Margin Call – O Dia Antes do Fim, sobre a gigantesca crise financeira que explodiu em setembro de 2008, é um filme com diversas características bem fascinantes. Por exemplo: é uma produção independente, feita à margem dos grandes estúdios – mas tem grandes nomes no elenco.
Grandes nomes: Kevin Spacey, Jeremy Irons, Demi Moore, Stanley Tucci, Paul Bettany. No entanto, o personagem que mais se destaca é interpretado por um garotão pouco conhecido e de nome esquisito, Zachary Quinto.
É o primeiro longa-metragem do diretor, J.C.Chandor, que também criou o argumento e o roteiro. No entanto, apesar de estreante no longa-metragem, Chandor, com 15 anos de experiência no cinema publicitário e em documentários, fez um filme de narrativa sóbria, clássica, quase “acadêmica”, a designação usada por 11 entre 10 críticos de cinema para falar mal de uma obra. Não há criativol algum – passa-se longe de quaisquer fogos de artifício.
Mais ainda: ao contrário de tantos filmes recentes, a narrativa não tem um ritmo frenético, aquela estética pós-MTV, com tomadas rápidas, montagem acelerada, mais informação por segundo do que a mente humana pode captar. O filme passa ao largo daquilo que chamo de qual Podendo-Complicar-a-Narrativa,-Por-que-Simplificar? O ritmo do filme chega até a ser um pouco suave, lento, em comparação com boa parte do que se faz atualmente.
Um filme virulento, forte – mas o tom não é estridente
É um filme virulentamente anti-capitalismo, ou, no mínimo, anti o tipo de capitalismo selvagem que se pratica em Wall Street e na City londrina desde, pelo menos, os anos Reagan e Thatcher, em que as grandes corporações financeiras fazem o que bem entendem, sem regras ou regulamentos, criam artifícios para produzir lucros anormais, e pagam salários e gratificações absurdos, irreais, distantes anos-luz da economia real.
É virulento. Tem uma octanagem altíssima – e, nesse aspecto, faz lembrar alguns outros panfletos recentes contra as mazelas do capitalismo, O Corte/Le Couperet, de Costa-Gavras, O Que Você Faria/El Método, de Marcelo Piñero, Segunda-feira ao Sol/Lunes al Sol, de Fernando Leon de Aranoa. E, no entanto, o tom do filme não é estridente. Ele não berra. Mostra as situações quase como se fosse um documentário, uma reconstituição de fatos reais.
Tem um tom quase de documentário, de reconstituição de fatos reais. No entanto, ao contrário de Grande Demais Para Quebrar, outra produção independente recente sobre exatamente o mesmo tema, é uma obra de ficção.
Grande Demais Para Quebrar põe em cena alguns dos personagens principais da explosão da crise: o então secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Henry Paulson, o presidente de Federal Reserve, o banco central americano, Ben Bernanke, o presidente, CEO, do Lehman Brothers, Richard Fuld, o multimilionário e investidor Warren Buffett, entre outros. Os personagens reais aparecem lá com seus nomes reais; toda a narrativa pretende reconstituir situações e fatos tal qual aconteceram.
Ótimo filme, dirigido pelo experiente, tarimbado, talentoso Curtis Hanson, Grande Demais Para Quebrar despeja sobre o espectador várias toneladas de informações nos seus primeiros minutos – através de noticiário da TV, fala-se dos antecedentes da crise, a bolha imobiliária no mercado americano, o aumento desenfreado dos preços dos imóveis, as jogadas dos bancos de investimento com os papéis das hipotecas imobiliárias, os lucros gigantescos – até que, finalmente, em setembro, a bolha estourou, com a virtual falência de uma das maiores instituições bancárias dos Estados Unidos e do mundo, o Lehman Brothers.
O que se mostra é um banco como o Lehman Brothers – mas o filme não dá nome aos bois
Este Margin Call trata exatamente do mesmo tema, mas de maneira bem diferente. Completamente diferente.
É ficção. Não traz, hora nenhuma, aquela frase que atrai muitos espectadores, “Baseado em uma história real”. Vejo que um dos cartazes para a divulgação do filme traz a frase prima dessa aí, “Inspired by a true story”.
Poderia perfeitamente ter usado isso nos créditos iniciais, ou nos créditos finais. Porque é, sim, evidentemente, inspirado numa história real. Quando um filme se define como inspirado numa história real, está subentendido que o roteirista tomou liberdades, licenças poéticas – trocou nomes, substituiu um personagem por outro, mas, basicamente, fez uma ficção em cima de fatos reais.
