Anotação em 2011: Denzel Washington, grande ator, deveria dirigir mais. Tinha feito, em 2002, um bom filme, Voltando a Viver/Antwone Fisher. Seu segundo filme como diretor, este O Grande Desafio/The Great Debaters, de 2007, é um brilho, uma maravilha.
O tema é o racismo, este que é um dos crimes mais horripilantes que a humanidade foi capaz de conceber. Mais especificamente, é uma história sobre o combate ao racismo, o combate à noção de superioridade das pessoas de pele clara em relação às de pele escura, em que as armas são as palavras, a inteligência, a lógica, a razão.
Conta-se a história verdadeira de um professor e de um grupo de alunos seus de uma faculdade para negros da cidade texana de Marshall, durante os anos 30, no meio da Grande Depressão, que se preparou para um esporte de que os americanos gostam muito, um esporte em que a força física não conta nada: os debates de idéias, diante de platéias e um corpo de doutos jurados.
São fatos reais – o professor Melvin B. Tolson, interpretado pelo próprio Denzel Washington, e seus alunos existiram de fato, os debates mostrados no filme existiram de fato, o que torna a história, a trama, o filme, especialmente atraentes, fascinantes, emocionantes. Como se usa muito em filmes baseados em vidas reais, nos créditos finais veremos, entremeadas a fotos dos atores que reconstituíram aqueles debates históricos, fotos dos verdadeiros alunos texanos negros dos anos 30.
Na abertura, três seqüências em paralelo, a 180 por hora
Denzel Washington começa sua narrativa com um grande tour-de-force. É como se quisesse deixar bem claro: yes, I can! E ele deixa absolutamente nítido: sim, ele sabe fazer cinema.
São três seqüências paralelas, que vão sendo mostradas ao mesmo tempo, num ritmo rápido, com uma montagem brilhante. Seqüência 1: um homem está andando numa área rural, seu passo vai se acelerando, ele começa a correr.
Seqüência 2: um religioso está pregando para sua congregação. O discurso é firme, forte. Defende que é através da educação e do trabalho duro que a realidade será mudada, que a pobreza poderá ser vencida.
Seqüência 3: num bar clandestino no meio do mato, um grande grupo de pessoas ouve música, dança, celebra a alegria de viver. Um jovem paquera uma mulher.
As três seqüências vão se intercalando, o ritmo é ágil. Nas tomadas da sequência 3 a música é alta, aquela batida negra forte, que não deixa ninguém parado.
Quando o jovem paquerador vai beijar a mulher, chega o marido dela, duas vezes o tamanho do outro, e ainda tem uma faca na mão. Começa uma briga – e no momento crucial da briga o homem que vinha primeiro caminhando, depois correndo, chega a tempo de evitar que da briga resulte alguém ferido ou morto.
A abertura que Denzel Washington criou para seu segundo filme como diretor é estupenda. Poderia perfeitamente estar em qualquer um dos muitos filmes de ação que Denzel Washington tem estrelado ultimamente, dirigido por gente com grande quilometragem do ramo, tipo Tony Scott. Na verdade, a abertura criada pelo ator – essa espécie assim de Gary Cooper com a pele negra – é melhor do que o que Tony Scott e outros diretores de filmes de ação andam fazendo.
Mary fez uma observação perfeita: Denzel Washington estava mesmo precisando fazer um bom papel dramático, um personagem sério, denso, depois de tantos filmes de ação. Aqui ele teve esse papel.
Haverá ainda uma outra excelente seqüência que parece filme de ação, quando um bando de brancos broncos, idiotas, vai irromper numa assembléia de luta sindical de lavradores, meeiros, pequenos proprietários de terra negros.
Mas, tirando essas, no resto do filme o que conta não é a ação – é a força da palavra, das idéias.
A competição de idéias como forma de derrotar o racismo
Os debates entre alunos de instituições de ensino já eram, pelo que o filme mostra, uma grande mania americana. A competição é parte integrante da cultura americana – como, de resto, de todas as sociedades capitalistas. Mas aquele país colonizado por anglo-saxões protestantes, para onde foram levados milhares de escravos conquistados na África por mercadores, e que atraiu imigrantes de todas as partes do mundo, parece de fato ser o lugar em que a competição perpassa tudo o que existe. Em nenhum outro lugar do mundo se compete tanto, em qualquer tipo de atividade – seja nas trocentas modalides de esporte, seja nos concursos de beleza, nos concursos de soletrar palavras, nos debates de idéias.
