O realizador finlandês Aki Kaurismäki nos brinda com uma pérola rara, uma gema, um encantamento, este O Porto/Le Havre.
Isso dito, faço um preâmbulo.
Cada pessoa, evidentemente, tem seu gosto pessoal, suas preferências. Há quem goste de ler sobre filmes antes de vê-los – até para decidir se vai ver ou não. Eu, em particular, não gosto de ler absolutamente nada. Gosto de ser surpreendido a cada revelação da história – e prefiro não ser influenciado por outras opiniões. Vou atrás de outras opiniões depois de ver o filme, mas nunca antes.
Nestas minhas anotações, procuro sempre não dar spoilers, não revelar os fatos que acontecem depois dos 20 minutos iniciais de um filme. Mesmo assim, é claro que o que digo aqui revela coisas sobre a trama, a história, o clima do filme.
E então me ocorreu fazer aqui esse preâmbulo, para alertar o eventual leitor: se ele for do tipo que prefere a total surpresa, melhor não ler este texto.
O tema é duro, pesado, mas o filme tem humor, situações engraçadas
O Porto trata de um tema duro, pesado, importantíssimo, sério: a imigração, em especial a imigração ilegal de gente dos países miseráveis para os países ricos. Os personagens são todos pobres – não miseráveis, mas pobres.
Ele se enquadra, portanto, num seleto grupo de grandes filmes recentes, como, só para dar alguns exemplos, os americanos Uma Vida Melhor, de Chris Weitz (2011), Território Restrito, de Wayne Kramer (2009), os europeus London River, de Rachid Bouchareb (2009), Bem-vindo, de Philippe Lioret (2009), Flor do Deserto, de Sherry Hormann (2009), Princesas, de Fernando León de Aranoa (2005), Coisas Belas e Sujas, de Stephen Frears (2002), Um Lugar Chamado Brick Lane, de Sarah Gavron (2007), Lila Diz…, de Ziad Doueiri (2004).
São, todos esses filmes citados, dramas, barras pesadas – além de muito bons.
O Porto também é ótimo – mas não é um drama barra pesada.
Tem até humor, situações, momentos engraçados. Não situações e momentos escrachadamente cômicos, de se gargalhar, mas de um tom suavemente bem humorado, engraçado. Me peguei dando sorrisos, até risadas (nunca gargalhadas, no entanto), depois que, já na segunda metade do filme, achei que tinha entendido o tom da narrativa de Aki Kaurismäki.
Porque tem isso: pode-se demorar um pouquinho a perceber o tom que o realizador imprime a seu filme.
Eu demorei bastante. Pode ser porque eu seja mesmo lerdo, mas agora, enquanto escrevo, chequei com Mary (e ela, ao contrário de mim, é safa, rápida, inteligente), e ela confirma que também demorou a perceber o tom.
Essa questão explica por que quis fazer aquele preâmbulo.
Inicialmente, tinha pensado em botar já no lead, no primeiro parágrafo, que Aki Kaurismäki nos brinda com um conto de fadas. Mas aí pensei melhor, e vi que dizer isso de cara seria um spoiler.
Tudo bem: se algum eventual leitor chegar até aqui sem ter visto o filme, o problema é dele. Eu bem que avisei que seria melhor não ler.
O Porto é um conto de fadas. Não é um filme realista – de forma alguma. É uma visão propositadamente otimista, positiva, de uma das questões mais sérias, mais trágicas do mundo.
O Porto mostra o mundo de uma forma que todos nós, pessoas de bem, gostaríamos que o mundo fosse. Não como ele é, mas como gostaríamos que ele fosse.
O Porto é um conto de fadas, uma ode à amizade, à solidariedade.
O filme é quase uma oração, um belo texto religioso
Pensando um pouco mais, O Porto é quase uma oração. Quase um texto religioso, daqueles textos religiosos perfeitos, sem um pingo sequer de ódio, raiva, inveja, daqueles que só falam do bem, do respeito, do amor ao próximo, da felicidade de se fazer o bem.
Uma espécie assim de Sermão da Montanha.