O diretor e roteirista J.C.Chandor tomou o cuidado de não dar nome aos bois. Mostra uma grande instituição financeira de Wall Street, descreve as 36 horas vividas dentro dela antes da eclosão da grande crise, da exposição de sua situação pré-falimentar – mas não dá o nome da instituição. Poderia ter inventado um nome, mas preferiu optar pela ausência de nomes.
Teve, então, a liberdade de criar seus personagens, suas situações. Mas qualquer pessoa com um mínimo de informação sabe que se trata do Lehman Brothers. Ou um banco como o Lehman Brothers, cuja falência, em setembro de 2008, colocou o sistema financeiro à beira do que se costuma chamar de crise sistêmica – aquela em que a quebra de um banco leva à queda de outros, como peças de dominó.
Tendo tomado o cuidado de não dar nome ao banco que era grande demais para quebrar mas quebrou, Chandor não foi nada sutil ao criar o personagem do CEO da sua instituição financeira teoricamente (e só teoricamente) fictícia: o CEO, que chega de helicóptero na madrugada ao gigantesco prédio do banco, na pele do inglês Jeremy Irons, chama-se John Tuld. O CEO do Lehman’s, é bom repetir, chamava-se Richard Fuld. Chandor-Hortelino trocou uma letra só do sobrenome.
Um exército de Recursos Humanos chega para cortar cabeças
O filme abre com um exército de funcionários entrando em um dos andares do prédio da instituição financeira, o andar em que trabalham traders, corretores, e o pessoal da área de fiscalização de risco. O exército que chega atrai as atenções de todos, é claro, mas a ordem é que se tente ignorar a invasão e se continue a trabalhar normalmente – como se isso fosse possível.
Cheguei a pensar que fossem agentes federais, gente da SEC, a versão americana da CVM, Comissão de Valores Mobiliários, guardados talvez por gente do FBI. Mas o filme rapidamente mostra que o exército que invade aquele andar do prédio é gente do RH. Está ali para cortar cabeças.
Dois rapazes, bem jovens, são mostrados pela câmara. O mais alto, compridão, chama-se Peter Sullivan (o papel de Zachary Quinto), na firma há alguns poucos anos; o mais baixo é Seth Bregman (Penn Badgley, os dois na foto acima), um corretor júnior. Temem, é claro, que suas cabeças rolem. Mas a cabeça que veremos rolar é a do chefe dos dois, Eric Dale (o papel do sempre bom Stanley Tucci, que aqui está brilhante).
Eric Dale está na empresa há 19 anos. Sua decapitação vai durar menos de três minutos.
Duas moças entram na sala dele e pedem para que ele as acompanhe até uma outra sala. Dão o recado de forma rápida, sintética, brutal: a firma oferece a ele o pagamento de meio salário durante os seis meses seguintes; ele tem até o final da tarde seguinte para aceitar esse acordo, ou então a oferta deixará de existir; seu telefone celular e seu acesso ao computador e a qualquer outro bem da empresa estão cortados a partir daquele momento.
Eric Dale diz que estava naquele momento trabalhando em um documento importante – seria possível concluir o trabalho?
Não. Aquele funcionário ali vai acompanhar o senhor até sua sala, para que retire seus objetos pessoais, e em seguida vai levá-lo até a saída do prédio.
Antes de ser escoltado até a calçado do prédio, no entanto, Eric Bale consegue passar para Peter Sullivan, o jovem compridão, um pen-drive, com o material em que estava trabalhando. Diz para Peter, até minutos atrás seu funcionário, seu subalterno: – “Tome cuidado”.
E em seguida é botado no olho da rua.
O alerta vai sendo passado de chefe para o chefe do chefe, para o chefe do chefe do chefe
Depois do fim do expediente daquele dia, Peter Sullivan permanece na sua estação de trabalho examinando o que seu antigo chefe havia deixado para ele. Depois das 10 horas da noite, liga para seu colega Seth, que estava num bar enchendo a cara com a pessoa que passara a ser o superior imediato dos dois, Will Emerson (Paul Bettany). Convence os dois a voltarem para o escritório.
Embora já de cara um tanto cheia, Will percebe a gravidade do que Peter mostra para ele. Liga para seu superior, Sam Rogers (Kevin Spacey, na foto). Este, por sua vez, ligará depois para o superior dele, Jared Cohen (Simon Baker). Este chamará outro chefão, no caso uma chefona, Sarah Robertson (Demi Moore). E já no início da madrugada, de helicóptero, chegará o presidente do banco, o CEO, o chefão, John Tuld, o papel de Jeremy Irons.