Já houve filmes mostrando como equipes de esporte foram sendo usadas para combater o racismo entranhado naquela sociedade – e que, sempre é bom lembrar, era oficial, legalizado, até pouco tempo atrás, exatamente como o apartheid da África do Sul. Mas, que eu saiba, este O Grande Desafio é o primeiro a mostrar a competição de idéias, de raciocínio, de informação.
Assim como o beisebol, o futebol americano, o basquete, também os debates não são uma atividade curricular – mas as faculdades dão a essas atividades extra-curriculares um valor imenso. É uma forma de elas aparecerem no cenário estadual, quem sabe no cenário nacional. Aparecerem, competirem com as outras. (Em outro filme recente baseado em fatos reais, Decisões Extremas/Extraordinary Measures, o personagem interpretado por Harrison Ford, um cientista, diz que sua universidade gasta mais dinheiro com o salário do técnico de futebol do que com todo o departamento de química que ele dirige.)
O coordenador dos debates trata seus alunos como um sargento durão
Assim, são muitos os alunos que querem participar do time de debatedores da faculdade de Marshall, cujo técnico, perdão, cujo coordenador é o professor Melvin B. Tolson. Como muitos técnicos de basquete, beisebol, etc, Tolson é um sujeito exigentérrimo. Quer extrair o melhor de seus alunos, e não o faz de forma suave. Ao contrário: trata os garotos que treina com rispidez, até alguma brutalidade. É uma espécie assim de sargento durão – só que sua luta é pelo bem.
Do grupo grande de candidatos a debatedores naquele ano – a ação se passa em 1935 –, Tolson escolherá apenas quatro, dois titulares e dois reservas. E a escolha não demora muito. Um dos titulares será Henry Lowe (Nate Parker), exatamente o galanteador que na sequência inicial estava cantando a mulher do sujeito grandalhão – e o homem que corria e afinal apartou a briga dos dois, claro, era o próprio professor Tolson.
Lowe tem a cabeça quente, gosta de uma cachaça, é mulherengo – mas é inteligente, afiado, culto, estudioso.
Para ficar na reserva, Tolson escolhe uma mulher e um garoto extremamente novo. As mulheres ainda eram minoria da minoria nas faculdades, mas Samantha Booke (Jurnee Smollett) tem a inteligência e a cultura necessárias.
Inteligente e culto também é o garotinho James Farmer Jr. – interpretado por Denzel Whitaker. Que nome tem esse jovem ator – Denzel, como o Washington, Whitaker, como o Forest. Segundo o IMDb, o garotão, nascido em 1990, foi batizado Denzel em homenagem a Denzel Washington. Mas, diferentemente do que se poderia pensar – até porque ele é gordinho como Forest Whitaker, e neste filme aqui representa o filho do personagem de Forest Whitaker –, ele não tem parentesco algum com o grande ator.
James Farmer, o pai do garoto escolhido para ser um dos reservas dos debatedores, é o ministro religioso que apareceu na abertura do filme, pregando o estudo como arma para vencer os preconceitos, a barreira da pobreza. Farmer é também professor de Teologia na mesma faculdade; foi um dos primeiros negros a ter um PhD nos Estados Unidos. É respeitadíssimo por toda a comunidade.
O filme estabelece, desde aquela abertura reunindo três diferentes sequências, as grandes diferenças entre o professor Tolson, o personagem de Denzel Washington, e o professor Farmer, o personagem de Forest Whitaker. São figuras emblemáticas, como existem em qualquer movimento político – o mais moderado e o mais radical. Farmer, mais velho, é mais cuidadoso, cauteloso. Acha que as mudanças só podem ser conquistadas passo a passo. Tolson, mais jovem, é mais ousado. Quer as mudanças já – e para isso opera em duas frentes distintas, a estudantil e a trabalhista.
Além dos rivais externos, o grupo tem que enfrentar seus próprios dramas
Além de enfrentar os competidores das outras faculdades – primeiro muitos competidores também negros, e só bem mais tarde os brancos –, os debatedores do time do professor Tolson terão que lutar também seus próprios problemas. Estabelece-se de cara um esboço de triângulo amoroso – tanto o esquentado Lowe quanto o compenetrado Farmer Jr. ficarão fascinados com Samantha. Lowe terá que brigar contra seus demônios internos, e eles são poderosos. Samantha terá que enfrentar às resistências ao fato de ela ser mulher. E o pobre coitado do garoto Farmer Jr. fica ali espremido entre a fascinação pela bela moça e pelo companheiro de equipe, entre o pai ultra-rigoroso e exigente e o professor não menos.