Não sou bom em assuntos religiosos (como a rigor não sou bom em coisa alguma), mas pego aqui a primeira transcrição de um trecho do Sermão da Montanha que vi na internet:
Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o Reino dos Céus. Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Bem-aventurados os puros de coração, porque verão Deus. Bem-aventurados os Defensores da Paz, porque serão chamados filhos de Deus. Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus. Bem-aventurados sereis quando vos caluniarem, quando vos perseguirem e disserem falsamente todo o mal contra vós por causa de Mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus, pois assim perseguiram os profetas que vieram antes de vós.
Não sei se está perfeitamente fiel ao Evangelho Segundo São Mateus esse texto – mas, puta que pariu, que beleza de texto! Que beleza de significado – mas também que beleza de palavras.
Um diretor finlandês que tem especial predileção por rock
Pode parecer que esta minha anotação está doidona demais, mas o Sermão da Montanha tem a ver com O Porto. Marcel (André Wilms), o protagonista da história, cita especificamente o Sermão da Montanha.
O sobrenome de Marcel é Marx. O mesmo de Karl – era Karl que dizia que a religião era o ópio do povo, ou foi um de seus milhões de seguidores?
O finlandês Aki Kaurismäki é um sujeito de finíssimo senso de humor.
Conheço pouquíssimo de Aki Kaurismäki. Acho que, dele, antes deste Le Havre, eu havia visto só O Homem Sem Passado, de 2002, um filme que achei bastante estranho. Bom, mas estranho. Interessante, mas estranho.
De seu irmão, Mika Kaurismäki, vi Três Homens e uma Noite Fria, de 2008, e O Ciúme Mora ao Lado, de 2009. Filmes esquisitos, estranhos. Bons, interessantes, fascinantes mesmo – mas esquisitos, estranhos. De Mika sei que é mezzo finlandês, mezzo carioca: mora parte do ano no Rio de Janeiro, gosta de samba, fez os documentários Moro no Brasil e Brasileirinho – Grandes Encontros do Choro.
Mika, o mais velho, de 1955, gosta de samba e choro. Aki, de 1957, gosta de rock.
Obélix bateria a mão direita fechada na testa e diria: São loucos, esses finlandeses!
Aki Kaurismäki fez, em 1989, quando tinha, portanto, apenas 32 anos, o filme Cowboys de Leningrado vão para a América. The Leningrad Cowboys são o grupo de rock ou pop mais absolutamente improvável não só da Terra, mas do universo. A começar do próprio nome. Usam uns topetes gigantescos, como se fossem um bando de Elvis elevado à enésima da enésima potência, e se fazem acompanhar pelo Coro do Exército Vermelho. São os maiores gozadores da história da música popular. Perto deles, o Karnak de André Abujamra, o alasco-argentino Kevin Johansen, os argentinos Les Luthiers e Fernandez Fierro são sérios, formais, quadradões, caretas.
De repente, Kaurismäki interrompe sua história para mostrar um clipe musical
O Porto já passou da metade quando surge Little Bob. (Posso dizer isso primeiro porque não revela nada fundamental da trama em si, e segundo porque já avisei que quem quer ver o filme sem saber de nada dele não deveria ler este texto.)
Alguém sugere a Marcel Marx, o protagonista, necessitado de levantar enorme soma de dinheiro, que promova um show beneficente – que tal convidar Little Bob? Uma outra pessoa no bar diz que não dá, não tem jeito: Little Bob jurou que não volta a se apresentar em público até que Mimie (Myriam Piazza) volte para ele.
Esse é um momento especialmente bem humorado neste filme sério que trata de imigração ilegal, da Europa, a civilização mais adiantada do planeta, tomada pelo racismo e pela xenofobia.
Espalham-se pelos bairros pobres de Le Havre cartazes dizendo: “Little Bob – Le Retour”.
E temos uma música inteira de Little Bob. Como se fosse um clipe. Uma música inteira. A história do protagonista Marcel e sua mulher doente terminal Arletty (Kati Outinen), e de Idrissa (Blondin Miguel), o imigrante ilegal do Gabão que vai parar em Le Havre mas na verdade queria ir para Londres, se interrompe, e temos um clip de Little Bob.
