqui é quase um trambiqueiro, um malandrão. Para tornar óbvia essa figura, os figurinistas da Metro o fizeram usar camisas pretas debaixo de paletós xadrez, uma deselegância nada nada discreta.
Em A Mulher do Dia/Woman of the Year, de 1942, o primeiro filme da dupla, Katharine Hepburn faz uma jornalista entendida de política internacional que nunca tinha visto um evento esportivo na vida. (E Tracy fazia um jornalista esportivo.)
Pois aqui a personagem dela é exatamente o contrário da anterior: é uma super atleta, boa em diversos esportes. Na primeira vez que a vemos, bem no início da narrativa, está treinando jogadoras de basquete – Pat Pemberton é professora de educação física de um colégio na Califórnia. Em seguida veremos que é uma excelente jogadora de golfe. Mais tarde ela se demonstrará excelente também no tênis, e contará que pratica várias outras modalidades. Na seqüência mais impagável desta deliciosa comédia, surpreenderá a todos como mestre na luta-livre.
O fato de Kate interpretar uma desportista permite que o respeitável público aprecie suas longas coxas, algo meio raro na filmografia desse monstro-sagrado.
Sempre se disse que Kate Hepburn é uma mulher ossuda, um monte de ossos. Pat and Mike tem uma excelente piada sobre a notória magreza dela. Pat está caminhando para mais longe da câmara e do lugar em que estão Mike e seu fiel escudeiro Barney (Sammy White). Os dois homens estão junto de um bebedouro. Enquanto Pat se distancia, Mike toma um gole d’água e diz a frase:
– “Not much meat on ‘er, but what there is is cherce.”
Mais ou menos isto:
– “Não tem muita carne, mas a que tem é de primeira.”
Pois é. Mas as cenas em que Pat Pemberton usa shortinhos, nas quadras de tênis, mostram que a magreza de Kate Hepburn é um tanto falsa. Não são coxas biafrentas, anoréxicas à la top models de hoje em dia coisa alguma. Têm carne.
Uma baita de uma desportista. Mas, quando está com o namorado, bloqueia, erra tudo
Pat Pemberton namora o diretor do colégio em que dá aula de educação física. Chama-se Collier (William Ching), e o espectador vê de cara que é um chato de galocha. Bem no inicinho da narrativa, Collier vai pegar a namorada para irem juntos a um campo de golfe, onde têm um encontro marcado com um milionário, Beminger (Loring Smith). O plano é jogarem em dupla: Beminger e Pat contra Collier e a Sra. Beminger (Phyllis Povah) – e dar um jeito para que a dupla Beminger-Pat vença, porque Collier quer que o milionário faça uma doação para o colégio, e pretende agradá-lo.
Pat aparece de calça comprida, e Collier reclama: Beminger é um sujeito muito conservador, tradicional, e se ofenderia com uma mulher usando calça comprida. O problema é que eles já estão atrasados, e o milionário é pontualíssimo como um inglês. Pat corre até o colégio e volta carregando uma saia; pula para o banco de trás do conversível e manda o namorado acelerar. E então, ali no banco de trás, tira a calça e veste a saia.
Collier é um sujeito tão babaca que, ao perceber o que a namorada está fazendo no banco de trás, vira o espelho retrovisor para não ver as pernas da moça!
Chegam ao campo de golfe, o jogo começa.
Pat é exímia jogadora de golfe, mas tem um problema sério, seriíssimo: quando está perto do namorado, quando o namorado a está observando, ela erra todos os lances. Simples assim: ela trava; fica bloqueada; erra. Não acerta uma.
Mike se oferece para ser o agente de Pat – e sugere que ela perca o jogo
Depois de perder o jogo em que ela deveria ajudar o milionário a vencer, Pat, incentivada por um amigo, resolve participar de um campeonato de golfe para mulheres – amadoras, não profissionais. Vai vencendo todas as partidas, até chegar às semifinais. É aí que aparece Mike Conovan, sempre acompanhado pelo fiel escudeiro Barney.
