Um Amor Verdadeiro/One True Thing, que Carl Franklin dirigiu em 1998, é um belo filme. Um drama familiar bastante barra pesada – e não poderia ser diferente, porque trata, não exclusivamente, mas com precisão cortante, de uma doente terminal e suas últimas semanas de vida.
Não são poucas as qualidades do filme, mas a maior delas é, sem dúvida, o elenco. Meryl Streep teve uma de suas 17 indicações ao Oscar, das quais três resultaram na premiação, e mais uma de suas muitíssimas indicações ao Globo de Ouro e ao prêmio do Screen Actors Guild, o Sindicato dos Atores. Está brilhante, como sempre. William Hurt também está ótimo, e a então bem jovem Renée Zellweger tem um dos melhores desempenhos de sua carreira.
Todo o elenco secundário está excelente também. Mas o brilho maior é desses três atores citados no parágrafo acima, os protagonistas desta história amarga.
As primeiras imagens que vemos, em cores um tanto desbotadas, para indicar que se trata do passado, são de uma família passeando de carro: o pai, George Gulden (William Hurt), ao volante, a mãe, Kate (Meryl Streep), no banco da frente, e os dois filhos no banco de trás – uma garotinha mais velha, um menino mais novo.
Corta, e vemos um close-up do rosto Renée Zellweger, no papel de Ellen, a garotinha da sequência anterior, agora adulta. Renée parece ter bem menos que os 29 anos que tinha em 1998, quando o filme foi lançado.
A primeira frase que Ellen diz é: “Nunca fui muito próxima de minha mãe quando era mais nova”.
Ellen está sendo interrogada na sala de um promotor. Ela pergunta se precisará de um advogado, e o promotor (interpretado por James Eckhouse), que a trata de forma extremamente educada, polida, cortês, afirma que ela não está sendo acusada de nada; que todos ali naquele escritório sabem que esse tipo de coisa acontece muitas vezes em casos de pacientes terminais, mas aquela é uma cidade pequena, as pessoas falam, e o promotor chefe quer ter a certeza de que examinou todos os fatos.
Ao longo de toda a narrativa, aparecerão trechos da conversa entre Ellen e o promotor, entremeados com cenas da vida da família Gulden, que, naturalmente, ocupam a maior parte do filme.
O espectador perceberá que às vezes Ellen não responde exatamente com a verdade a algumas das perguntas que lhe são feitas. As perguntas, vai-se percebendo desde o início, são para determinar como exatamente se deu a morte de Kate, a mãe de Ellen.
Uma jovem workaholic, competitiva, que tinha até um certo desprezo pela mãe dona de casa
Ellen formou-se em Harvard. Trabalha como jornalista em uma revista importante de Nova York. É trabalhadora, dedicada, cheia de garra, ambiciosa, competitiva, como tantos jovens que dão tudo para vencer na profissão em que estão se iniciando.
Ela já havia dito que nunca havia sido muito próxima da mãe, enquanto crescia. Veremos que, na verdade, Ellen não tinha qualquer admiração pela mãe. Jovem workaholic, voltada para a profissão, tinha até mesmo um certo desprezo pela mãe, que sempre havia sido uma dona de casa.
E Kate era mesmo uma dedicada dona de casa, uma dona de casa modelo. Mantinha a casa ampla, confortável, espaçosa, na sua pequena cidade suburbana de Langhorne (subúrbio no sentido americano do termo, o contrário do brasileiro – subúrbio como lugar de gente de classe média alta) sempre como um brinco. Era exímia cozinheira, gostava de decoração, de reformas na casa. Tinha um grupo de amigas, as Minnies, sempre empenhadas em atividades típicas de donas de casa: cuidavam da decoração de Natal das ruas centrais da cidade, organizavam as festas de Haloween das vizinhanças, faziam reuniões periódicas.
Tudo o que as típicas donas de casa, profissão mulher do lar, fazem. Tudo o que Ellen, mulher voltada para a profissão, achava bobo, inútil.
O modelo de vida, para Ellen, era o pai.
George era professor de literatura, depois chefe de departamento na universidade, adorado pelos alunos, respeitado na vizinhança. Tinha um livro de ensaios publicados, e estava terminando mais um volume. Tinha também um grande romance sendo escrito e reescrito há muitos anos.
Tinha-se na mais alta conta do mundo. Julgava-se um novo Fitzgerald, um novo Hemingway.
E Ellen acreditava nisso, e também tinha o pai na mais alta conta do mundo.
Quando publicava uma matéria na revista da metrópole, queria saber a opinião do pai. E o pai fazia elogios – entremeados a um monte de pequenas críticas, ponderações, sugestões. Afinal, Ellen era uma jovem, uma novata, uma iniciante, e ele era o grande especialista em texto.
“Você tem um diploma de Harvard, mas onde está seu coração?”
Quando os médicos descobriram o câncer de Kate, George não teve dúvida: pediu a Ellen que passasse uns meses em casa, cuidando da mãe – e, claro, da casa, e dele.
Ela tentou argumentar. Lembrou que tinha um emprego, que estava começando a carreira, que não podia largar tudo, deixar Nova York e mudar de volta para a casa dos pais. Que se contratasse uma enfermeira.
