Vestígios do Dia / The Remains of the Day


4.0 out of 5.0 stars

Anotação em 2010: Vestígios do Dia é um belíssimo, extraordinário filme. Na minha opinião, é o melhor de todos os ótimos filmes da trinca James Ivory-Ismail Merchant-Ruth Prawler Jhabvala.

É maravilhosa, deslumbrante, a forma como a roteirista alemã de origem indiana Ruth Prawler Jhabvala, com base no romance do inglês de origem japonesa Kazuo Ishiguro, soube construir a narrativa de três histórias diferentes, mescladas numa mesma história.

E que soberba narrativa, que belas – e tristíssimas – histórias. Fiquei com a sensação, ao rever agora o filme de 1993, 16, 17 anos atrás, que esta é uma das mais tristes, mais melancólicas, mais desesperançadas histórias de amor que o cinema já contou, em mais de cem anos. 

A história que está mais óbvia, mais evidente, mais à flor da superfície, é a do mordomo Mr. Stevens (Anthony Hopkins) e da governanta Miss Kenton (Emma Thompson).

Junto dela, paralelamente a ela, mas em segundo plano, vemos a história do dono da gigantesca, bilionária mansão de campo onde trabalham o mordomo e a governanta, Lord Darlington (James Fox).

E através da história de Lord Darlington, como pano de fundo, vemos o desenrolar de um trecho especialmente importante da grande História – os anos 1930, a ascensão do nazismo, e como parte da aristocracia inglesa apoiou a Alemanha, deixou-se levar como massa de manobra pelo regime hitlerista, e tentou estabelecer um acordo de não-agressão entre a Grã-Bretanha e o Reich.

         No começo da narrativa, uma cascata de informações

Quando a ação começa, a Segunda Guerra Mundial já acabou; o espectador não sabe ainda exatamente em que ano estamos, mas sabe que a guerra é coisa do passado recente. O mordomo Stevens está recebendo uma carta da ex-governanta Miss Kenton. Faz muito tempo que ela não trabalha mais em Darlington Hall – este é o nome da propriedade; ele, no entanto, continua lá, imutável como uma rocha.

As informações são muitas, bem no início da narrativa, e vêem de forma rápida – mas percebemos que Lord Darlington caiu em desgraça, sua propriedade está sendo vendida, e é comprada por um bilionário americano, Jack Lewis (Christopher Reeve) – e, na carta que Miss Kenton escreveu a Mr. Stevens, e que ouvimos na voz maravilhosa e indisfarçável de Emma Thompson, há a pergunta: “Será o mesmo Mr. Lewis que visitou Darlington Hall no ano de 1933?”

Sim, é o mesmo Mr. Lewis, nos anos 30 congressista americano, que, como dezenas de outras personalidades importantes da política – ingleses, franceses, alemães – freqüentou a mansão durante seus anos mais dourados. Vemos então um diálogo entre Mr. Lewis, o atual patrão, e o velho mordomo Stevens. A família de Lewis está para chegar dos Estados Unidos, e Stevens está tendo problemas com o pessoal da propriedade, está precisando de uma boa governanta. Como, na mais recente carta, a ex-Miss Kenton, agora Mrs. Benn, mencionou o desejo de voltar a trabalhar, Stevens pensa em procurá-la. Pergunta ao patrão se poderia se ausentar por alguns dias, para fazer uma viagem, durante a qual aproveitaria para encaminhar uma solução para a falta de pessoal bem treinado em Darlington Hall. O americano Lewis o incentiva a fazer isso: – “Vá ver um pouco do mundo, homem! Você não é de viajar muito para ver o mundo, não é?” Ao que o mordomo responde: “Se o sr. me permite dizer isso, Sir, o mundo vinha a Darlington Hall.”

Stevens, a rocha, o que não move nunca, empreenderá então a viagem até um lugarejo no litoral Oeste da Inglaterra em que vive Mrs. Benn. Esses fatos – o presente, o hoje – se dão 20 anos depois que a governanta deixou a propriedade, o que aconteceu por volta de 1937, 1938; estamos, portanto, em 1957, 1958. Ao longo do filme, veremos trechos dessa viagem de Stevens – mas, sobretudo, veremos o que aconteceu em Darlington Hall entre 1933 e 1937, 1938. O ano de 1933, em que Lord Darlington começou a receber as importantes visitas, nas quais tentava costurar um apoio à Alemanha, foi também o ano em que chegou para trabalhar ali a nova governante, Miss Kenton, então bem jovem, embora com cartas de apresentação impecáveis.

         Personagens que escondem seus sentimentos

Em várias de suas belas obras, o diretor James Ivory, o produtor Ismail Merchant, ele também às vezes diretor, e a roteirista Ruth Prawler Jhabvala, ela também autora de romances, focalizaram personagens que escondem seus sentimentos, suas sensações, sob uma couraça de formalismo, educação, prudência, convencionalismo. É um tema de vital importância para a sociedade inglesa, possivelmente a sociedade mais formal, mais convencional que o mundo já conheceu – pelo menos até os anos 1960, quando o rock, o pop, a moda, a minissaia, as drogas viraram de cabeça para baixo aquele mundo de chapéu coco e guarda-chuva.

