Albert Nobbs

3.0 out of 5.0 stars

Albert Nobbs me pareceu, antes de mais nada, um exercício de ourivesaria na recriação do visual de uma época – o final do século XIX em Dublin.

O filme foi um projeto pessoal de Glenn Close. A grande atriz interpretou o papel de Albert Nobbs pela primeira vez no teatro, em 1982 – uma adaptação teatral da novela escrita pelo irlandês George Moore e publicada em 1918 –, e passou vários anos tentando levar a história para o cinema.

Por volta de 2000, o projeto esteve para sair do papel. O diretor húngaro István Szabó – que havia dirigido Glenn Close em Encontro com Vênus, de 1991 – chegou a escrever um roteiro, mas houve problemas, não se conseguiu financiamento, e o filme acabou não sendo feito.

Coube a Rodrigo Garcia, colombiano radicado há muitos anos nos Estados Unidos, finalmente dirigir o filme que Glenn Close insistia em fazer. Rodrigo e ela haviam trabalhado juntos em Questão de Vidas/Nine Lives, em 2005. A atriz foi uma das autoras do roteiro final (o nome de István Szabó é mencionado nos créditos como autor da adaptação), além de ter sido produtora executiva e até mesmo ter escrito a letra da canção “Lay Your Head Down”, que é interpretada pela irlandesa Sinéad O’Connor nos créditos finais.

A atuação de Glenn Close como a mulher pobre forçada a se passar como homem para obter trabalho como garçom na Dublin do século XIX é de fato extraordinária. A direção de Rodrigo Garcia – autor de um punhado de belos filmes, como Questão de Vidas e Destinos Ligados/Mother and Child – é segura, de grande competência, e Albert Nobbs é sem dúvida um filme de muitas qualidades.

A maior delas, no entanto, para mim, é a suntuosa recriação de época, a cargo de uma maga, um nome que é sinônimo de qualidade: Patrizia Von Brandenstein.

Essa senhora, nascida em 1943, no Arizona, filha de imigrantes russos, é uma espécie de Midas: tudo em que toca vira ouro. Recria o visual de qualquer época, de qualquer civilização, com uma categoria impressionante. Milos Forman, realizador genial, sempre que pode chama Patrizia Von Brandenstein para ser a designer de produção de seus filmes. É dela a recriação da corte vienense do final do século XVIII em Amadeus, trabalho que lhe deu o Oscar e a glória de ser a primeira mulher a ganhar o prêmio de production design. Teve duas outras indicações ao Oscar de direção de arte, por Na Época do Ragtime, também de Forman, e por Os Intocáveis, de Brian De Palma.

O desenho de produção de Patrizia Von Brandenstein  é tão brilhante que torna a trama secundária

É o maravilhoso trabalho de reconstituição de época, de cada pequeno detalhe – os pratos, as louças, os talheres, os copos, os móveis, as rendas – que mais chama a atenção, na primeira seqüência do filme.

Uma seqüência, aliás, em tudo por tudo espetacular – Albert Nobbs e seus dois colegas garçons Sean (Mark Williams) e Patrick (James Greene), as três ajudantes Helen, Mary e Emmy (interpretadas por Mia Wasikowska, Maria Doyle Kennedy e Antonia Campbell-Hughes), todos regidos pela patroa, Mrs. Baker (Pauline Collins), preparando o salão de refeições do Morrison’s Hotel, e em seguida servindo os grupos de hóspedes que chegam para o jantar.

Tudo, ali, é aparência. É a aparência que conta: a aparência dos hóspedes para ser vista pelos demais, a aparência dos serviçais para agradar ao hóspedes. É tudo formal, é tudo forma, aparência – ou, em bom português, uma puta frescura danada.

Até o anticonvencionalismo do grupo dos quatro hóspedes  barulhentos, chefiados pelo visconde Yarrell (Jonathan Rhys Meyers) é convencional: a eles é permitido um comportamento um tanto bizarro, já que, afinal de contas, é um nobre.

Mas o mais formal em meio a tanta formalidade é Albert Nobbs, o garçom principal, impecável em seu black-tie, suas luvas cuidadosamente, impecavelmente limpas, seu rosto sério, fechado, carrancudo, seus gestos servis elegantes, corretos, precisos. Albert Nobbs sabe o gosto de cada um dos hóspedes, e atende com perfeição a cada um deles.

É de fato uma sequência brilhante, essa de abertura de Albert Nobbs. Faz lembrar o exercício de ourivesaria orquestrado pelo mestre Luchino Visconti na cena do baile de O Leopardo, ou o criado por Martin Scorcese em A Época da Inocência. Está no mesmo nível desses dois grandes filmes.

Atores bem dirigidos, Glenn Close brilhante, bela direção geral de Rodrigo Garcia – mas o que mais brilha é o trabalho de direção de produção de Patrizia Von Brandenstein.

