8 Mulheres é um espetáculo feérico, um tremendo de um banquete para os olhos – e para os ouvidos. Pouquíssimas vezes, na história do cinema, se conseguiu reunir um elenco assim, essa quantidade de mulheres lindas, essa multiplicidade de grandes atrizes de várias gerações.
É também – me peguei pensando, ao revê-lo pela primeira vez agora – um filme singular, único.
Uma tarefa a rigor impossível, criar um filme absolutamente singular, único, já que muito mais de 2 mil filmes são criados a cada ano. (Foram 930 só os feitos na Índia em 2006, ante 800 nos Estados Unidos, 350 no Japão, 260 na China, 203 na França.)
Pois acho que François Ozon conseguiu o feito. Ou será que existe outro filme que abarca mistério, assassinato, suspense, drama familiar, comédia, musical e farsa?
Pode até ter havido algum. Mas nenhum outro filme reuniu (da esquerda para a direita na foto) Firmine Richard, Isabelle Huppert, Virginie Ledoyen, Ludivine Sagnier, Danielle Darrieux, Fanny Ardant, Catherine Deneuve e Emmanuelle Béart.
Danielle Darrieux nasceu em 1917, fez seu primeiro filme em 1931, doze antes do nascimento de Catherine Deneuve. A grande dama do cinema (e da canção) francesa estava, portanto, com 85 anos quando o filme foi lançado, em 2002.
La Deneuve, por sua vez, estava com 59; estreou no cinema em 1957, 22 anos antes do nascimento de Ludivine Sagnier. O tempo passa, o mundo gira, a Lusitana roda e Ludivine Sagnier, a caçulinha deste elenco formidável, tem hoje, parcos nove anos após o filme de François Ozon, 48 filmes no currículo. Tinha 22 anos de idade na época do lançamento de 8 Mulheres.
Emmanuelle Béart é da geração que veio após a de Catherine, Fanny e Isabelle, e antes da das garotas Virginie e Ludivine; nascida em 1965, começou a carreira bem cedo, em 1972, e tinha então uns 30 filmes no currículo (hoje tem 55).
Uma grande dama que então tinha 85 anos, uma garotinha promissora de 22 anos – e, entre elas, algumas das mais belas, talentosas e famosas atrizes do cinema francês.
Um Quem é Quem do cinema francês
8 Mulheres não é apenas um banquete para olhos e ouvidos, um filme singular, único – é um Quem é Quem do cinema francês. Não há diretor francês importante que não tenha trabalhado com uma dessas atrizes – sem falar dos de outras nacionalidades.
Para ficar apenas nas três mais próximas da minha geração, Catherine (de 1943), Fanny (1949) e Isabelle (1953). Pelo menos uma delas fez filmes com François Truffaut, Alain Resnais, Claude Lelouch, Costa-Gavras, Claude Chabrol, Jacques Demy, Agnès Varda, Claude Sautet, André Téchiné, Philippe de Broca, Jean-Luc Godard, Bertrand Blier.
E mais Roman Polanski, Etore Scolla, Luis Buñuel, Dino Risi, Tony Scott, Curtis Hanson, Michael Cimino, Volker Schlöndorf, Margareth von Trotta, Lars von Triers…
As listas não terminariam nunca.
O garoto Ozon foi ousado, ambicioso, pretensioso. Ainda bem
Já François Ozon, o cara que reuniu esse bando de estrelas, é um garotão. Está mais próximo das meninas Virginie Ledoyen e Ludivine Sagnier do que daquela maravilhosa trinca de atrizes maduras. Nascido em 1967, estava portanto com 35 anos apenas quando dirigiu essa constelação toda.
Antes deste filme aqui, havia dirigido diversos curta-metragens, e dois longas, se não estou enganado: Sitcom, de 1998, sobre vida em família e um jovem homossexual, e Sob a Areia, um filme duríssimo sobre morte, perda, e a insistência de uma mulher (interpretada pela maravilhosa Charlotte Rampling) em não admitir que a tragédia aconteceu.
Digamos que o garoto foi ousado, ambicioso, pretensioso, ao resolver fazer 8 Mulheres. Embora já fosse reconhecido como um geniozinho, não tinha propriamente uma grande experiência.
Pois reuniu essa quantidade absurda de grandes atrizes, e embaralhou diversos gêneros aparentemente inconciliáveis.
Poderia sair uma salada mista indigesta. Saiu um filmaço divertidíssimo.
Oito mulheres no elenco – e um homem cujo rosto o espectador não vê
Quando a ação começa, Gaby (Catherine Deneuve) está chegando à sua casa com a filha mais velha, Suzon (Virginie Ledoyen), que havia buscado na estação, vinda da Inglaterra. É dezembro, quase Natal, inverno bravo, muita neve lá fora. A casa da família é daquelas imensas propriedades distantes do centro das grandes cidades, em um terreno amplo, grande jardim à frente.
