Claro, é um belo filme, Ladrão de Casaca, no original To Catch a Thief, que Sir Alfred Hitchcock lançou em 1955, e há muito para se dizer dele. Mas as duas características que mais me impressionaram ao revê-lo agora, pela, sei lá, quinta ou sexta vez, foram a inteligência dos diálogos e, sobretudo, sobre todas as coisas, a beleza estonteante de Grace Kelly.
Tem horas que você simplesmente se distrai, esquece da trama, esquece de tudo, e só vê a beleza de Grace Kelly.
Tudo é feito para realçar ainda mais a beleza da mulher. Ela está sempre com roupas elegantérrimas (criadas, claro, por Edith Head, a maga dos figurinos de Hollywood, autora das roupas de mais de 430 títulos, oito Oscars).
Na verdade, tudo, em Ladrão de Casaca, é chique, elegante, charmoso: Grace Kelly, Cary Grant, as paisagens de Nice e Cannes, a Côte d’Azur, esse lugar que é sinônimo de charme, desde sempre.
Mas além de toda a beleza de Grace Kelly, da elegância, da graça, do charme, ainda há o seguinte: a personagem que ela interpreta, a milionária Frances Stevens, é, eu ousaria dizer, um dos personagens femininos mais fascinantes da filmografia do velho fauno tarado inglês – se não for a mais fascinante de todas.
Frances tem tudo o que uma criatura poderia querer; é uma dessas provas ambulantes de que o Criador, ou a natureza, não são socialistas, não distribuem com justiça as boas características: é linda, jovem, rica e inteligente, tudo em doses gigantescas.
O dinheiro é recente; sua mãe, Jessie Stevens (Jessie Royce Landis, ótima, à esquerda na foto abaixo), é uma nova-rica. A fortuna veio depois da morte do marido dela, quando se achou petróleo nas terras que ele havia comprado. Jessie diz o que pensa, é boquirrota, gosta muito de bourbon, despreza vinho, champagne, é a típica nova-rica americana sem finesse, sem elegância. Meteu a filha em escolas caras, finas, e assim Frances, que além de linda, jovem, rica e inteligente, é também bem educada, tem um pouco de vergonha da mãe, de suas maneiras despachadas, diretas, assustadoramente ianques no ambiente chique do Sul da França.
Mas, como o filme foi feito em 1954, lançado em 1955, e a ação se passa logo após a Segunda Guerra, aí entre 1947 e 1949, ainda não existia esse negócio de rebeldia de juventude. Os pais mandavam, os filhos obedeciam. Frances obedece às ordens da mãe; às vezes, quando Jessie exagera no palavreado, nos modos toscos, Frances, com muita delicadeza e polidez, exprime polidamente seu desagrado.
Diante da mãe, é uma filha submissa. Na verdade, até para se contrapor aos modos despachados demais de Jessie, na presença dela Frances fica extremamente quieta, calada, cautelosa.
Quando, no entanto, a mãe não está por perto, Frances é outra pessoa. É independente, moderna, audaciosa, mostra suas vontades – e quantas vontades. É uma mulher poderosa.
Tem, porém, seu calcanhar-de-aquiles: apesar de tudo, apesar das doses generosas de beleza e riqueza, tem uma certa insegurança diante dos homens, em especial homens mais velhos. Está acostumada a ser olhada, admirada, babada, desejada por todos os jovens em todos os lugares – mas nunca sabe se o que os atrai mais é ela mesma, ou o dinheiro da família.
Frances Stevens-Grace só aparece na tela com 32 minutos de filme – e aí rouba a cena
Todo esse rico retrato psicológico de Frances Stevens está lá, claríssimo, muitíssimo bem elaborado, no filme. Não é exatamente a principal preocupação de Hitchcock fazer um fino retrato psicológico de seus personagens femininos – mas o filho da mãe é tão absolutamente competente que seu filme faz isso. O desenho da personalidade da personagem interpretada por Grace Kelly é mais nítido e brilhante do que o de muitos personagens em dramas sérios dedicados exatamente a desenhar personalidades.
