Matador em Perigo, no original Wild Target, alvo selvagem, é um daqueles filmes ao mesmo tempo bobos e divertidos. E não é pouco bobo, não: é bobo demais. Mas também é divertido demais.
Acho que daria para criar uma tag – é praticamente um gênero do cinemão comercial. A tag, ou o gênero, poderia ter talvez o nome de Filmes Adversativos. Bobos, porém divertidos. Gostosos, mas todavia no entanto bobos.
Em alguns momentos, enquanto via aquela enorme quantidade de bobagem, me peguei atacado por uma culpa cristã por estar usando meu tempo escasso com aquilo – para, no momento seguinte, dar uma boa gargalhada.
Além de boba, a trama é um amontoado de clichês. Quantas comédias, meu Deus do céu e também da terra, já se fizeram sobre matador profissional?
Sem muito esforço e pesquisa, dá para lembrar: A Honra do Poderoso Prizzi (1985), de John Huston, com Jack Nicholson e Anjelica Huston, Matador em Conflito/Grosse Point Blank (1997), com John Cusack e Minnie Driver, O Matador/The Matador (2005), com Pierce Brosnan e Greg Kinnear; Sr. e Sra. Smith (2005), com Brad Pitt e Angelina Jolie.
E esses filmes todos são, assim como esta produção inglesa de 2009 aqui, comédias sobre assassinos profissionais. Se fosse para lembrar de filmes sérios sobre assassinos profissionais, aí a lista não acabaria nunca.
Deve haver mais filmes sobre assassinos – profissionais ou diletantes – do que sobre pessoas normais, gente como a gente.
Um matador profissional inglês que se veste sempre com bons ternos e está aprendendo francês
Tá. Mas então – um eventual leitor poderia talvez perguntar –, se você não tem especial predileção por filmes sobre assassinos profissionais, e este aqui é bobo, por que resolveu vê-lo?
Bem, em primeiro lugar, porque é inglês. Em segundo, porque tem Bill Nighy e Emily Blunt.
Estão muito bem, divertidíssimos, Bill Nighy e Emily Blunt, em Matador e Perigo. Mas porém todavia contudo, como este é um filme adversativo, estão também exageradíssimos.
Bill Nighy (nas duas primeiras fotos) é o matador profissional. Chama-se Victor Maynard, e é tido – veremos no desenrolar da trama – como um dos melhores da praça. Mata de forma limpa, rápida, metódica, sempre bem vestido, com um bom terno, enquanto estuda francês. Tem uns discos que ensinam conjugação de verbos franceses, e vai – seja no carro, seja em casa – ouvindo e repetindo os tempos verbais, as frases da moça de pronúncia claríssima.
Um matador profissional inglês que se veste sempre com bons ternos e está aprendendo francês. É preciso admitir: é um personagem interessante.
Victor seguiu a profissão do pai, que por sua vez havia seguido a profissão de seu pai. Os Maynards são matadores profissionais há três gerações – e mamãe Maynard (deliciosamente interpretada por Eileen Atkins), atualmente vivendo em confortabilíssima casa de repouso, em uma cadeira de rodas, mas ainda extremamente ativa, como se verá mais tarde na narrativa, preocupa-se com o fato de que o filho ainda não se coçou para produzir um herdeiro que prossiga a tradição familiar.
Numa visita de Victor a ela na casa de repouso, a sra. Maynard lembra ao filho que ele está agora com a idade que o pai dele tinha quando ele nasceu. Explícita a não mais poder, Mamãe Matadora mostra ao filho o crochêzinho azul que já anda preparando para o neto. E dá a Victor, como presente de aniversário alguns dias antecipado, um grosso álbum de recortes, com as notícias dos assassinatos que eles sabem muito bem ter sido perpetrados pelo atual Maynard matador. E acrescenta: ao final, ainda há muitas folhas em branco…
Em muitos de seus filmes, Bill Nighy overact, exagera nas caretas, nos gestos, na afetação. Basta a gente se lembrar dele como o velho cantor de rock em Simplesmente Amor/Love Actually. Não que ele seja um ator de uma nota só; sabe perfeitamente trabalhar contidamente em dramas, ou em filmes bem humorados porém sérios, como demonstra, por exemplo, em O Exótico Hotel Marigold.