Em Uma Janela para o Amor, a heroína Lucy Honeychurch (Helena Bonham Carter), moça rica e educada, quase joga fora sua vida ao tentar fugir da paixão por George Emerson (Julian Sands), um jovem que ousa demonstrar para o mundo seus sentimentos.  Em Mr. e Mrs. Bridge – Cenas de uma Família, o trio focalizou um casal rico da Nova Inglaterra (interpretado por Paul Newman e Joanne Woodward) dividido entre o amor, a alegria, de um lado, e uma obediência rígida aos “bons costumes” sociais. Em Retorno a Howards End, vemos um desfilar de embates entre as vontades, as sensações, o que se quer da vida, e o que é imposto pela sociedade, com toda sua grotesca rigidez.

É fascinante que a trinca Ivory-Merchant-Jhabvala e a dupla Anthony Hopkins-Emma Thompson tenham se reunido em tão curto espaço de tempo – Retorno a Howards End é de 1992, Vestígios do Dia é de 1993 – e feito dois filmes tão distintos um do outro e ao mesmo tempo tão próximos. No primeiro, Hopkins é um sujeito riquíssimo, e Emma, de uma família de meios – e aqui, em Vestígios do Dia, são working class, são trabalhadores, têm origem humilde, embora trabalhem tão diretamente perto dos muito ricos. 

         O mordomo não percebe o que está acontecendo no mundo

O estilo de James Ivory é suave, sutil. Ele é o anti-fogos de artifício, o anti-olhem como eu sou genial. Talvez exatamente por isso este seja um dos filmes que mais fundo vão na descrição das distâncias entre as classes na sociedade inglesa – aquela coisa pavorosa, quase de castas.

O personagem do mordomo Stevens concentra a imbecilidade, a alienação da realidade, a incapacidade de se entregar aos sentimentos em doses cavalares, industriais, astronômicas. Assim como não permite aflorar seus sentimentos, não tem pensamento próprio – segue em frente, como cavalo com antolhos, perseguindo apenas o que se convenciou que devem ser as características básicas de um mordomo: a total submissão ao patrão e à necessidade de ser sempre digno, rígido, amorfo. Não compreende o que está acontecendo diante de seus olhos: não percebe o que aquele bando de pessoas está planejando fazer. Prestar atenção ao que se diz o desviaria de seus deveres de estar sempre atento à mesa para atender às mínimas necessidades dos convidados de His Lordship.

A mesma incapacidade de entender o mundo o faz não perceber o que sente a mulher que está perto dele ao longo de todos os dias e todas as noites de trabalho – e muito menos o que ele próprio mesmo sente.

         O autor da história tão inglesa é um japonês

Há muita coisa no filme de que não me lembrava. Não me lembrava, por exemplo, que o autor do romance em que o roteiro se baseia é um japonês, Kazuo Ishiguro. Como pode um japonês descrever tão perfeitamente aquela sociedade absolutamente inglesa, como só os ingleses conseguem ser?

Bem, há muitas dessas surpresas. O chinês de Taiwan hoje americano Ang Lee fez uma dos mais preciosos filmes baseados na inglesérrima Jane Austen, Razão e Sensibilidade – não por coincidência, baseado em um roteiro de Emma Thompson. O americanérrimo Burt Lancaster interpretou com brilho um nobre italiano em O Leopardo, de Visconti. O diretor indiano Shekhar Kapur fez os dois Elizabeth, com Cate Blanchett no papel da Rainha Elizabeth I. A jovem diretora inglesa Sarah Gavron fez Um Lugar Chamado Brick Lane, sobre a realidade dos imigrantes de Bangladesh.

E o próprio James Ivory, que parece mais inglês do que 90% dos ingleses, é americano.

No caso específico do escritor Kazuo Ishiguro, temos que é um japonês (nasceu em Nagasaki, em 1954) aculturado inglês. Em 1995, receber um O.B.E. (a comenda de Officer of the British Empire) pelas suas obras literárias. Cresceu em Guildford, no Surrey. 

Outra característica do filme da qual não me lembrava é a trilha sonora. De autoria de Richard Robbins, é brilhante, lindíssima. Combina maravilhosamente um tom sinfônico, maior, amplo, de servir a grandes painéis da história, a épicos, com tons menores, mais suaves, melancólicos, tristes. 

         Um final de comover os mais insensíveis

Vestígios do Dia teve oito indicações para o Oscar – melhor filme, melhor direção, melhor ator para Hopkins, melhor atriz para Emma, melhor roteiro adaptado, melhor música, melhor direção de arte, melhor figurino. Não levou nada – talvez porque a Academia já tivesse um ano antes dado três prêmios a Retorno a Howards End (atriz para Emma, direção de arte e roteiro adaptado). Teve outras 15 indicações, e 15 prêmios.