Para mim, pessoalmente, o trabalho de Patrizia Von Brandenstein foi tão impressionante que chegou a chamar mais atenção do que a trama em si.

Um Grand Canyon de injustiça intransponível, absurdo, grotesco, repelente, nojento

É uma trama tristíssima. O Albert Nobbs que o filme mostra é um ser profundamente infeliz, profundamente miserável. Menina órfã, criada sem qualquer conforto material ou espiritual, obrigada desde os 14 anos a se travestir para ganhar a vida como garçom, oprimida, sem individualidade, Albert Nobbs é também pobre de espírito, coitada. Tenaz, esforçada, trabalhadora, passa a vida inteira juntando dinheirinho suadíssimo na esperança de um dia ter uma vida melhor. Mas é simplória – e, na sua inocência, pode se tornar presa fácil de qualquer malandro que cruze seu caminho. O malandro aparece na pele de Joe (Aaron Johnson), que usará a bela copeira Helen (o papel de Mia Wasikowska, ótima, numa mistura de pureza e safadeza) como arma de sedução.

A pobreza de espírito de Albert Nobbs, sua fragilidade diante do mundo, é tão flagrante, tão nítida, tão miserável, que me peguei torcendo por ela como se minha simpatia e piedade pudessem interferir no curso da história.

No entanto, mais do que a pobre vida da protagonista, o filme mostra um quadro amplo de miséria. Uma miséria absurda, que faz lembrar as histórias de Charles Dickens, o autor que melhor soube descrever o abismo entre as classes sociais na Grã-Bretanha pós revolução industrial.

A Dublin que o filme mostra é um Grand Canyon separando os muito ricos dos muito pobres – um Grand Canyon de injustiça intransponível, absurdo, grotesco, repelente, nojento.

Janet McTeer tem atuação à altura da de Glenn Close

O tour de force de Glenn Close a fez receber uma indicação ao Oscar. Foi sua sexta indicação ao prêmio mais badalado de seu métier – antes, ela havia sido finalista por O Mundo Segundo Garp (1982, atriz), O Reencontro (1983, coadjuvante), Um Homem Fora de Série (1984, coadjuvante), Atração Fatal (1987, atriz) e Ligações Perigosas (1988, atriz).

Foi sua sexta derrota. O prêmio foi para Meryl Streep por sua interpretação de Margaret Thatcher em A Dama de Ferro. Com isso Glenn Close se igualou a Thelma Ritter e Deborah Kerr como as atrizes mais indicadas e menos premiadas pela Academia.

Estatuetinha dourada à parte, a interpretação de Glenn Close é extraordinária, admirável. Na seqüência em que ela corre na praia, e, fora de seu habitat natural, permite-se um sorriso, dá vontade de aplaudir de pé, como na ópera.

No entanto (vixe, mais um parágrafo começando com no entanto), a atuação de Janet McTeer (na foto acima) como Hubert é tão fantástica, tão absurdamente sensacional, que consegue ofuscar a atriz que lutou por mais de uma década para fazer o filme.

Janet McTeer também teve indicação ao Oscar, na categoria de coadjuvante. Perdeu para Octavia Spencer, de Histórias Cruzadas/The Help.

Janet McTeer também foi indicada para o Globo de Ouro como coadjuvante, e Glenn Close teve indicação para o prêmio de melhor atriz. Nenhuma das duas levou.

Felizmente, como disse Vandré, a vida não se resume a festivais. Albert Nobbs é um belo filme.

Maravilha que Rodrigo Garcia se dê bem no cinemão. Mas bem que podia voltar aos filmes pessoais

No entanto (credo: terceira vez!), eu, pessoalmente, gostaria muito que Rodrigo Garcia tivesse novas oportunidades de fazer filmes pessoais, independentes, mais focados em gente como a gente, como Coisas que Eu Poderia Dizer Só de Olhar para Ela (1999) e Questão de Vida (2005).

É muito bom saber que Garcia tem se dado muito bem em sua carreira nos Estados Unidos, e que Hollywood esteja oferecendo a ele a realização de filmes do cinemão comercial, mainstream, como Passageiros e este Albert Nobbs, ao mesmo tempo em que se estabelece como diretor de episódios de importantes séries de TV, como A Sete Palmos, Amor Imenso e In Treatment. Sem dúvida é muito bom que esse talentoso diretor colombiano ocupe espaço na grande indústria. Mas que dá um pouco de saudade de suas realizações no cinema independente, isso dá.