Numa grande sala de reuniões agora apinhada de gente, o chefão John Tuld pedirá ao rapaz Sullivan que explique o que foi exatamente que ele descobriu. E sugere que ele fale de uma maneira bem explicada, como se estivesse falando para uma criança pequena, ou um cachorro.
A explicação de Sullivan, embora o patrão tenha exigido que fosse clara, inteligível por uma criança pequena, vem, mesmo assim, em economês. Ou melhor, numa sublíngua do economês, o financeirês, ou Wallstreetês.
Mas qualquer espectador poderá inferir, a partir daquele jargão, o que aconteceu: a bolha estourou.
Ou então, se se preferir, em uma linguagem mais franca: fodeu.
Todo mundo, literalmente, se deu mal – menos os grandes bancos
O que este belo filme mostrará, no entanto – exatamente como o fez Grande Demais para Quebrar –, é que fodeu para todo o mundo, literalmente, menos para os grandes bancos.
A partir da explosão da bolha especulativa que começou com as hipotecas de imóveis americanos, os países mais desenvolvidos do mundo entraram em uma recessão da qual não conseguiram sair até hoje. Se os Estados Unidos começavam a dar, neste início de 2012, sinais de pequena melhoria, a Europa afundava-se cada vez mais na recessão. Milhões de empregos na economia real foram cortados. Mas os grandes bancos, que deram origem à farra, não se deram mal. Continuaram pagando fortunas absurdas para seus diretores. E, apesar da oportunidade perfeita, nenhuma regra, nenhuma regulamentação importante foi adotada pelos países mais ricos para restringir a área de manobra do sistema financeiro.
Um roteiro com bons personagens, convincentes, bem estruturados
O roteirista e diretor Chandor conseguiu criar bons personagens. O retrato que faz de Sam Rogers, o chefe do andar daqueles traders, é convincente, assim como o de Eric Dale – e as interpretações de Kevin Spacey e Stanley Tucci, dois grandes atores, são excelentes.
Mas talvez o personagem mais emblemático seja o do garotinho Seth Bregman, o corretor júnior interpretado por Penn Badgley. O banco está desabando, o mundo está prestes a desabar, e Seth Bregman passa o filme inteiro, as 36 horas cruciais antes do fim, interessado em saber quanto cada um deles ganha anualmente. Se ele, um júnior, havia ganho, no ano anterior, US$ 450 mil, quanto ganharia seu chefe?, pergunta ele. E quanto ganharia o chefe de seu chefe? E o chefe do chefe de seu chefe?
O roteiro original do filme foi um dos cinco indicados ao Oscar de 2012. O filme teve outros oito prêmios e 12 indicações.
Está explicado: o pai do diretor trabalhou por mais de 30 anos na Merrill Lynch
Uma pequena informação no IMDb ajuda bastante a compreender este belo filme, a compreender como um roteirista e diretor estreante soube fazer esse retrato impressionante de Wall Street. O pai de J.C.Chandor trabalhou por mais de 30 anos na Merrill Lynch.
O rapaz sabe do que está falando. Por isso conseguiu fazer um filme tão bom. Margin Call – O Dia Antes do Fim é uma porrada. Uma porrada forte.
Anotação em março de 2012
Margin Call – O Dia Antes do Fim/Margin Call
De J.C.Chandor, EUA, 2011
Com Zachary Quinto (Peter Sullivan), Kevin Spacey (Sam Rogers), Paul Bettany (Will Emerson), Jeremy Irons (John Tuld), Penn Badgley (Seth Bregman), Demi Moore (Sarah Robertson), Stanley Tucci (Eric Dale), Simon Baker (Jared Cohen), Aasif Mandvi (Ramesh Shah), Mary McDonnell (Mary Rogers)
Fotografia Frank G. DeMarco
Música Nathan Larson
Produção Before The Door Pictures, Benaroya Pictures, Washington Square Films. Blu-ray e DVD Paris Filmes
Cor, 107 min
***
olá, Sérgio! Por coincidência, assisti este filme na semana passada. Gostei. Bom, filme q tem Kevin Spacey e Jeremy Irons já vale só por eles… eu acho… Meu marido é economista e, claro, gostou bem mais q eu, q nada entendo do assunto, mas, mesmo assim, concordo com a nota 3.
Abraço
Achei um ótimo filme, Sergio, centrado em atuações. É praticamente todo passado em escritório, no mesmo ambiente. E o que vale são as atuações. Gostei bastante.