O marido de Gaby, Marcel (Dominique Lamure, o único homem do elenco, mas que jamais terá seu rosto mostrado na tela), veremos depois, é um empresário, industrial. Bastante rico – embora no momento os negócios não estejam indo bem, muito ao contrário.
Quando Gaby chega com Suzon à sua casa, já estão lá:
. Mamy (Danielle Darrieux), a mãe octogenária de Gaby; está, neste início de ação, em uma cadeira de rodas, com problemas nas pernas;
. Augustine (Isabelle Huppert, maquiada para parecer muito menos bela e charmosa do que é), filha de Mamy, irmã de Gaby; é uma solteirona um tanto histérica, problemática, chegada a uma hipocondriazinha;
. Catherine (Ludivine Sagnier), a caçula dos donos da casa, Gaby e Marcel; tem aí uns 17, 18 anos, é uma devoradora de livros, e, como toda adolescente em final de adolescência, gostaria de ser vista como mulher, e não como criança;
. Louise (Emmanuelle Béart), a empregada. Qualquer espectador que bater o olho em La Béart como empregada imagina imediatamente que ela não poderia ser apenas empregada naquela casa. Obviamente, a impressão será confirmada no decorrer da história;
. e, finalmente, Madame Chanel (Firmine Richard), a outra empregada, cozinheira, na casa há décadas e décadas, babá das garotas da família.
São aí sete mulheres. A oitava, Pierrette (Fanny Ardant) só vai entrar em cena quando o filme está ali com uns 20, 25 minutos, mas seu nome será falado antes. É irmã de Marcel, o dono da casa. Teve uma vida aventureira, livre; foi dançarina, há quem diga que também puta. Gaby tem ódio profundo da cunhada.
E vão emergindo à superfície podres de todos os tipos
Quando estamos aí com uns 10, 15 minutos de filme, decide-se que vão chamar Marcel. Marcel tinha ficado trabalhando até tarde, pedira para não ser incomodado. Mas já estava ficando tarde, e então Louise, a empregada, vai levar o café da manhã numa bandeja.
Entra no quarto, e dá um grito terrível: vê Marcel morto, assassinado, uma grande faca enfiada nas costas.
Gritos, confusão.
Quando finalmente decidem ligar para a polícia, o telefone não funciona – o fio foi cortado.
Quando decidem ir de carro até a delegacia, apesar de toda a neve, o carro não funciona.
Chega Pierrette – alguém havia ligado para ela convocando-a para ir à casa do irmão.
Estão agora na casa as oito mulheres e um homem assassinado. Começam a ser conhecidos segredos antes bem guardados – uma infindável quantidade de segredos, de podres de todos os tipos, vai emergindo.
Pitadas de Agatha Christie, Douglas Sirk, Mario Monicelli, o casal Demy-Varda
Já temos aí algo como uma história de Agatha Christie, ou tantos outros autores de novelas policiais. É o whodunit – quem matou? Um whodunit – mas com imensas, colossais doses de sátira aos problemas da vida em família, as invejas, os ciúmes, as descobertas de que fulano comia fulana, fulana dava para sicrano, as disputas por dinheiro, herança. Algo assim como o cruzamento de Morte sobre o Nilo com Parente é Serpente/Parenti Serpenti, de Mario Monicelli – aliás, fala-se muito em cobras, serpentes, nas acusações de uma mulher a outra.
Há algo também de Douglas Sirk, o mestre dos dramalhões, que também focalizava a vida em grandes, amplas casas dos subúrbios abastados. Nas tomadas iniciais, em que se vê um pouco do terreno em redor da casa, aparece um veadinho (o bicho, o animal, tá?), como em um dos dramalhões de Sirk para a Universal nos anos 50, com Rock Hudson como o galã.
Douglas Sirk gostava de cores fortes. Em Palavras ao Vento/Written on the Wind, por exemplo, há um exagero de cores fortes, berrantes – vermelho muito vivo, amarelo muito vivo.
François Ozon exagerou no exagero do exagero das cores. Tudo, em 8 Mulheres, é colorido demais. A sala de estar principal da casa, onde se passa boa parte da ação, tem vermelho vivo, verde forte. Cada uma das oito mulheres usa vestidos de cores fortíssimas. Diante deste filme, Palavras ao Vento parece só ter tons pastéis.
8 Mulheres é um dos filmes franceses mais coloridos da história. Consegue ter tantas cores fortes quanto Os Guarda-Chuvas do Amor/Les Parapluies de Cherbourg, de Jacques Demy, e As Duas Faces da Felicidade/Le Bonheur, de Agnès Varda.
Uma pitada de Agatha Christe, outra de Monicelli, outra de Dougas Sirk, outra do casal Demy-Varda.
No meio da misturada toda, cada atriz canta uma música
Ainda era pouco para François Ozon. E aí ele botou música – canções, números musicais, com dança.