Às vezes o diretor grita Shazam!, e solta fogos de artifício
O roteirista Robert Eisele e o diretor Washington conseguiram conciliar muito bem todos esses diversos aspectos da trama – e não são poucos, e não são pouco importantes. A narrativa flui maravilhosamente.
Há momentos em que o Washington diretor não consegue se conter – grita Shazam! e produz seqüências extraordinárias, brilhantes, daquelas de soltar fogos de artifício e berrar para o espectador: olha aí como eu sou bom, siô! Yes, he can. O cara pode, porque o cara é bom.
Lá pelo meio do filme, haverá uma seqüência – uma reunião social na casa do professor Farmer – em que pela primeira vez estarão juntos os dois personagens emblemáticos, o professor velho e o professor mais jovem, os dois gigantes, os dois pesos-pesados, os dois interpretados por atores que são igualmente gigantes, pesos-pesados, monstros, todos os dois diretores de bons filmes, todos os dois ganhadores de Oscar da Academia que só veio a dar o prêmio principal de interpretação a um ser humano de cor negra nos anos 60.
Para mostrar o embate entre Tolson e Farmer, entre Denzel Washington e Forest Whitaker, o diretor e seu diretor de fotografia, o respeitadíssimo Philippe Rousselot, puseram a câmara na mão e fizeram um longo plano seqüência, em que vamos passeando pela festa, vendo ali as dezenas de pessoas reunidas, atravessamos diversos cômodos, até chegar o escritório em que o professor mais velho recebe o professor mais jovem.
É de aplaudir de pé como na ópera.
Aleluia, irmãos!
O Oscar. Lembrando: em 1939, Hattie McDaniel – que fazia a criada de Scarlett O’Hara em … E o Vento Levou – tornou-se a primeira negra a ter uma indicação para o Oscar, como coadjuvante, e a primeira a levar a estatueta. Na categoria de ator ou atriz principal, o ganhador pioneiro foi Sidney Poitier, em 1963, por Uma Voz nas Sombras/Lilies of the Field. Ele já havia sido indicado em 1959 por Acorrentados/The Defiant Ones.
Forest Whitaker levou o prêmio principal de atuação por O Último Rei da Escócia, de 2006.
Denzel Washington já foi indicado cinco vezes ao Oscar, e levou dois, como coadjuvante por Tempo de Glória, de 1989, e na categoria principal por Dia de Treinamento. Com ele, com Forest Whitaker, com Halle Berry, começa-se a perder a conta de quantos negros foram indicados ou ganharam a estatuinha do camarada careca. Aleluia, irmãos!
O Grande Desafio/The Great Debaters
De Denzel Washington, EUA, 2007
Com Denzel Washington (Melvin B. Tolson), Nate Parker (Henry Lowe), Jurnee Smollett (Samantha Booke), Denzel Whitaker (James Farmer Jr.), Forest Whitaker (Dr. James Farmer Sr.), Jermaine Williams (Hamilton Burgess), Gina Ravera (Ruth Tolson), John Heard (xerife Dozier), Kimberly Elise (Pearl Farmer), Devyn A. Tyler (Helen Farmer), Roteiro Robert Eisele
História escrita por Robert Eisele e Jeffrey Porro
Baseado em artigo de Tony Scherman
Fotografia Philippe Rousselot
Música Peter Golub e James Newton Howard
Produção Harpo Films, Marshall Production, The Weinstein Company. DVD California.
Cor, 120 min
***1/2
Título em Portugal: Debate pela Liberdade.
Infelizmente este filme não chegou a Portugal.
Mais um que se perdeu pelo caminho, se fosse pura sucata já estava aí.
E a gente aqui acha que são só os distribuidores brasileiros que nos escondem pérolas…
Um abraço, caro José Luís.
Sérgio
Eu escrevi um comentário enorme e a net engoliu. Resumindo: gosto do Denzel, muito. Gosto do filme, acho consistente e interessante. Lembrou-me (embora em grau de ternura e ingenuidade diferentes) o Poitier em Ao Mestre Com Carinho, inesquecível pra mim. Não tinha percebido a inteligência e força da cena inicial, que bom contar com sua sensibilidade pra nos fazer ver coisas assim. Bj!