George retrucou que Kate jamais admitiria uma enfermeira dentro de casa. E saiu-se com esta frase:
– “Sua mãe precisa de você, Ellen! Jesus Cristo, você tem um diploma de Harvard, mas onde está seu coração?”
E então Ellen cede. Abandona tudo, volta para a casa dos pais, vira dona de casa – queimando-se em frustração, em desespero.
A partir daí – estamos então ainda bem no começo da narrativa –, o que Um Amor Verdadeiro vai mostrando é o avanço célere da doença de Kate, e como eram profundamente, terrivelmente equivocadas as opiniões que Ellen tinha até então a respeito do seu pai e de sua mãe.
Na verdade, na verdade, Ellen vai descobrindo – assim como o espectador – que ela não conhecia nada, nada, a respeito do seu pai e de sua mãe. A mãe era muito mais forte do que ela imaginava. E o pai é um caráter duvidoso, um poço de egoismo escondido sob uma camada espessa de vaidade e arrogância.
Uma estranha sensação de estar invadindo a privacidade daquela família
Foi a segunda vez que vimos o filme. Na verdade, não me lembrava de já tê-lo visto – é um problema normal, creio, para quem vê tantos filmes e já não tem a memória de uma criança. Só quando o filme estava aí com uns dez, quinze minutos, foi que tive a certeza de que já tinha visto. Quando terminou, fui ver minhas anotações, e chequei que, sim, tínhamos visto em 2000, 12 anos atrás. Na época, não comentei nada sobre o filme; apenas anotei os dados básicos da ficha técnica, e a data.
Na revisão, agora, achei que talvez o diretor Carl Franklin e a roteirista Karen Croner pudessem ter enxugado um pouquinho a história; os 127 minutos de duração do filme acabam sendo um tanto longos demais.
Há também o normal desconforto de se ver filmes que falam de doenças terminais.
Em alguns momentos, tive uma sensação estranha, de estar invadindo a privacidade daquela família. Como se aquela dor pertencesse exclusivamente aos Gulden.
Me ocorreu também que muito possivelmente o romance em que a roteirista Karen Croner se baseou deve ter muitos elementos autobiográficos.
A autora do romance é Anna Quindlen. Nasceu em 1952, foi jornalista, trabalhou no New York Post e no New York Times, ganhou um Pulitzer. Deixou o jornalismo em 1995 para se dedicar totalmente à literatura. One True Thing, publicada em 1994, foi sua segunda novela, e esteve na lista dos mais vendidos por semanas.
E, sim, a mãe dela morreu de câncer, quando Marie Quindlen tinha 19 anos.
Uma defesa suave, mas incisiva, do direito à morte digna
O diretor Carl Franklin tem trabalhos também como ator e roteirista. Seus maiores sucessos estão bem distantes dos dramas intimistas, familiares, como este Um Amor Verdadeiro. É autor de bons filmes policiais, de ação, como O Diabo Veste Azul (1995), feito imediatamente antes deste filme aqui, Por um Triz/Out of Time (2003) e Crimes em Primeiro Grau/High Crimes. Este último é com Morgan Freeman; os dois primeiros são com Denzel Washington. Como Denzel e Freeman, Carl Franklin tem talento e a pele negra. Gente de muito talento, o cinema americano tem demais; diretores veteranos, testados, de sucesso, com a pele negra, esses são poucos, infelizmente, por enquanto.
Leonard Maltin deu 3.5 estrelas em 4, e sua sinopse vai bem ao cerne da história: “Drama familiar excepcional, emocionante, sobre uma jovem mulher forçada a temporariamente voltar para a casa dos pais e a se confrontar tanto com a mãe (uma competente dona de casa com quem ela nunca se relacionou bem) e com o pai, um leão do mundo literário (de quem ela sempre teve uma imagem idealizada). Atuações soberbas e um constante tom de verdade são os diferenciais desta adaptação de Karen Croner do best-seller de Anna Quindlen.”
Para mim, o filme tem ainda uma outra grande qualidade. De maneira suave, não como um berro, mas como uma voz calma, porém incisiva, Um Amor Verdadeiro faz uma bela defesa de um direito humano tão básico, tão fundamental, mas ainda muito pouco reconhecido, mesmo em diversos dos países mais civilizados: o direito à morte digna.
Sim, é um belo filme.
Anotação em agosto de 2012
Um Amor Verdadeiro/One True Thing
De Carl Franklin, EUA, 1998
Com Renée Zellweger (Ellen Gulden), Meryl Streep (Kate Gulden), William Hurt (George Gulden), Tom Everett Scott (Brian Gulden), Lauren Graham (Jules), Nicky Katt (Jordan), James Eckhouse (o promotor), Patrick Breen (Tweedy), Gerrit Graham (Oliver Most), David Byron (Senador Sullivan)
Roteiro Karen Croner
Baseado no romance de Anna Quindlen
Fotografia Declan Quinn
Música Cliff Eidelman
Produção Monarch Pictures, Ufland, Universal Pictures
Cor, 127 min
R, ***
Título na França: Contre-jour. Título em Portugal: Podia-te Acontecer.
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