Anotação em junho de 2012

Albert Nobbs

De Rodrigo Garcia, Inglaterra-Irlanda-França, 2011

Com Glenn Close (Albert Nobbs),

Mia Wasikowska (Helen), Janet McTeer (Hubert), Brendan Gleeson (Dr. Holloran), Aaron Johnson (Joe), Brenda Fricker (Polly), Antonia Campbell-Hughes (Emmy), Pauline Collins (Mrs. Baker), Maria Doyle Kennedy (Mary), Mark Williams (Sean), James Greene (Patrick), Jonathan Rhys Meyers (visconde Yarrell), Phoebe Waller-Bridge (viscondessa Yarrell)

Roteiro Gabriella Prekop, John Banville e Glenn Close

História de István Szabó

Baseado na novela The Singular Life of Albert Nobbs, de George Moore

Fotografia Michael McDonough

Música Brian Byrne

Montagem Steven Weisberg

Desenho de produção Patrizia Von Brandenstein

Produção Chrysalis Films, Irish Film Board, Mockingbird Pictures, Parallel Film Productions, WestEnd Films. Blu-ray e DVD Paris Filmes.

Cor, 113 min

***

 

11 Comentários para “Albert Nobbs”

  1. Como é bom passarinhar por aqui…. Melhor que tomar sorvete numa tarde quente! rsss. Um presente!

    Obrigada Sérgio!

  2. Obrigada eu. Pelas palavras e pelo presente em ter a honra de estar aqui, neste seu espaço encantador e encantado. A vida tá cada dia mais “com pressa”, mais urgente. Poder parar um “cadim” aqui, faz sonhar. Ahhhh não consigo explicar com palavras, mais ou menos como fechar os olhos e viajar por alguns instantes, esquecer o que nos incomoda, faz mal e entristece….

    “Nós que passamos apressados
    Pelas ruas da cidade
    Merecemos ler as letras
    E as palavras de Gentileza”

    É isto! Entendeu nada né? Coisas de nádia. Só gosto de estar aqui…. Bjks

  3. Sérgio, o q me chamou a atenção no filme nem foi a produção da Patrizia Von Brandenstein,
    q sem dúvida está perfeita, nem a direção do Rodrigo Garcia-quem sai aos seus não degenera, vc sabe, é claro, q ele é filho do Gabriel Garcia Marques.
    Como sempre eu presto muita atenção ao lado humano dos enredos. O Albert Nobbs, pobre coitado, se travestiu de homem p ganhar a vida, mas era, claro, homossexual, tendo em vista sua atração pela Mia e a vontade avassaladora de se casar com ela. E para tanto se espelhou em Hubert, que também era mulher travestido de homem, mas forte e decidido, ao contrário de Albert e muito bem casado, com uma moça que era uma gracinha. Como isso era possível não me pergunte. Evidente que, dada a sua insegurança como pessoa, homem etc, Albert foi explorado por Mia e seu amante, até descobrir q nada mais queriam dele que seu dinheiro. Muito deprimente.
    E a cena em que Albert tem que dividir seu quarto com Hubert, revelando sua verdadeira identidade sexual, é impagávelmente engraçada, o segundo tortura Albert psicologicamente pois, apesar de Albert não sabê-lo, estão ambos na mesma canoa!
    Guenia Bunchaft
    http://www.sospesquisaerorschach.com.br

  4. Interessante, Guenia, como o mesmo filme pode ser visto de maneiras direrentes. Acho a expressão “tal obra permite diversas leituras” um tanto fresca, mas se trata exatamente disso. Veja só: não achei que Albert Nobbs fosse homossexual. Para mim, ele se travestiu de homem apenas e tão somente por motivos sociais, materiais: para poder ter um emprego como garçom. Nunca havia pensado na possibilidade de se casar, de ter um relacionamento com outra mulher.
    É o exemplo de Hubert (Janet McTeer) que o leva a pensar em um casamento com Helen (Mia Wasikowsaka). Mas – sempre na minha opinião, é claro – não há sexo envolvido nisso. O casamento seria apenas para que Nobbs se desse bem na vida, tivesse alguém para ajudá-lo na loja que pretendia abrir. Nobbs é pobre de espírito, não entende absolutamente nada da vida – e é um ser assexuado.
    É isso. Diversas leituras. Maneiras diferentes de se ver uma obra. Não acho que o meu jeito de ver esteja certo, nem que o seu esteja errado. É assim mesmo, cada um vê como quer.
    Um abraço!
    Sérgio

  5. Sérgio, mas eu vi de cara q ele era homossexual, pois se ele quisesse simplesmente alguém p ajudar no negócio dele faria um casamento de conveniência e não de amor. Ele percebia q a Mia era muita areia para o caminhãozinho dele e acenou com a isca da estabilidade financeira, como fazem muitos homens maduros ao se apaixonarem e casarem com mulheres mais jovens. Só q ela, além de uma exploradora q estava sendo manipulada pelo amante, ia ter uma grande decepção. Em relação aos coroas, havia um detalhezinho nele q estava faltando, correto? Se bem q ela iria logo se consolar.
    Eu estou malvada hoje rsrsrs.
    Guenia Bunchaft
    http://www.sospesquisaerorschach.com.br

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