Frances Stevens-Grace Kelly surge na tela pela primeira vez quando estamos com exatos 32 minutos de filme – chequei no contador de tempo do blu-ray. E, mesmo nessa primeira sequência em que ela aparece, aparece pouco, e de lado. A câmara a focaliza rapidamente, de perfil, na primeira tomada em que a vemos. Estão sentados, conversando, no hotel mais caro e elegante de Cannes, Jessie, a mãe nova-rica casca grossa, a filha submissa, um tanto envergonhada e silenciosa, e Mr. Hughson (o papel de John Williams, extraordinário ator inglês que trabalhou diversas vezes sob a batuta de Hitchcock), o homem da empresa de seguros de Londres que, caso a imensa quantidade de jóias que Jessie possui e exibe seja roubada, terá que pagar uma fortuna a ela.
Hughson, educadíssimo, formal, como todo bom inglês, tenta convencer a sra. Jessie Stevens a guardar suas jóias no cofre do hotel, mas ela é firme e direta: possui as jóias para exibi-las – e, afinal, não ficaria bem ela andar por aí usando o cofre do hotel em volta do pescoço.
Algum tempo depois, mãe, filha e o homem da companhia de seguros estarão sentados conversando com Mr. Burns, fazendeiro do Oregon recém-chegado à Côte d’Azur. Hughson e o espectador estão cansados de saber que na verdade o fazendeiro do Oregon não tem nada a ver com fazenda nem com o Oregon, e é na verdade John Robie, o Gato – um americano radicado há muitos anos na França, que no passado foi um extraordinário ladrão de jóias; durante a Guerra recém terminada, havia se juntado à resistência francesa, sido um herói na luta contra os nazistas. Robie jura de pé de junto que há 15 anos não rouba um anelzinho sequer; é, faz 15 anos, um cidadão respeitável, que já pagou à Justiça o que teve que pagar por seus crimes.
Acontece que, nas semanas que antecederam aquele encontro dele com as Stevens, mãe e filha, um ladrão esteva agindo em Nice e em Cannes, roubando jóias espetaculares num modus operandi idêntico ao que John Robie, o Gato, usava antes de se aposentar do crime. E Robie havia procurado Hughson e proposto a ele trabalhar incógnito para apanhar o ladrão que se fazia passar pelo que ele próprio havia sido no passado. Daí ele se fantasiar de Burns, fazendeiro do Oregon, para as milionárias Stevens, mãe e filha.
To catch a thief, o título original. Vem de um antigo ditado, que diz que para apanhar um ladrão, só um outro ladrão.
E acontece que, nesse primeiro encontro com a coroa Jessie e a deslumbrante Frances, Burns-Robie não olha fixamente uma vez sequer para aquela Grace Kelly toda.
Frances, um poço ao mesmo tempo de vaidade e insegurança, morde a isca. Quando, cavalheirescamente, Burns a escorta até a porta de seu apartamento no hotel, é ela que toma a dianteira e tasca um beijo no sujeito.
A cara de ousadia que Grace Kelly faz é uma total delícia. A cara de surpresa, prazer e ao mesmo tempo non-chalance que Cary Grant faz depois de ser beijado, idem.
O maior desfile de sacanagem da filmografia de Hitch
No dia seguinte, parte-se para a sacanagem total.
Claro: não exatamente para a sacanagem total – mas para, no mínimo, o maior desfile de sacanagem da filmografia de Hitch.
O velho Hitch é um sujeito mais tarado que Tinto Brass, o pornógrafo que fez Calígula e tantos outros filmes de sacanagem, ou Just Jaeckin, que fez Emmanuelle, de 1974, na época ousadíssimo filme pornô, hoje tão inocente que poderia perfeitamente passar na sessão da tarde. O velho Hitch é apaixonado por corpses, dead bodies, cadáveres – e sexo. Mas não o sexo como uma coisa aberta, alegre, a ser feito sem culpa alguma, ao ar livre, na primavera, como em Elvira Madigan, do sueco Bo Widerberg de 1967, por exemplo.
Sexo, para o velho Hitch, pelo que ele mostra em seus filmes, é algo levemente sórdido, escuso – safado.
Todos os diálogos entre Burns-Robie-Cary Grant e Frances-Grace Kelly são diretamente relacionados a sexo – mas sempre numa segunda leitura, como um subterfúgio, como uma coisa que tem que ser escondida.
É uma coisa um tanto ginasiana. Uma coisa um tanto velada, um tanto oculta.
Em diversos filmes de Hitch é assim – mas Ladrão de Casaca é o que vai mais fundo nisso.
– “Peito ou coxa?”, pergunta Frances a Robie, logo após ter dito a ele que sabe sua verdadeira identidade.
No mesmo dia, no mesmo passeio em que a moça leva peito e coxa de galinha para um piquenique diante da paisagem de sonho da Riviera, Robie comenta que Frances não usa jóias, e ela explica: “não gosto de coisas frias encostando na minha pele”.
