Anotação em 2011: Uma pequenina jóia do cinema independente americano. Um sensível, cuidadoso retrato de um grupo de pessoas absolutamente comuns, gente como a gente, feito com simpatia pelas pequenezas de que o ser humano é capaz, e com excelentes, brilhantes interpretações.
A roteirista e diretora Nicole Holofcener, de cujo nome não me lembrava, parece especialmente interessada em mostrar pessoas e situações sem qualquer glamour, charme, especial beleza. É um filme anti-hollywoodiano por excelência. A sensação que tive é que a diretora procurou deixar as atrizes Catherine Keener e Rebecca Hall menos belas do que na verdade são; a garotinha Sarah Steele é feiozinha, e Oliver Platt, gorducho, barrigudo, está a milhas e milhas de ser um galã. A única atriz que parece radiosamente bela, Amanda Peet, interpreta uma personagem chata, pentelha, desinteressante, de mal com a vida.
A abertura do filme – surpreendente – realça essa coisa da falta de glamour: é uma série de tomadas curtas, rápidas, de seios de mulheres que estão se submetendo a exame de mamografia. E são todos seios comuns, de gente comum, não especialmente belos, muito ao contrário – nenhuma daquelas mulheres seria procurada para fotos de revista de mulher pelada.
Rebecca (a personagem de Rebecca Hall) é uma técnica de radiologia – passa o dia conduzindo os exames de mamografia num laboratório médico. É um tanto tímida, recatada, e não se dá muito bem na vida afetiva; às vezes se submete aos encontros marcados via internet, dos quais sai tão frustrada quanto entrou.
É uma boa pessoa, de bom caráter. É quem cuida da avó prestes a fazer 91 anos, Andra (Ann Guilbert, na foto abaixo, com Rebecca Hall). Andra é fardo: chata, implicante, reclamona. E Rebecca carrega o fardo sozinha: sua irmã Mary (o papel de Amanda Peet) quase nunca visita a avó, e diz abertamente que não gosta dela.
Mary trabalha como esteticista num salão de beleza; como já disse antes, é uma mulher bonita, mas uma pessoa pentelha, extremamente vaidosa, desinteressante, fútil, vazia. Não consegue compreender por que o namorado a deixou por causa de uma outra – e vive espionando a moça, que trabalha como vendedora em uma boutique, para tentar ver o que a outra tem que ela não tem.
Um casal que vive de comprar móveis de pessoas mortas
Andra, a avó, é vizinha do casal Alex e Kate (interpretados por Oliver Platt e Catherine Keener) e da filha deles, Abby (Sarah Steele), uma aborrescente de 15 anos. O casal tem uma loja de antiguidades não muito antigas – móveis aí dos anos 1950, que eles costumam comprar de filhos maduros que perdem os pais idosos. Dá-se bem nos negócios: em geral, esses filhos querem se desvencilhar o mais rápido possível daquilo que consideram ser porcarias. A loja de Alex e Kate, na Décima Avenida de Manhattan, vende os móveis por quantias dez, 20, 30 vezes maiores do que custaram.
Bem de vida, Alex e Kate compraram o apartamento vizinho, o de Andra; quando a velhinha morrer, eles pretendem quebrar as paredes que separam os dois imóveis, e fazer uma reforma geral no apartamento duplicado de tamanho.
Quando acontece de encontrar Kate no prédio – numa das primeiras seqüências do filme, as duas se encontram no elevador –, Rebecca se mostra extremamente fria com a vizinha da avó. “Eles me olham como se estivessem torcendo para que vovó morra”, diz ela à irmã Mary. Que replicará com um seco: “E por que eles não deveriam torcer?”
Todo o elenco está bem; Catherine Keener e Rebecca Hall brilham
A diretora Nicole Holofcener vai nos mostrar diversos pequenos episódios das vidas desses personagens. É isso, o seu filme.