Há oito canções, oito números musicais, em 8 Mulheres. Cada uma das oito atrizes interpreta uma canção, ao longo dos maravilhosos 111 minutos do filme.
É uma das características mais marcantes de 8 Mulheres. Pode até deixar espantados, chocados, alguns espectadores. É um absoluto brilho.
Tudo bem: não é uma criação original de François Ozon. Musical existe desde sempre; Hollywood já fazia musicais mal o cinema aprendera a falar. Interromper a ação para alguém cantar é coisa antiga – e não só em filmes leves, em comedinhas ou romances, mas também em dramas. Em West Side Story, canta-se no meio da tragédia, da violência e das mortes. Em Cabaret canta-se enquanto o nazismo cresce pior que onda de tsunami. Em All That Jazz canta-se enquanto o protagonista está literalmente passando desta para melhor.
Cinco anos antes de 8 Mulheres, o mestre Alain Resnais havia feito On Connait la Chanson, um delicioso filme sobre encontros e desencontros, amores e desamores, em que, de repente, um dos seis atores principais dubla uma canção popular famosa.
On Connait la Chanson seguramente foi a maior inspiração para que Ozon temperasse com números musicais este seu filme.
Mas é a combinação resultante de tudo isso – mistério, assassinato, suspense, drama familiar, comédia, musical, farsa, Agatha Christe, Mario Monicelli, Dougas Sirk, o casal Demy-Varda – que torna 8 Mulheres um filme singular.
Além, é claro, das oito atrizes. E cada uma delas canta a sua canção, com sua própria voz. A ação dá uma paradinha para que cada estrela tenha seu momento de brilho solo-sonoro-musical. Em alguns dos números musicais, há dança, coreografia, como num show teatral, no vaudeville.
Várias das canções eu desconhecia completamente, antes de ver o filme. Há melodias alegres, bem pop anos 60, como “Mon amour mon ami” (André Popp-Eddy Marnay), cantada no filme por Virginie Ledoyen, “Pile ou face” (Jean-Louis d’Onofrio), apresentada por uma Emmanuelle Béart que parece uma onça prestes a atacar a vítima, e “Papa t’es plus dans le coup” (Jean & Jacques Plait), a canção da caçula Ludivine Sagnier, perfeita para o repertório de Sylvie Vartan, a Cely Campello deles.
E há canções mais pesadas, adultas, sérias: “Toi jamais” (Michel Mallory), a performance de La Deneuve, “Pour ne pas vivre seul” (Sébastien Balasko and Daniel Fauré), cantada por Firmine Richard.
Duas são obras-primas da canção francesa: “Message personnel” (Françoise Hardy-Michel Berger), a canção de Isabelle Huppert, e “Il n’y a pas d’amour heureux” (poema de Louis Aragon, melodia de Georges Brassens, o Noel deles), apropriada para a voz – ainda firme, ainda límpida, mas mostrando, é claro, o peso dos muitos anos – de Danielle Darrieux.
Uma maravilha de filme. Como foi possível que a gente não tivesse revisto ainda nem uma vez?
Um rapidíssimo PS sobre as fotos deste post. Prefiro, sempre, como regra, usar, para ilustrar meus comentários, fotos de seqüências dos filmes. Tento ao máximo não usar os stills, as fotos feitas especialmente para a publicidade, as fotos do marketing. Aqui faço uma exceção. As mais belas fotos disponíveis na internet são os stills, as fotos posadas, não reproduções de cenas mesmo do filme, mas as fotos para divulgação. E tem sentido: 8 Mulheres é um filme espetáculo à parte. A imagem mais pura do filme são as imagens feitas para vendê-lo.
Ah, sim, um PS do PS: a primeira foto do post, aquela lá de cima, aquela lá não é um still publicitário – é de fato uma cena do filme. François Ozon, teatralmente, faz suas atrizes se apresentarem diante do distinto público, como no teatro, para receber os aplausos. E como merecem aplausos, essas oito mulheres.
Anotação em setembro de 2011
8 Mulheres/8 Femmes
De François Ozon, França-Itália, 2002
Com Danielle Darrieux (Mamy), Catherine Deneuve (Gaby), Isabelle Huppert (Augustine), Emmanuelle Béart (Louise), Fanny Ardant (Pierrette), Virginie Ledoyen (Suzon), Ludivine Sagnier (Catherine), Firmine Richard (Madame Chanel), Dominique Lamure (Marcel)
Roteiro Marina de Van e François Ozon
Baseado na peça de Robert Thomas
Fotografia Jeanne Lapoirie
Música Krishna Levy
Produção BIM, Canal+, Centre National de la Cinématographie (CNC), Fidélité Productions, France 2 Cinéma. DVD lançado pela Imagem e também pela Versátil.
Cor, 111 min
R, ***1/2
Concordo que o elenco é formidável, mas o final do filme não me convenceu, achei simplório demais. O Ozon já fez coisas bem melhores.