Aqui, ele está o exagero do exagero.
Todos os gestos de Victor Maynard, frio assassino profissional, dos melhores, se não o melhor da praça, são afetadíssimos. Ele faz, por exemplo, caretinhas com os lábios. Em bom português, Victor Maynard tem um jeitão de veado. E percebe-se que não é um cara que teve muitas namoradas; talvez não tenha tido nenhuma.
O espectador será levado a questionar qual é a opção sexual do matador – se é que ele tem alguma.
Rose, a personagem de Emily Blunt, é uma profissional do trambique e amadora de sexo
Já Rose (o papel de Emily Blunt) fez algumas opções claríssimas na vida. Adora dar; não pode ver um homem que já quer dar. Rose é profissional do trambique – e uma profissional qualificadíssima. Rouba tudo o que pode, mesmo que não seja para ter, para usar, e sim para jogar fora no momento seguinte.
Não é propriamente uma cleptomaníaca. Não é uma doença – é só a mania, sem o peso da conotação psiquiátrica. Rouba porque gosta de roubar, porque isso a faz alegre.
Quando Rose aparece na narrativa, está preparando um golpe de 900 mil libras esterlinas envolvendo um auto-retrato de Rembrandt. O auto-retrato, de propriedade da National Gallery, está para ser vendido a um milionário russo; um amigo de Rose é restaurador da National Gallery, e fez uma cópia perfeita do Rembrandt.
O golpe de Rose será exibir o original para um milionário que deseja comprá-lo, um tal Fergusson (o papel de Rupert Everett), e em seguida, depois que um expert contratado por Fergusson tivesse examinado e garantido a autenticidade, num golpe de mestre, trocar o original pela cópia, e entregar gato por lebre.
Vemos Rose treinando seu golpe de mestre, e em seguida a vemos executando o dito golpe. Dá certo. Quando Fergusson e seus dois guarda-costas descobrem, a moça já tinha fugido com a fortuna.
Claro: Fergusson então contrata Victor Maynard para executar a garota que lhe passou a perna.
Num elenco maravilhoso, a garota Emily Blunt rouba a cena
Estamos aí, nesse ponto, com apenas 14 minutos de um filme que dura 98. Aos 14 minutos de filme, Victor Maynard começa a seguir Rose para matá-la.
Não é o caso, é claro, de adiantar mais nada da trama – a não ser o fato de que, pouco depois, surge na história um garotão chamado Tony, um tanto bobão, um tanto alheio ao mundo, um tanto desligado das coisas práticas da vida. Tony é interpretado por Rupert Grint, o ator que a partir dos 13 anos de idade encarnou Ron Weasley, o companheiro de Harry Potter. Rupert Grint, que trabalhou em outros filmes fora da franquia Harry Potter, como, por exemplo, o interessante Lições de Vida/Driving Lessons, de 2006, está ótimo no papel desse Tony viajandão. Tudo indica que ele, assim como Daniel Radcliffe e Emma Watson, seus colegas nas aventuras de Hogwarts, terá, se quiser, uma boa carreira como ator adulto.
Na Inglaterra, dá mais ator bom que chuchu na cerca.
Todos os coadjuvantes estão bem, nesta bobagem divertida. A veterana Eileen Atkins como Mamãe Matadora é impagável, Rupert Everett se dá bem como o milionário que se orgulha em dizer que não é gângster – mas age exatamente como um. Rupert Grint está ótimo como o Tony fumeta.
Bill Nighy, com todos os exageros e trejeitos, está divertidíssimo.
Mas quem rouba é Emily Blunt.
Sua Rose é uma absoluta delícia. Rose é exagerada para roubar, é exagerada para dar, é exagerada para beber, é exagerada para reclamar de tudo e todos, é exagerada para se vestir. Está sempre com sainhas bem curtas sobre meias pretas ou coloridas, sapatos imensos, echarpes de todas as cores possíveis. O deselegância londrinamente nada discreta de Rose faz lembrar Poppy, a personagem interpretada por outra fascinante jovem atriz inglesa, Sally Hawkins, em Simplesmente Feliz, de Mike Leigh.
