Aos 76 anos, o eterno socialista Ken Loach parece ter filmado Rota Irlandesa/Route Irish com o fôlego, a energia, o vigor e a rebeldia de um adolescente de 17. É um soco no estômago, de uma violência apavorante, mas uma beleza de filme.
Inglês de Nuneaton, lugarejo de Warwickshire, Loach já havia feito filmes sobre a Irlanda: Ventos da Liberdade/The Wind that Shakes the Barley, de 2006, mostra a luta dos republicanos irlandeses no início do século XX; Agenda Secreta/Hidden Agenda, de 1990, parte do assassinato de uma ativista pelos direitos humanos americana em Belfast para revelar tramas políticas.
Mas Rota Irlandesa não tem a ver com a Irlanda: o título do filme vem do nome com que é conhecida a estrada que liga o aeroporto de Bagdá à Zona Verde, a área no centro da cidade superprotegida por forças de segurança onde funcionou o governo provisório estabelecido após a invasão do Iraque pelas forças americanas e onde ficam as embaixadas dos principais países do mundo.
Como a estrada entre o aeroporto internacional e essa área central da capital iraquiana é uma das mais perigosas do mundo, palco de diversos atentados a bomba, ganhou esse apelido – uma referência à violência que dominou a Irlanda nos anos 1960 e 1970, quando o pequeno país dividido em dois era palco de uma sangrenta guerra civil.
Foi na Rota Irlandesa que Frankie foi assassinado. Frankie (interpretado por John Bishop) aparece pouquíssimo na tela, mas é um dos principais protagonistas da história escrita por Paul Laverty – autor dos roteiros de diversos filmes de Loach, a partir de Uma Canção para Carla, de 1996.
Toda a trama vai girar em torno da morte de Frankie.
Sempre político, Ken Loach fez este filme para denunciar os abusos das empresas particulares de segurança contratadas basicamente pelos governos dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha para trabalhar na tentativa de manutenção da ordem no Iraque pós-Saddam Hussein.
E Rota Irlandesa faz com toda competência a denúncia – forte, violenta, apavorante.
Quando estamos com 28 minutos de filme, Harim (Talib Rasool), um músico iraquiano, explica e sintetiza:
– “Já ouviu falar na Ordem 17? Ela dá a esses mercenários liberdade para agirem como caubóis. Imunidade total. Eles varrem o país matando quem quiserem. Nenhuma pergunta é feita. Nós os detestamos ainda mais que o exército.”
Dois amigos de infância, inseparáveis. Agora, um deles está morto
As primeiras tomadas de Rota Irlandesa mostram um homem num navio – veremos depois que ele está no estuário do Rio Mersey, em Liverpool. O homem, veremos depois, chama-se Fergus (Mark Womack, numa atuação espetacular); ele ouve em sua cabeça uma voz ao telefone. Veremos depois que é a voz de Frankie, que ligou insistentemente para Fergus do Iraque, e deixou diversas mensagens na secretária eletrônica.
Começam os créditos iniciais, e vemos dois garotos, adolescentes aí por volta dos 16 anos, correndo e brincando num navio igual àquele em que Fergus adulto estava. Os garotos conversam sobre os lugares para onde irão. Um fala em África. Outro diz França, e o amigo responde que a França está muito perto – que tal o Brasil? Ou a Índia? Austrália, do outro lado do mundo! Nova Zelândia…
Com maestria, o roteirista Paul Laverty nos mostra que Fergus e Frankie eram amigos desde crianças, o melhor amigo um do outro, unha e carne.
Terminam os créditos iniciais, e vemos Fergus, o homem do navio, entrando em uma igreja. Um letreiro explica: “Liverpool, 2007”. Há um caixão diante do altar. Uma jovem e bela mulher que estava de pé junto do caixão se vira para sair da igreja, e vê Fergus caminhando em sua direção. É, evidentemente, a mulher de Frankie.
Quando os dois se encontram, ela bate nele, dá alguns tapas nele, antes de prosseguir seu caminho rumo à porta da igreja.
É muito óbvio que Rachel (Andrea Lowe, nas fotos abaixo), a viúva, culpa Fergus pela morte de Frankie.
Uma espanhola entrega a Fergus um celular que era de Frankie no Iraque
Fergus pede a um homem – certamente um sacristão, alguém que trabalha na igreja – para ver o corpo. O homem diz que não pode, o caixão veio selado, nem a família pôde ver o corpo, é impossível, o morto sofreu terrivelmente, o corpo está despedaçado.
Fergus espera que todos saiam, que a igreja seja fechada e, com um pedaço de metal, arromba o caixão. Tira a gravata que haviam posto em Frankie – “Você nunca gostou de gravatas!”.
Corta, e estamos no dia seguinte, na cerimônia religiosa em honra ao morto, pouco antes do enterro. Um homem num belo terno faz a elegia a Frankie:
“Frankie, o homem, não mudou quando deixou o Exército e veio trabalhar conosco na Tyree. As habilidades que aprendeu como soldado, ele usava para proteger engenheiros, que traziam água e eletricidade ao sofrido povo de Bagdá; para proteger médicos, cirurgiões, especialistas em nutrição infantil, jornalistas, conselheiros eleitorais. Ele era um protetor, um construtor de nações, uma força para o bem.”
Ao fim da cerimônia, Fergus vê uma jovem mulher de pé, num canto da igreja. Vai até ela. Chama-se Marisol, Mari (é interpretada pela bela e ótima espanhola Najwa Nimri, de O Que Você Faria?/El Método, Lúcia e o Sexo, Os Amantes do Círculo Polar). Vê-se que os dois se conhecem muito bem. Num diálogo rápido, Fergus conta que esteve preso – brigou com dois sujeitos que riam de seu amigo Craig (Craig Lundberg) pelo fato de ele ser cego; os dois caras foram parar no hospital e ele, na cadeia, e a polícia ficou com seu passaporte.