O título, tanto o brasileiro, Sentimento de Culpa, quanto o original, Please Give, refere-se à personagem mais complexa do grupo, Kate. Kate é um concentrado ambulante de complexo de culpa. Sente-se mal em comprar móveis de gente que não sabe dar valor a eles, e em seguida ter um lucro imenso ao revendê-los. Sente-se mal em ver os mendigos nas ruas, dá esmolas generosas a todos os que vê. Procura instituições para se oferecer como voluntária, na tentativa de aplacar a culpa que sente pela miséria, pela dor alheia.
Catherine Keener (na foto abaixo) está brilhante como Kate. Todo o elenco está estupidamente bem dirigido, todos têm atuações impressionamente belas, sinceras, mas, na minha opinião, quem mais brilha são Catherine Keener e Rebecca Hall. Está esplêndida, essa jovem e promissora atriz inglesa, nascida em Londres em 1982, que já trabalhou com Woody Allen (em Vicky Cristina Barcelona), Christopher Nolan (em O Grande Truque), Ron Howard (Frost/Nixon), Sua atuação é suave, sutil, absolutamente longe de qualquer over, qualquer exagero. Compõe com maestria a Rebecca de bom coração, insegura, tímida – uma flor de pessoa que não é reconhecida como tal.
Uma diretora que gosta de falar das relações afetivas
No making of do filme, apresentado no DVD, Amanda Peet – que tem trabalhado em diversas produções caras de Hollywood, como 2012 e Syriana, mas também já trabalhou com Woody Allen (em Melinda e Melinda) e Edward Burns (em Nosso Tipo de Mulher) – diz que há anos queria trabalhar com a diretora Nicole Holofcener. Mas então quem é Nicole Holofcener?
Vejo então que é nova-iorquina, nascida em 1960. Enteada de Charles H. Joffe, o produtor-executivo da maioria dos filmes de Woody Allen. Dirigiu vários episódios de Sex and the City e A Sete Palmos; fez Encontro de Irmãs/Lovely & Amazing, outro drama de histórias familiares, e Amigas com Dinheiro, um filme interessante sobre os destinos de quatro amigas na faixa dos 30 anos, interpretadas por Catherine Keener, Joan Cusak, Frances McDormand e Jennifer Aniston.
OK: então Nicole Holofcener é autora de filmes independentes, que tratam basicamente de relações afetivas. Extraordinária diretora de atores. É normal que atrizes como Amanda Peet queiram trabalhar com ela.
Sentimento de Culpa teve três prêmios e sete outras indicações em festivais, muitos voltados para o cinema independente.
A estréia mundial do filme foi no Sundance Film Festival de 2010, diz o AllMovie, que dá 4 estrelas em 5. A crítica, assinada por Perry Seibert, abre assim: “Nicole Holofcener tem ocupado um lugar no meio cinematográfico que antes era província exclusiva de Woody Allen – os brancos ricos habitantes de Manhattan. Please Give, seu quarto filme, solidifica seu formidável talento.”
E mais adiante:
“A trama de Please Give é mínima. Há infidelidade, novo amor e intrigas de negócios, é claro, mas o que faz o trabalho de Holofcener tão atraente é sua admirável habilidade de criar diversos personagems tridimensionais na tela, e permitir que eles se comportem de maneira que sempre tem sentido, e não para obedecer às necessidades da história.
“Todos no elenco dão atuações estelares. O naturalismo não forçado de Rebecca Hall se equipara perfeitamente ao de Keener (…). Amanda Peet não tem medo de parecer desagradável, e Oliver Platt, outro ator que sempre parece que está na vida real, e não em um filme, personifica um nova-iorquino satisfeito e confortável demais – tanto na vida quanto no casamento. Até a jovem Sarah Seetle, que não se parece nada com as glamourosas adolescentes de NY, nos faz simpatizer com a adolescente chata porque, como todos os demais no elenco, ela consegue comunicar as súbitas mudanças por que passa sua personagem sem nos fazer sentir que estamos vendo uma atuação.