Mike agencia atletas de diversas modalidades. Agencia, gerencia, treina, cuida de todos os detalhes da vida dos atletas que contrata. Seu trabalho tem um lado legítimo (ele usa a palavra legítimo para designar sua agência diversas vezes), legal. Mas também tem um lado ilegítimo, ilegal, mafioso: ele às vezes sugere a atletas que percam uma ou outra partida. Quer dizer: ele às vezes forja resultados – para que seus financiadores, esses, sim, mafiosos da pesada – ganhem fortunas nas bolsas de aposta, as legais e as por baixo do pano.
Mike se apresenta a Pat, dá a ela seu cartão, diz que gostaria de assinar um contrato com ela e ser seu agente, treinador, assessor de imprensa e tudo o mais. E depois sugere que ela perca a final do campeonato – com isso, ganharia um monte de dinheiro.
Pat, é claro, recusa-se terminantemente a aceitar a proposta indecorosa.
Ela chega à finalíssima. Quando o jogo decisivo está para começar, chega Collier, o namorado, o cara diante de quem Pat trava, fica bloqueada, erra.
Estamos aí com uns 15, 20 minutos de filme, se tanto. Muito do que vem a seguir é previsível, embora haja também muita coisa absolutamente inesperada. De qualquer forma, é tudo absolutamente delicioso.
Ver Charles Bronson levar uma tremenda surra de Kate Hepburn não tem preço
Um dos atletas contratados por Mike é um boxeador peso-pesado, Davie Hucko (Aldo Ray). Hucko é um total palerma, tadinho. Toda a sua inteligência está concentrada nos punhos. As sequências em que ele aparece são hilariantes – as caras de burro que Aldo Ray faz são sensacionais.
Aldo Ray, naturalmente, não era boxeador, assim como Kate Hepburn não era uma super atleta (embora fosse uma boa jogadora de golfe e tênis). Mas uma das características interessantes de Pat and Mike é que a produção conseguiu fazer com que diversos desportistas americanos – jogadores de golfe e de tênis, em especial – participassem como atores no filme, interpretando a si próprios.
Os nomes deles não nos dizem nada hoje, mas, para os americanos daquele início dos anos 50, eram tão conhecidos quanto Neymar, Marta, Anderson Silva são hoje pelos brasileiros: Don Budge, Helen Dettweiler, Betty Hicks, Beverly Hanson, Babe Didrikson Zaharias, Pancho Gonzales, Gussie Moran, Alice Marble, Franklin Parker.
Uma curiosidade interessante é ver na tela um então jovem ator chamado Charles Buchinski. Ele aparece quando a narrativa já se aproxima do fim: faz o papel de Hank Tasling, um dos três mafiosos que financiam a agência de Mike, e que aparecem para ter uma séria conversa com ele quando Pat está participando de um campeonato de golfe com profissionais.
Mais tarde, aquele ator então em início de carreira trocaria seu sobrenome polonês Buchinski por algo mais anglo-saxão, Bronson.
E ver o desejoso de matar Charles Bronson levar uma tremenda surra de Kate Hepburn é divertidíssimo.
Em ótima forma, Kate Hepburn fazia Tracy cuidar da saúde
A biografia de Kate Hepburn Uma Mulher Fabulosa, de Anne Edwards, conta que os preparativos para a filmagem de Pat and Mike começaram logo depois que ela retornou da África, onde tinha rodado Uma Aventura na África/The African Queen, ao lado de Humphrey Bogart, sob direção e John Huston.
“Enquanto Kate esteve viajando, Ruth (Gordon) e Garson (Kanin) haviam trabalhado num roteiro sob medida para Tracy e Kate – Pat and Mike. (…) O filme deveria dar a Kate a possibilidade de mostrar sua extraordinária capacidade atlética. (…) Sem Kate, Tracy tinha se tornado quase um recluso. Com o cabelo completamente grisalho, ele ouvia música (de preferência Brahms), fumava charutos, cigarros e cachimbo, dormia e bebia quando as coisas se complicavam.