Mais tarde, encontram-se no quarto dela no hotel, diante do Mediterrâneo e dos fogos de artifício que explodem no céu. É uma sequência extremamente bem feita, bem planejada, bem estruturada, bem fotografada. Frances-Grace Kelly usa um vestido imaculadamente branco, ombros estupendos à mostra, um colar que parece bilionário à mostra. A luz do quarto está apagada, para que se vejam melhor os fogos lá fora. Há uma tomada em que o rosto de Grace Kelly mergulha na sombra, e o colar brilha sobre seu colo nu. E Frances convida John Robie, o Gato, para pegar nele – o colar, a jóia, o objeto de desejo, na cabeça dela, do grande ladrão.
Outro dia, zapeando, vi um clip de Rihana. Rihana pega na buc.., perdão, na xox.., perdão, na parte pudenda dela umas 30 vezes. Abre as pernas e segura o meio das pernas. É grotesco, o clip de Rihana.
Grace Kelly oferecendo o colar para John Robie, o Gato, pegar, é 200 milhões de vezes mais sensual que o clip de Rihana.
E aí explodem os fogos de artifício. Há o beijo de Cary Grant e Grace Kelly, e há os fogos de artifício. Poucas vezes se viu um orgasmo tão maravilhoso quanto em Ladrão de Casaca – e era 1955, e vigorava ainda o código de censura rígida dos grandes estúdios.
Quatro anos depois, o velho Hitch encerraria seu Intriga Internacional/North by Northwest com a penetração – Cary Grant beija Eva Marie Saint, e o trem em que viajam entra no túnel.
Alguém deveria dizer a Rihana que segurar a xoxota 30 vezes num clip não chega propriamente a ser sensual.
Não há suspense neste filme do mestre do suspense. É uma deliciosa comédia romântica
Ladrão de Casaca tem, sim, todos os temas mais caros a Hitchcock. A loura. A mãe. O homem errado – todos estão convencidos de que John Robie é o ladrão das jóias, que John Robie voltou a trabalhar.
Não há suspense, em Ladrão de Casaca. Este é um filme do mestre do suspense em que não há suspense algum. É mais um romance, uma comédia romântica, do que propriamente um filme de suspense.
É uma maravilha de comédia romântica.
A tragédia não se dá no filme, e sim na vida real.
Hitch não era homem chegado a filmar em locação, ao ar livre, nos cenários reais. Gostava mesmo era de um estúdio. Nos dois primeiro dos três filmes que fez com Grace Kelly, Disque M para Matar e Janela Indiscreta, tinha estado à vontade, filmando histórias passadas dentro de apartamentos – o primeiro, num apartamento em Londres, o segundo, num em Nova York. Tudo filmado no conforto do estúdio.
Ladrão de Casaca é um dos poucos filmes de Hitchcock em que boa parte do filme foi feito em locação, ao ar livre, nos cenários reais. (Outra exceção semelhante é O Terceiro Tiro/The Trouble with Harry, feito naquele mesmo ano do lançamento de Ladrão de Casaca, 1955.)
Nos especiais que acompanham o filme no DVD, sua única filha, Patricia, e uma de suas netas, Mary Stone, comentam que talvez ele tenha optado por fazer parte do filme no Sul da França, na Côte d’Azur, porque era lá que ia passar as férias com a mulher, Alma Reville, e com a filha única.
Mas o fato é que, para filmar algumas das cenas em locação, a equipe foi para o Sul da França. E, durante as filmagens de Ladrão de Casaca, Grace Kelly conheceu o príncipe Rainer, do Mônaco. Como nas boas histórias de fada, virou princesa. Bom para Rainer, bom para o Mônaco, uma tragédia para o mundo, que perdeu essa beleza extraordinária que, além de beleza extraordinária, era um brilho de atriz.
Ladrão de Casaca foi um dos últimos filmes da carreira meteórica de Grace Kelly, que durou apenas seis anos, de 1951 a 1956.
Tragédia atrai tragédia. Grace Kelly morreria em um acidente automobilístico – ela, que, no filme, parece uma motorista perfeita que jamais se envolveria em um acidente.
