Há uma cena clássica bastante usada nos westerns: a câmara está parada, focalizando uma paisagem, ou um pedaço de saloon, ou o vazio. E aí entra no campo de visão da câmara, e portanto na tela, o rosto de um homem, em seguida de outro, em seguida de outro. Em geral são os mocinhos, chegando ao saloon, ou ao meio da rua, seja lá onde for, para resolver de vez a parada.
Brian De Palma, um cineasta que adora citar cenas clássicas de filmes, usou essa em Os Intocáveis: no filme de 1987, a seqüência de Eliot Ness e seus três companheiros intocáveis montados a cavalo começa com uma panorâmica de um despenhadeiro, os vultos dos cavaleiros recortados contra o céu, numa cena que evoca de imediato John Ford e seus clássicos westerns.
O espanhol Eduard Cortés fez não uma cena como essas, mas três, em seu The Pelayos, no Brasil Tirando a Sorte Grande: a câmara está parada, fixa, no meio de um gigantesco cassino. Aí entra na tela um rosto, depois outro, depois outro, depois outro. São os Pelayos do título original, chegando ao saloon, perdão, ao cassino, para seu duelo contra as roletas.
Não há esse negócio de relativismo, em The Pelayos. Eles, os membros da família Pelayo, são os mocinhos, the good guys. O chefão do cassino é o bandido; é tão bandido que é chamado de A Besta.
Quando estamos com 36 minutos de filme, há um fenomenal diálogo entre A Besta (Eduard Fernández, em bela interpretação, como as de todo o elenco) e Ingrid (Blanca Suárez, boa atriz, linda moça, na foto abaixo).
Ingrid é crupiê do cassino, e o investigador da casa descobriu que ela está namorando Alfredo, Freddy (Miguel Ángel Silvestre), um dos membros da família Pelayo. Então A Besta manda chamar a moça a seu amplo escritório, de onde ele monitora tudo o que se passa no lugar, através de diversas câmaras de segurança.
A Besta é um homem charmoso, elegante, boa pinta. Primeiro faz perguntas a Ingrid, como ela está, se ela gosta do trabalho, se está tudo bem com ela. Depois, enquanto a câmara focaliza ora um, ora outro, ele diz a ela o seguinte:
– “Você trabalha aqui e nós podemos pagar o seu salário no final do mês porque o cassino ganha e os jogadores perdem. Assim funciona esse negócio. Se fosse o contrário, você, eu e o resto perderíamos nossos empregos. Por que te digo isso? Por uma razão muito simples: porque você está namorando um cliente, um tal de Alfredo, que, com um grupo de mortos de fome (muertos de hambre, no original, soa ainda mais forte), acha que pode ganhar do cassino. E deixar você e eu sem emprego.”
O cassino parece uma metáfora da Empresa, enquanto os jogadores são o povo
A clareza, a cristalinidade dessa fala é uma coisa fenomenal. Existem os cassinos e os jogadores; os jogadores perdem, os cassinos ganham. É assim que é, é assim que funciona o negócio.
Se essa verdade cristalina fosse dita nas reuniões dos Jogadores Anônimos, é bem provável que muitos deles desistissem do vício. Minha cunhada Mílcia, por exemplo, parou de fumar depois de ver O Júri/The Runaway Jury, baseado no romance de John Grisham sobre a indústria do tabaco.
Mas esta coisa do vício é tudo um raciocínio meu. Para o filme, os cassinos são os bandidos, os jogadores são os mocinhos. Para o filme, os jogadores não são viciados – são os good guys.
O cassino, no filme do diretor Eduard Cortés, parece ser assim uma metáfora para a Empresa, o Capitalismo, o Capital, enquanto os jogadores são os trabalhadores, o povo, que, como a gente recitava nas passeatas dos anos 60, unido, jamais será vencido.
E os Pelayos são os melhores mocinhos de todos, porque eles lutam – legalmente, como eram legais os duelos no faroeste – para derrotar os cassinos.
É uma trama fantástica, a deste filme espanhol, a rigor catalão. E o mais incrível é que é baseada em fatos reais. Os Pelayos existem – e entraram para a História como os jogadores que conseguiram derrotar os cassinos.
Nos créditos iniciais, está lá: “Baseado na história da família Gonzalo García-Pelayo Segovia”. Nos créditos finais, repete-se a informação.
Gonzalo García-Pelayo, o chefe do clã (no filme, interpretado, muitíssimo bem, por Lluís Homar), merece verbete na Wikipedia em espanhol. Eis os dois primeiros parágrafos:
“Gonzalo García Pelayo Segovia nace en Madrid, de familia andaluza, el 25 de junio del año 1947, en una familia de 16 hermanos. Es padre de cinco hijos.