Enquanto eu ouvia, fascinado, a apresentação de Little Bob, e tentava entender a forma com que Aki Kaurismäki usa a câmara para fazer seu clipe, Mary, sempre à frente, sempre mais esperta e rápida, concluía que de repente esse Little Bob existe mesmo.
Claro, óbvio (só eu não percebi): Little Bob existe.
Tá na Wikipedia em francês: “Little Bob é um grupo de rock francês muito inspirado no blues, no rhythm’n’blues e no rock inglês dos anos 1960. Foi composto de músicos vindos de horizontes diferentes (rock, blues e jazz). Little Bob é o apelido de Roberto Piazza, que às vezes foi chamado de Libero. Originário do Havre, nasceu em 10 de maio de 1945.”
Cacete: Little Bob-Roberto Piazza nasceu no mês em que o nazismo se rendeu!
Em seu conto de fadas, ode à amizade, à solidariedade, passado em Le Havre, Aki Kaurismäki botou um grupo de rock formado por um sujeito nascido exatamente ali, em Le Havre, e que andava meio obscuro, para fazer parte da história!
Parece que, a partir do filme, Little Bob voltou a fazer sucesso – bem, pelo menos algum sucesso – na França.
E o som do cara é bom. Cru, forte, básico – o velho e bom rock’n’roll filho do rhythm’n’blues.
O estilo é minimalista, a câmara fica paradona. E o trabalho de casting é excepcional
Não sei sobre os demais filmes desse finlandês maluco (haverá, por acaso, algum finlandês que não seja maluco?), mas, pelo que mostra em O Porto, Aki Kaurismäki tem a ver com Jim Jarmusch, especialmente o Jim Jarmusch do início.
São parecidos os estilos do finlandês Aki Kaurismäki, do americano Jim Jarmush e também do argentino Sebastián Borensztein, o autor de Um Conto Chinês.
O Porto é um filme minimalista. É adepto da teoria de que quanto menos, mais.
Por exemplo: a câmara de Aki Kaurismäki se mexe pouco.
Sempre repito que cinema vem do grego kinema, que significa movimento. Cinema são imagens em movimento. Moving images. Moving pictures. Quando ainda era bem jovem e dizia coisas interessantes, Godard disse que a fotografia é a verdade, e o cinema é a verdade 24 quadros por segundo. Uma das maiores belezas do cinema é travelling, a câmara que se movimenta em torno dos personagens. Talvez a maior das maiores belezas do cinema seja o plano-sequência, aquela tomada em que não há corte, em que a câmara persegue os personagens sem interrupção.
Em O Porto, Aki Kaurismäki – como Jim Jarmusch, como o argentino Sebastián Borensztein – persegue os planos fixos. A câmara se fixa num rosto, e fica lá. Não mexe. Muitas vezes o rosto também não se mexe. Fica lá paradão. Não o kinema, movimento, mas o estático, o paradão.
E como são belas as tomadas de O Porto.
Me peguei pensando, ao fim do filme, que uma das muitas (diversas, plurais) qualidades do filme é o casting, a direção de elenco.
O trabalho de casting de O Porto é de dar inveja a Federico Fellini, que os deuses o tenham.
Fellini entrou definitivamente para a História como um gênio. Uma das maiores qualidades de todos os seus filmes era a escolha do elenco. Os camaradas do casting de Fellini descobriam os rostos mais esquisitos, mais esdrúxulos, mais estapafúrdios, mais marcantes, mais fascinantes.
O casting de O Porto é felliniano.
Num filme que se faz em boa parte pela sucessão de retratos de pessoas – em tomadas paradonas, sem kinema, como se fossem fotografias, retratos –, a escolha dos retratados é fundamental. E foi brilhante o trabalho da equipe de casting.
Eu só conhecia dois dos atores que aparecem no filme: Jean-Pierre Darroussin, que faz o comissário de polícia Monet, e é um dos personagens principais da história, e Jean-Pierre Léaud.