Emily Blunt está muito longe de ter uma daquelas belezas perfeitas tipo Barbie ou Megan Fox. Também está bem distante da beleza clássica tipo Ingrid Bergman ou Elizabeth Taylor. É daquele tipo de beleza que vem em boa parte da força da personalidade.
O diretor Jonathan Lynn parece perdido de amor pela beleza de sua atriz. A câmara passeia pelo rosto e pelo corpo de Emily Blunt em êxtase.
É de 1983, a garota – nasceu na Grande Londres. Começou a carreira aos 20 anos, em 2003. Tinha 21 quando fez My Summer of Love, em 2004, dois anos de fazer o terceiro papel mais importante em O Diabo Veste Prada. Sou fã dela desde que vi My Summer of Love.
Talvez a gente precise mesmo de filmes divertidos, ainda que bobos, para não enlouquecer
Só fiquei sabendo que Matador em Perigo é uma refilmagem nos créditos finais. Neles se diz que o roteiro – assinado por Lucinda Coxon – se baseia no roteiro do filme Cible émouvante, de Pierre Salvadori.
Cible émouvante é de 1993, e foi o primeiro longa-metragen dirigido por Pierre Salvadori, de quem já vi Amar… Não Tem Preço e Uma Doce Mentira, duas comédias românticas com Audrey Tautou – a primeira, na minha opinião, é bobinha, e a segunda, bastante interessante.
Dou uma olhada no que diz o IMDb sobre Cible émouvante, e me baixa uma nuvem negra, pesada, sobre a cabeça.
A sinopse mostra que é exatamente a mesma história: “Na vida do assassino profissional de meia-idade Victor Meynard surgem duas pessoas: Antoine, um jovem que vira aprendiz de Victor, e Renée, uma ousada ladra que Victor foi contratado para matar.”
Até o nome do assassino profissional foi mantido; Antoine virou Tony, o que dá na mesma, e Renée virou Rose.
Os três personagens foram interpretados no filme francês original por Jean Rochefort, Guillaume Depardieu e Marie Trintignant.
É a lembrança de Marie Trintignant, filha de Jean-Louis e Nadine, que me fez ficar triste no momento em que escrevia, bem-humoradamente, sobre este filme divertido e bobo.
Não sei se o eventual leitor se lembra: Marie Trintignant, uma espécie assim de princesa do cinema francês, filha de uma respeitada roteirista, montadora, diretora, e de um imenso ator, dos maiores que já houve, diretor de poucas obras, morreu após ser brutalmente espancada pelo namorado.
Estava na flor dos 41 anos de idade, fazia um novo filme na Lituânia, dirigido pela mãe, enquanto estava para estrear na França seu mais recente trabalho, Janis et John, quando o namorado a espancou. Sobreviveu umas poucas semanas, para morrer num hospital próximo a Paris, no dia 1º de agosto de 2003.
Diante da lembrança de Marie Trintignant, perco inteiramente o jeito de continuar falando sobre Matador em Perigo.
Me ocorre, vagamente, que talvez, diante de tanta vileza da vida real, a gente precise desesperadamente de filmes divertidos, ainda que bobos, ainda que falando sobre assassinos, para não enlouquecer.
Anotação em fevereiro de 2013
Matador em Perigo/Wild Target
De Jonathan Lynn, Inglaterra-França, 2009
Com Bill Nighy (Victor Maynard), Emily Blunt (Rose), Rupert Grint (Tony),
e Rupert Everett (Ferguson), Eileen Atkins (Louisa Maynard), Martin Freeman (Hector Dixon), Gregor Fisher (Mike), Geoff Bell (Fabian)
Roteiro Lucinda Coxon
Baseado no roteiro do filme Cible émouvante, de Pierre Salvadori
Fotografia David Johnson
Música Michael Price
Montagem Michael Parker
Produção Magic Light Pictures, CinemaNX, Isle of Man Film, Entertainment Film Distributors, Matador Pictures. DVD Paramount.
Cor, 98 min
**1/2
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