“Kate fez o que pôde para modificar seus hábitos. Os potes de café estavam sempre prontos. Ela insistia para que ele tomasse banhos frios e nadasse todos os dias, qualquer que fosse a temperatura. Mais pesado do que antes, sem que isso fizesse muita diferença em seu aspecto geral, não tinha problema de que aos 50 anos parecesse bem mais. Os quilos ganhos e os anos que se passaram só lhe davam uma aparência mais imponente, que lhe possibilitava fazer os papéis que mais o interessavam. Ele adquiriu novo vigor com a volta de Kate e estava muito entusiasmado em fazer outro filme com ela.
“Os trabalhos com Pat and Mike começaram em janeiro de 1952 e terminaram em meados de março. Para Kate o filme foi uma espécie de merecido descanso. Seu corpo recuperou a forma maravilhosamente – até Cukor, que dirigia o filme, mal podia acreditar nas capacidades atléticas de Kate. ‘Ela é capaz de usar um taco de golfe ou uma raquete de tênis com o mesmo desembaraço que solta um epigrama’, comentou Bosley Crowther.”
Até Pauline Kael, a crítica mais arrasadora da história, se derreteu
Leonard Maltin deu ao filme 3 estrelas em 4: “Hepburn é Pat, atleta top; Tracy é Mike, seu empresário, em comédia agradável, não à altura de outros filmes do duo. Ray está bem como um nada esperto esportista. (…) Muitos notáveis do esporte aparecem brevemente como eles mesmos.”
Já Pauline Kael, a primeira-dama da crítica americana, em geral áspera, ranzinza, até mesmo com os filmes que elogiava, derrama-se por Pat and Mike. Aí vai, na tradução de Sérgio Augusto para o livro 1001 Noites no Cinema:
“Katharine Hepburn e Spencer Tracy atuam juntos com tanta habilidade que seus filmes anteriores parecem exercícios de aquecimento. O roteiro, de Ruth Gordon e Garson Kanin, não está à altura do melhor de A Costela de Adão, mas os astros atingiram um tal trabalho de equipe que seu pugilato é mais gracioso que as frases de efeito. Hepburn faz uma fenomenal esportista completa, e durante todo o filme enfrenta Gussie Moran, Babe Didrikson Zaharias e outras profissionais, explorando com graça e desembaraço as possibilidades cômicas nos diversos esportes. Tracy, que faz o papel de um promotor esportivo (com um sotaque de malandro de cidade grande), tem um ar mais leve e divertido que nos outros filmes de Hepburn-Tracy. (…) George Cukor dirigiu bem. É quase tão perfeito quanto se poderia desejar.”
Raras vezes vi Dame Kael fazer tantos elogios.
Mas Pat and Mike merece. Sem dúvida nenhuma, é uma absoluta delícia de filme.
Anotação em janeiro de 2014
A Mulher Absoluta/Pat and Mike
De George Cukor, EUA, 1952
Com Spencer Tracy (Mike Conovan), Katharine Hepburn (Pat Pemberton)
e Aldo Ray (Davie Hucko), William Ching ( Collier Weld), Sammy White (Barney Grau), George Mathews (Spec Cauley), Loring Smith (Mr. Beminger), Phyllis Povah (Mrs. Beminger), Charles Buchinski (mais tarde conhecido como Charles Bronson) (Hank Tasling), Frank Richards (Sam Garsell), Jim Backus (Charles Barry), Chuck Connors (o capitão da polícia),
e com os esportistas Don Budge, Helen Dettweiler, Betty Hicks, Beverly Hanson, Babe Didrikson Zaharias, Pancho Gonzales, Gussie Moran, Alice Marble, Franklin Parker, interpretando a si próprios
Argumento e roteiro Garson Kanin e Ruth Gordon
Fotografia William Daniels
Música David Raksin
Montagem George Boemler
Produção MGM. DVD Warner Bros.
P&B, 95 min
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Título na França: Mademoiselle Gagne-Tout. Na Espanha e Argentina: La Impetuosa. Em Portugal: A Mulher Absoluta.
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