Mari entrega a Fergus um pequeno embrulho, e explica que Jamie (Jamie Michie) levou para ela, a pedido de Frankie; era um celular, que Frankie pedia que fosse entregue de qualquer jeito a Fergus.
Uma trama brilhante – que também é violenta, apavorante
O homem de terno caro que fizera a elegia a Frankie, Haynes (Jack Fortune), e mais um colega, Walker (Geoff Bell), explicam a Rachel e aos parentes mais próximos do morto o que sabem sobre a morte dele. Os dois são, o espectador percebe facilmente, figurões importantes na empresa de segurança que empregava Frankie – veremos em seguida que Fergus também havia trabalhado na empresa, e tinha sido ele que convencera Frankie a se empregar nela também.
A explicação oficial que eles dão é que o carro usado por Frankie e três companheiros foi atacado por terroristas na Rota Irlandesa, a dois quilômetros do aeroporto de Bagdá.
Como amigo íntimo do morto, considerado como um parente pela família, Fergus está presente na reunião em que os patrões explicam como foi a morte de Frankie. Faz diversas perguntas. De imediato suspeita que a história oficial que está sendo contada não é a verdadeira.
O telefone celular que Frankie mandou entregar a ele confirmará as suspeitas.
Estamos, aí, com uns 20 minutos de filme. A narrativa que virá a seguir é um brilho – e é também violenta, apavorante.
Pode-se não concordar com as idéias de Ken Loach – mas seus filmes são sempre ótimos
Rota Irlandesa é um dos grandes filmes que falam da guerra do Iraque e da virtual ocupação do país pelas tropas americanas e inglesas, da violência permanente no país dividido entre etnias rivais e dos traumas que esse estado de guerra civil causa nos jovens enviados para lá.
Vem se juntar a outros belos filmes, como o extraordinário No Vale das Sombras/In the Valley of Elah, de Paul Haggis, o sensível Gente de Sorte/The Lucky Ones, de Neil Burger, O Mensageiro, de Oren Moverman. Esses três filmes mostram muito bem as feridas profundas que a guerra do Iraque deixa em quem passou por ela – exatamente como Rota Irlandesa.
O filme de Loach, no entanto, além de mostrar as chagas abertas na consciência de quem participa da guerra, tem também uma motivação política. Jogo de Poder/Fair Game, de Doug Liman, e Zona Verde/Green Zone, de Paul Greengrass, dissecam como o governo George W. Bush mentiu ao mundo para justificar o ataque ao Iraque; Rota Irlandesa visa, claramente, a expor o papel horroroso dessas empresas de segurança que em geral contratam ex-soldados e os transformam em mercenários.
Ken Loach é incansável, incurável. Já fez filmes mostrando os efeitos feios da globalização – como Mundo Livre/It’s a Free World, de 2007. Aqui, investe contra a terceirização da guerra.
Pouquíssima gente, em sã consciência, ousaria defender guerras. Pode-se, com todo o direito, defender a globalização, o regime capitalista – e quem o fizer poderá ficar incomodado com os filmes de Ken Loach. A questão é que não tem jeito: seus filmes são, sempre, da mais absoluta competência.
O roteirista consegue transformar em simples e inteligível uma trama complexa
Rota Irlandesa foi escolhido para participar da mostra competitiva em Cannes e também dos festivais de Londres e Toronto. Não levou prêmios, no entanto.
Loach é um fantástico diretor de atores, e todo o elenco – formado por nomes não muito conhecidos, ao menos para mim – está uniformemente impecável. Mark Womack, que faz o protagonista Fergus, tem um desempenho impressionante. É nascido em Liverpool mesmo, e portanto seu sotaque – pesadíssimo – é original. Tem quase 50 títulos no currículo, a maior parte em filmes e séries para TV.
Também é basicamente de filmes e séries de TV a experiência dessa Andrea Lowe, a jovem de imensa beleza que interpreta Rachel. Como Mark Womack, tem uma carreira já vasta, com quatro dezenas de títulos. Deveria fazer mais filmes.
O roteirista Paul Laverty mostra que tem talento sobrando. Sua história é fascinante, e ele consegue transformar em simples e inteligível uma trama complexa. Não fica apenas na política – vai fundo no exame dos personagens. A relação entre Fergus e Rachel, a linda viúva do grande amigo dele, é extraordinária, de uma imensa riqueza.
Ken Loach é um gigante.
Anotação em fevereiro de 2013
Rota Irlandesa/Route Irish
De Ken Loach, Inglaterra-França-Itália-Bélgica-Espanha, 2010
Com Mark Womack (Fergus), Andrea Lowe (Rachel),
e Geoff Bell (Alex Walker), John Bishop (Frankie), Stephen Lord (Steve), Craig Lundberg (Craig), Jamie Michie (Jamie), Trevor Williams (Nelson), Jack Fortune (Haynes), Talib Rasool (Harim), Najwa Nimri (Marisol), Bradley Thompson (jovem Fergus), Daniel Foy (jovem Frankie),
Roteiro Paul Laverty
Fotografia Chris Menges
Música George Fenton
Montagem Jonathan Morris
Produção Sixteen Films, Why Not Productions, Wild Bunch. DVD Vinny Filmes.
Cor, 110 min
***1/2
3 Comentários para “Rota Irlandesa / Route Irish”