O Grande Desafio é um grande filme. É grande porque tem grandes atores. E tem uma grande história. Não sei se já usei essa palavra, mas é uma grande opção para quem gosta de cinema de ótima qualidade.
E parece que Oprah Winfrey tem acertado a mão. Ela é uma das produtoras deste, como foi de Preciosa. O Grande Desafio é digno, admirável e tem grandes momentos de interpretação. É um grande desafio não gostar dele.
Filme maravilhoso. É um deleite para a mente quando temos a sorte de assistir produções tão inteligentes.
Esse filme é totalmente incrível,eu só tenho dez anos mas adorei e achei uma ótima produção,eu chorei assistindo porque aos meus olhos eu via o filme acontecer,é muito real e as cenas de debates são as melhores porque os atores não só interpretaram mas viveram o seu personagem e conseguiram deixar esse filme realmente excelente.
Andei por aí a navegar e descobri que o filme afinal chegou a Portugal pelo menos em DVD e há pouco tempo. Chama-se “Debate pela Liberdade”
Voilá!
É uma maravilha este filme que acabei de ver há minutos.
Nem sei o que dizer, estou mesmo meio zonzo com tanta qualidade.
Chorei algumas vezes, ao de leve, mas os olhos ficaram embaciados e tive que parar o DVD um vez para recuperar.
O Denzel Washington faz aqui em trabalho excelente, um duplo trabalho.
Devia realizar mais em lugar de ser actor em filmes medíocres, como o último que vi com ele, “Incontrolável – Unstoppable”
Mas é natural que os actores americanos façam filmes medíocres, é disso que há por lá. Edward Norton é outro caso, não voltei a ver nenhum filme dele desde “O Despertar de Uma Paixão – The Painted Veil”
Aquele ultimo discurso de James Farmer jr.
E’ suficiente capaz de fazer qqer ser humano com sentimentos se emocionar!
Filme muito bom,a primeira obra de Denzel
Como director emocionou me,e esta foi realmente uma excelente surpresa,espero que ele nao perca esta. Forma de estar no cinema
Ahh,esse filme é muito bom , minha professora passou para nós , adoreiiiiiii ♥♥♥♥♥♥♥♥
Não sei por que esse filme tinha passado batido pra mim, só o vi esses tempos, com muito atraso, depois de ler sobre ele aqui.
Tive que parar umas três vezes para respirar e não chorar enquanto o assistia. Gostei muito dos atores jovens, a moça é super bonita, e espero que tenham vida longa no cinema.
Junto-me aos comentários anteriores, nem tenho muito o que dizer – leiam o texto e vejam o filme.
A sequência forte dos negros enforcados e pendurados na árvore, ficou gravada na minha memória, e me faz recomendar aqui o livro “Strange Fruit” sobre a música de mesmo título, famosa na voz de Billie Holiday (mas muitos outros a regravaram). É uma biografia da canção, cuja letra fala justo sobre os negros serem mortos dessa maneira chocante, horripilante, cruel, desumana.
P.S.: só esse site para conseguir maravilhas como a de fazer uma menina de 10 anos comentar sobre um filme como esse, ainda por cima num português correto.
Ótima recomendação, Jussara! Eu também comentei sobre o livro “Strange Fruit” no 50 Anos de Textos: http://50anosdetextos.com.br/2012/strange-fruit-a-cancao-o-livro-e-as-licoes/
Sérgio
Excelente filme, atores fantásticos, roteiro idem. Filme denso, comovente, direção impecável. Já o assisti com várias turmas para as quais leciono e a emoção é a mesma. A cada sessão, uma leitura diferente. Impossível não se emocionar diante do papel do professor na formação daqueles jovens, vitimados pela segregação racial. A fala do professor Farmer, no início do filme acerca da relevância da educação para aqueles jovens negros, é brilhantemente comprovada na cena final em que o professor Tolson se afasta, sai de cena, com a certeza de que cumpriu o seu papel ao formar jovens emancipados.
É Sensacional!!!
Um filme maravilhoso, É realmente um grande desafio. Não conhecia o filme, nem a sua história. O bacana foi descobrir um lindo filme sem nenhuma recomendação. Já recomendei para amigos.