“Hombre polifacético, ha sido productor musical, director de cine, locutor de radio, jugador de casinos y hasta apoderado de toreros. Su popularidad en España sobrevino en los años 90 al diseñar un método legal para ganar en las mesas de ruleta de los casinos, aprovechándose de imperfecciones en la fabricación de las mesas de ruleta. Actualmente dedica su tiempo al mundo de la probabilidad y del azar, específicamente en ámbitos del mundo del póquer y la apuesta deportiva online.”
Uma câmara muy nerviosa, um número imenso de tomadas curtas para formar uma seqüência
A câmara do diretor Eduard Cortés é nerviosa. Casi al borde de un ataque de nervios.
O filme abre com uma voz em off dizendo uma frase enquanto a tela ainda está toda negra, depois de aparecerem os nomes das diversas produtoras, o apoio dos governos da Catalunha e da Mallorca:
– “Correr atrás de um sonho é o que dá sentido à vida.”
E então surgem as primeiras imagens – um grupo de pessoas correndo numa rua à noite, embaixo de um aguaceiro –, enquanto a voz em off prossegue sua introdução:
– “Naquela noite, embaixo da chuva, os Pelayos estavam convencidos de haviam conseguido.”
O grupo corre na chuva – e o montador Koldo Idígoras deve ter tido um trabalho insano para reunir, em uma sequência que dura apenas uns poucos segundos, não mais que dois minuto, um número imenso de diferentes tomadas.
Surge na tela a figura do ator Lluís Homar (na foto acima), que faz Gonzalo, o chefe do clã, e a voz em off prossegue:
– “Gonzalo García Pelayo, meu pai, passou a vida tentando desvendar as leis secretas da sorte. Um sonho que estava custando muito caro. Ele passava tanto tempo tentando atingir seu objetivo que não estava disposto a desistir por nada deste mundo.”
Neste momento, vemos Gonzalo caindo no chão do cassino, como se estivesse tendo um ataque cardíaco.
A última frase dessa introdução com a voz em off é:
– “Esta é a história deste sonho.”
E surge na tela o título do filme, The Pelayos.
Nos créditos iniciais, uma banda canta e toca – lindamente – “Hit the Road, Jack”
Em seguida temos os créditos iniciais. Enquanto rolam os créditos iniciais, vemos, atrás dos nomes da equipe, uma banda que canta e toca “Hit the Road, Jack”. O líder e vocalista da banda (na foto abaixo) tem uma figura assim entre Leonard Cohen e os Blue Brothers, os Irmãos Cara-de-Pau interpretados por John Belushi e Dan Aykroyd do filme de John Landis de 1980.
“Hit the Road, Jack” é uma maravilha de canção. É daquela maravilhosa estirpe de músicas que falam de dor-de-cotovelo com uma melodia alegria, dançante, irresistível, que não combina de forma alguma com dor-de-cotovelo. A gravação de Ray Charles é inesquecível. Ray Charles botou a música em primeiro lugar nos discos mais vendidos segundo a Billboard, a bíblia das paradas de sucesso, em 1961. Em 1976, um conjunto chamado Stampeders botou de novo a música entre as mais vendidas.
Dezenas de bandas e cantores gravaram “Hit the Road, Jack”, de Percy Mayfield.
Enquanto rolam os créditos iniciais de The Pelayos, a banda de Iván Pelayo toca “Hit the Road, Jack”, com um andamento bem mais lento do que o da gravação de Ray Charles.
É uma beleza de som, com uma beleza de imagens. Mas é impressionante: não há tomada que dure mais de cinco segundos. O montador Koldo Idígoras, tadinho, deve ter trabalhado feito um mouro, um camelo, para juntar os picadinhos de tomadas.
É tudo na velocidade da era do videoclipe. Ao longo de toda a narrativa, há esse excesso de tomadas curtíssimas, picadinhas, montadas à velocidade da Fórmula 1. O diretor Eduard Cortés, fiquei pensando, deve ser bem jovem. Sua câmara é nerviosa e sua montagem é à la clips da MTV.
Quando o filme é bom, feito com talento, a gente esquece as idiossincrasias
Muito bem. Mas eu cada vez menos gosto de criativóis, fogos de artifício, câmaras nervosas, montagem acelerada. Então detestei The Pelayos?
Nada. O realizador gosta de criativóis, fogos de artifício, câmara nervosa, montagem acelerada – mas tem talento. O filme é muito bom. Diante de talento, de filme bom, a gente esquece as idiossincrasias.
Iván Pelayo, o líder da banda e vocalista, vem na pele de Daniel Brühl, o jovem ator alemão de Adeus, Lênin, de 2003, e depois de tantos outros bons ou interessantes filmes, Edukators (que ainda não vi, mas no qual aposto), O Violinista que Saiu do Mar, Feliz Natal, O Ultimato Bourne, Bastardos Inglórios, E se Vivêssemos Todos Juntos?