“Please Give oferece ampla prova de que neste momento Holofcener domina o pulso da Big Apple de uma maneira que nenhum outro cineasta tem, nem mesmo seu antigo mentor Woody Allen. Ela vê como aquela virou uma cidade governada pelo dinheiro e, mais impressionante ainda, ela entende como isso afeta as relações pessoais de todos os que a chamam de lar.”
Boa crítica. Eu não precisaria ter escrito nada. Quem sabe eu começo a apenas traduzir os textos do AllMovie?
Sentimento de Culpa/Please Give
De Nicole Holofcener, EUA, 2010
Com Catherine Keener (Kate), Rebecca Hall (Rebecca), Amanda Peet (Mary), Oliver Platt (Alex), Ann Guilbert (Andra), Lois Smith (Mrs. Portman), Sarah Steele (Abby), Thomas Ian Nicholas (Eugene), Elizabeth Keener (Cathy)
Argumento e roteiro Nicole Holofcener
Fotografia Yaron Orbach
Música Marcelo Zarvos
Produção Sony Pictures Classics, Likely Story, Feelin’ Guilty. DVD Sony
Cor, 90 min
***
Demorei um tempão pra ver esse filme, desde que li sobre ele pela primeira vez aqui, porque pelo texto dava pra ver que seria uma história triste, e foi o que acabei constatando.
Rebecca era uma flor de pessoa, como você disse, e por isso mesmo acho que merecia ser feliz de alguma maneira, mas levava uma vida meio puxada; mesmo o namorado, que ela conhece pra lá da metade do filme, era um sujeito desinteressante, e mais baixo que ela (não que isso tenha importância, mas ficou marcado – acho que a avó dela comenta isso em algum momento). Lembro de uma cena dela com a irmã vendo TV juntas, e comendo alguma coisa muito sem graça (não tinha prazer nem na comida).
Já o casal Kate e Alex como poderia ser feliz ganhando a vida às custas da morte dos outros? Não era à toa que ela carregava muito sentimento de culpa, embora não fosse uma pessoa totalmente de caráter. A filha aborrescente sabia ser chata como ninguém, mas nessa fase e ainda acima do peso, não devia ser fácil pra ela.
A personagem de Amanda Peet era tudo isso de ruim que você diz no texto, além de manter uma atitude ridícula de ficar perseguindo a atual namorada do ex sem ter mais idade pra isso. Fiquei me perguntando por que ela transou com o marido de Kate, um homem nada atraente, nem bom de papo; como ela era interesseira, e ele tinha dinheiro, pode ter sido por isso (já faz alguns meses que vi, não lembro de detalhes. Tenho que aprender a ver os filmes e voltar aqui para comentar em no máximo duas semanas). Acho também que ele era tão vazio quanto ela, não prestava atenção nas coisas que a mulher dele falava.
Estava relendo outro texto de um filme com a Amanda Peet, e você a descreve como “essa moça de grandes olhos verdes e dentes igualmente grandes”. Eu ri! Ela é dentuça mesmo, os dentes se destacam, quase que a la Jennifer Connely e Hilary Swank.
Sobre os trabalhos dela, participou também de alguns episódios da quarta temporada de The Good Wife, e eu até torci para que a sua personagem tivesse alguma coisa com o fofíssimo Will Gardner.
Voltando ao filme, é bom mas é super triste, e no final não lembro de ele ter dado alguma esperança de que aquelas vidas teriam um pouco mais de alegria (acho que só a família se entendeu um pouco melhor, graças à filha).
Para mim quem se destacou foi mesmo Rebecca Hall, embora todos estivessem bem.
Ahh, eu falei da participação de Amanda Peet em The Good Wife, e esqueci de dizer que Sarah Steele, a atriz que fez a filha do casal, também participa da série, só que como uma personagem que aparece de vez em quando, a filha de Eli Gold.