“Se o sexo é espalhafatoso demais, óbvio demais, acabou-se o suspense”
Na longa série de entrevistas que deu a François Truffaut, e que resultariam no extraordinário livro Hitchcock Truffaut, o velhinho safado não parece ter grande consideração pelo filme. Diz ele: “Era uma história bem leve”. Truffaut faz uma pergunta comprida, comparando o ladrão John Robie a Arsène Lupin, e Hitch responde (e podemos imaginá-lo falando para o jovem ex-crítico e cineasta francês com aquela voz estudadamente cavernosa, voz preparada para aparecer em programa de TV):
– “Não era uma história séria. Tudo o que posso dizer de interessante é que tentei me livrar do technicolor azul durante as cenas noturnas. Detesto o céu azul-real. Então usei um filtro verde, mas era totalmente inadequado para se obter um azul escuro, azul ardósia, azul acinzentado, como uma noite de verdade.”
Além de cineasta genial, e autor de um texto exemplar, brilhante, Truffaut era um grande entrevistador. Não se altera porque o velhinho falava asneiras; faz novas perguntas, e obtém as seguintes respostas:
– “Quando trato das questões de sexo na tela, não esqueço que, mesmo aí, o suspense comanda tudo. Se o sexo é espalhafatoso demais e óbvio demais, acabou-se o suspense. O que é que me dita a escolha de atrizes louras e sofisticadas? Procuramos mulheres de alta classe, verdadeiras damas, mas que no quarto se tornarão putas. A pobre Marilyn Monroe tinha o sexo estampado em todo o rosto, como Brigitte Bardot, e isso não é muito fino.”
– “As mulheres mais interessantes sexualmente falando são as inglesas. Acho que as inglesas, as suecas, as alemãs do Norte e as escandinavas são mais interessantes do que as latinas, italianas e francesas. O sexo não deve ser exibido. Uma moça inglesa, com seu jeito de professora primária, é capaz de entrar num táxi com você e, para sua grande surpresa, arrancar a sua braguilha.”
Assim falava Zaratrusta, quer dizer, Sir Alfred Hitchcock. O cara era doido, doente da cabeça, se achava o sujeito mais brilhante que já havia pisado o planeta. Foi o melhor marqueteiro de si mesmo de todas as figuras do cinema – melhor até que seu conterrâneo braguilha sempre aberta Charles Chaplin. Mas – fazer o quê? – era de uma competência extrema. Até ao fazer um filme que ele mesmo considerava pouco sério.
Anotação em abril de 2012
Ladrão de Casaca/To Catch a Thief
De Alfred Hitchcock, EUA, 1955
Com Cary Grant (John Robie), Grace Kelly (Frances Stevens), Jessie Royce Landis (Mrs. Jessie Stevens), John Williams (H.H. Hughson), Charles Vanel (Bertani), Brigitte Auber (Danielle Foussard), Jean Martinelli (Foussard), Georgette Anys (Germaine), Roland Lessaffre (Jean Hebey),
Rene Blancard (comissário Lepic), Adele St. Maur (mulher com gaiola no ônibus)
Roteiro John Michael Hayes
Baseado no romance de David Dodge
Fotografia Robert Burks
Música Lyn Murray
Montagem George Tomasini
Direção de arte Hal Pereira e Joseph MacMillan Johnson
Figurinos Edith Head
Produção Alfred Hithcock, Paramount. DVD Paramount
Cor, 106 min
R, ***
Para além de ser um dos filmes mais charmosos de Hitchcock (a par, talvez de “North by Northwest”, também com Grant), este filme contém o beijo mais deliciosamente sensual da história do cinema. Já não me lembro se figura naquele montão de beijos do final de “Cinema Paraíso”, mas aquele escasso minuto vale todo o filme. Sempre que vejo “To Catch a Thief” não resisto a voltar atrás e “apanhar” aquele beijo de novo. Acho que o próprio filme deveria mudar o nome para “To Catch a Kiss”
Abraço, Sérgio
Outro filme-delícia. Tenho em DVD. Personagens, trama, diálogos (como você observou), tudo funciona.
E estou de acordo, essa enxurrada de ‘explícito’ nos filmes e clips de hoje só prova falta de imaginação. E incompreensão quanto ao que é realmente sensualidade. Nossa, dá saudade dos filmes antigos.
ÓTIMA crítica!!!!!
Só ontem tive oportunidade de ver este filme. Não me parece que seja dos melhores de Hitchcock, é uma comédia ligeira e falta-lhe o suspense. Tem todavia muitas qualidades a começar pela Grace Kelly que é um assombro. No IMDb dizem que ela teve o desastre fatal na mesma estrada em que decorre a perseguição.