O Iván interpretado pelo alemão Daniel Brühl é o principal personagem do filme. Filho do Pelayo chefe do clã, ele é o cara da voz em off do início da narrativa. Toda a história é contada através de seus olhos.
Tenho simpatia por Daniel Brühl desde Adeus, Lênin, aquele belíssimo filme sobre o qual não escrevi ainda. Acho que é um bom ator, tem um jeitão simpático. Como Iván Pelayo, ele está um tanto sério demais, sisudo demais – se sorri duas vezes ao longo dos 100 minutos de filme é muito.
E aí eu me perguntava: mas que cazzo o alemão Daniel Brühl está fazendo como ator principal em filme espanhol, a rigor catalão?
Há grandes mistérios na vida – segundo o Renato Teixeira, o maior deles é haver mistérios. Mas também há obviedades. Depois que vi The Pelayos, fui ao IMDb e me deparei com o fato absolutamente simples, nada misterioso, de que o alemão Daniel Brühl é catalão.
O cara se chama Daniel César Martín Brühl González Domingo; nasceu em Barcelona em 1978 (é três anos mais novo que minha filha!). A mãe é catalã, o pai é tedesco, o casal vivia em Köhl, Colônia, mas a mãe quis ter o filho em sua cidade natal, assim como a minha já citada cunhada Mílcia, como boa mineira, quis ter a filha Rejane em Belzonte. (No caso da Rejane, não adiantou muito a viagem até Belzonte, porque ela não fala mineirês nem de longe, e sim o mais perfeito barriga-verdês de Floripa.)
No caso de Daniel César Martín Brühl González Domingo, deu-se que o bicho fala tão bem alemão quanto espanhol com sotaque de catalão. Como o de Joan Manuel Serrat – mas Serrat é outra história: cada louco com sua mania.
Diz o IMDb que, na juventude, Daniel Brühl foi cantor de uma banda chamada Purge. Mas como assim, na juventude, se o cara nasceu outro dia mesmo?
Personagens interessantes – em especial Shui, uma espécie de Lizbeth Salander
Gonzalo diz a seu filho Iván que descobriu um método certeiro para ganhar na roleta. E pede a ele que deixe de lado sua banda de rock para testar o método jogando todos os dias no cassino da Besta. A princípio, Ivan reluta, tenta escapar – mas acaba cedendo. Veremos que Gonzalo exerce grande poder sobre toda a sua família. E então Iván recruta três parentes para, junto com ele, jogar todos os dias na roleta, seguindo o método criado por Gonzalo.
Os três parentes são tipos interessantíssimos: o cunhado Balón (Vicente Romero) e os primos Freddy – o que vai namorar a crupiê Ingrid – e Marcos (Oriol Vila).
Mas o tipo mais fascinante de todos é Shui (Hui Chi Chiu, na foto), uma chinesinha que cai de pára-quedas na vida dos Pelayos. Shui me fez lembrar um pouco a Lisbeth Salander da trilogia Millennium; não tem as tatuagens e piercings da sueca, mas é um tipo um tanto punk, sempre vestida de negro, uma jovem misteriosa, rebelde, indomável, não especialmente bonita, mas muito atraente. Tanto Gonzalo quanto seu filho Iván vão arrastar as asinhas para essa china fascinante.
Vejo agora, na hora de encerrar esta anotação, que o diretor Eduard Cortés, ao contrário do que eu havia imaginado, não é um garoto jovem. Nasceu em 1959, tem 26 títulos como diretor, a imensa maior parte deles na TV.
Usa criativóis como se fosse estreante – mas tem talento e, vejo agora, a experiência de um veterano.
Fez um belo filme.
Anotação em fevereiro de 2013
Tirando a Sorte Grande/The Pelayos
De Eduard Cortés, Espanha, 2012
Com Daniel Brühl (Iván Pelayo), Lluís Homar (Gonzalo Pelayo),
Hui Chi Chiu (Shui), Eduard Fernández (La Bestia), Miguel Ángel Silvestre (Alfredo, Freddy), Oriol Vila (Marcos), Vicente Romero (Balón), Blanca Suárez (Ingrid), Marina Salas (Vanessa), Gonzalez Arantxa (Espe), Sonia Casademont (Aurora)
Roteiro Eduard Cortés e Piti Español
Fotografia David Omedes
Música Micka Luna
Montagem Koldo Idígoras
Produção Afrodita Audiovisual, A.I.E., Alea Docs & Films
Bausan Films, Canal+ España, Consell de Mallorca, e outros. DVD PlayArte.
Cor, 100 min
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