Darroussin é um dos atores que estão em quase todos os filmes de Robert Guédiguian, o grande diretor de origem armênia, comunista sempre, que retrata a vida das pessoas humildes de Marselha, sua cidade.
Jean-Pierre Léaud, todo mundo sabe, foi e será eternamente Antoine Doinel, o alter-ego de François Truffaut, desde Os Incompreendidos, de 1959, até O Amor em Fuga, de 1979, passando também por filmes em que não era Antoine Doinel, As Duas Inglesas e o Continente e A Noite Americana.
Aqui, Léaud, bastante envelhecido (todos nós envelhecemos, uai!) faz o papel do denunciador. É o único personagem ruim dessa história que tem muitos personagens.
No belo, maravilhoso conto de fadas que Aki Kaurismäki nos mostra, só há um filho da puta.
Todos os demais são generosos, amigos, solidários.
O mundo deveria ser assim.
Aki Kaurismäki mostra, de fato, um mundo que todos nós gostaríamos que fosse real.
Anotação em novembro de 2012
O Porto/Le Havre
De Aki Kaurismäki, Finlândia-França-Alemanha, 2011
Com André Wilms (Marcel Marx), Kati Outinen (Arletty), Jean-Pierre Darroussin (comissário Monet), Blondin Miguel (Idrissa), Elina Salo (Claire), Evelyne Didi (Yvette), Quoc Dung Nguyen (Chang), Little Bob, ou Roberto Piazza (Little Bob, ou Roberto Piazza), Myriam ‘Mimie’ Piazza (Mimie), Pierre Étaix (dr. Becker), Jean-Pierre Léaud (o denunciador)
Argumento e roteiro Aki Kaurismäki
Fotografia Timo salminem
Montagem Timo Linnasalo
Produção Sputnik Oy, Pyramide Productions, Pandora Filmproduktion, arte France Cinéma, ZDF/Arte, The Finnish Film Foundation. DVD Imovision.
Cor, 93 min
***1/2
Boa dica. Quando quero asssitir um filme, na TV, apelo para os conselhos e sinopses de “50anosdefilmes”.Confesso que minha praia é “50anosdetextos” link favorito que acompanho diariamente. Mesmo porque de filmes não entendo nada e sendo assim prefiro me louvar no conhecimento do Sérgio e do português Manuel (ora pois). O Sérgio acha que entende de política, mas a verdade é que fala melhor de filmes e discos.
O tema de “Le Havre” a imigração me fascina. Sugiro ao Sérgio sobre memso tema o filme nacional “Olhos azuis” de José Joffily. Eu gostei, mas reservo-me a insignificância.
Por mim não teve problema algum, gosto de ler as sinopses de alguns filmes antes de assisti-los, principalmente teus textos.
Ultimamente é que não tenho feito isso. Como voce diz,estou me dando o direito de ser surpeendido.
Para variar, ” O Porto ” mais uma beleza de texto, Sergio. E, belas fotos também.
O filme é novíssimo, 2011, não deve ser difícil encontrá-lo aqui nas locadoras.
Sergio, não tería havido um engano teu na data de anotação deste filme no final do texto ?
Um abraço !!
Caríssimo Ivan, obrigado por chamar minha atenção para o erro. Claro que vi o filme em novembro de 2012, e não de 2013! Já corrigi, graças a você. Um abraço.
Sérgio
Como eu disse, não foi difícil encontrar o DVD deste filme. E, numa locadôra bem perto aqui de casa. Só não aluguei agora, porque estou com outros na frente mas, está certo.
Quanto ao detalhe da data, nem era preciso agradecer, amigo.
Um grande abraço !!
Olá, eu gostaria muito de saber qual é a banda que está tocando nos creditos do final do filme. vc sabe? adorei a música!!! por favor me diga.
att
Caro Emerson, infelizmente não posso ajudá-lo. Não sei qual é a música que toca nos créditos finais. Mas aqui vai a página do IMDb que relaciona as canções da trilha sonora:
http://www.imdb.com/title/tt1508675/soundtrack?ref_=tt_trv_snd
Um abraço.
Sérgio