Todo o final do filme é de uma tristeza, uma melancolia de fazer chorar os mais insensíveis. É absolutamente espetacular – o melhor da vida passou, o esplendor que era tão vistoso e elegante quanto ideologicamente errado, podre, corrompido, acabou, e o restinho de sonho que sobrara para sonhar, não se tem mais força para lutar por ele.

Uma obra-prima.

Outros filmes dirigidos por James Ivory já no site:

Uma Janela para o Amor/A Room With a View, de 1985

Um Caso Meio Incomum/Slaves of New York, de 1989

Retorno a Howards End/Howards End, de 1991

A Condessa Branca/The White Countess, de 2005

Vestígios do Dia/The Remain of the Day

De James Ivory, Inglaterra-EUA, 1993

Com Anthony Hopkins (Stevens), Emma Thompson (Miss Kenton), James Fox (Lord Darlington), Christopher Reeve (Lewis), Peter Vaughan (Mr. Stevens, Sr.), Hugh Grant (Cardinal), Michel Lonsdale (Dupont D’Ivry) 

Roteiro Ruth Prawer Jhabvala

Baseado no romance de Kazuo Ishiguro

Montagem Andrew Marcus

Fotografia Tony Pierce-Roberts

Música Richard Robbins

Produção Columbia Pictures

Cor, 135 min

R, ****

Título em Portugal: Os Despojos do Dia

28 Comentários para “Vestígios do Dia / The Remains of the Day”

  1. Caro Sergio,ontem vi esse filme na tv.
    Foi por acaso,na troca de canal…o filme,em questao de um minuto,prendeu a minha atençao.
    Deixei de terminar um trabalho para ve-lo ate o final.Eu concordo com o que voce diz.
    Nao sou muito chegado a filmes ou tv…mas um
    produto de tao boa qualidade,despojado de apelaçao comercial,torna-se um classico.
    Entendi,tambem,que quando estabelecemos nosso modo de viver,moldamos o nosso destino.Entao, a maravilhosa chance de sermos felizes e realizados perde-se no tempo.Deixar o orgulho e perguntar a Deus, torna o caminho suave,com Seu toque de amor.

  2. Fiquei bastante impressionado com submissão do ator ao seu patrão na verdade temos que viver a época que era uma época difícil mesmo por apenas ser um filme. as vezes acontece isso as pessoas deixam de acreditar em Deus para se submeterem a homens e no final a sua dádiva não brilha. mesmo por ser um filme é baseado em alguma historia me deu muita pena de ver o ator interpretar a sena. confie em Jeová é sem duvida a maior oportunidade que você terá na vida.ele vira estabelecer seu reino 2Pedro3:13,14 bastante interessante este filme

  3. Um filme de rara suntuosidade, sob qualquer
    prisma. Atores notáveis em interpretações
    memoráveis – e, além do par central, quase
    incomparável, há esse fantástico, e a cada vez melhor, James Fox – numa história gelidamente lancinante. Talvez seja o fundo
    de toda grande literatura: refletir sobre a
    melancolia do que poderia ter sido e não será. Belíssimo, no mesmo patamar de A idade da Inocência. (Apenas um comentário, até indelicado, pelo que, antecipadamente, me desculpo se não entendi o espírito: mas, será que até aqui teremos que suportar seguidores de RR Soares ou Fala que eu te escuto?)

  4. Uma maravilha. Triste, muito triste mas uma maravilha. Não me aborrecem os filmes tristes, aliás prefiro mil vezes os dramas às comédias.
    Só há uns dias é que vi este notável filme, mais de 20 anos depois de ter sido feito, graças ao DVD.

  5. Acho que o fato de Kasuo Ishiguro ter dous referenciais culturais, ajuda a compreender com profundidade ingleses e japoneses. Os livros dele contextualizados no japāo e Inglaterra mostram isso muito bem. E seu talento raro de contar uma história resultam nessa maravilha de escritor. Seus livros “um artista num mundo. Flutuante” e “Uma pálida visão dos montes” são também muito bos. Tomara que levem para o cinema.
    Parabéns pela crítica. Muito completa e perspicaz .

  6. Este filme é simplesmente extraordinário, e nos mostra os “dois lados da moeda”: fazer seu trabalho de forma impecável a qualquer custo, ou jogar tudo para o alto e abraçar o amor de sua vida? Fora isso, o figurino estonteante, a câmera estática, a fidalguia inglesa e, acima de tudo, a classe inigualável deste estupendo ator Anthony Hopkins. Observem a categoria, a expressão, a postura, meu Deus, que fenomenal ator, e a excepcional Emma Thompson também não fica atrás. Quem ainda não viu, faça-o imediatamente!

  7. Realmente uma obra que nos faz refletir, triste que no fundo eles sabem que são apaixonados um pelo outro mas não se deixam levar, nos faz lembrar das paixões da pré adolescência que nunca conseguimos por em prática por medo e falta de experiência, amores perdidos que na voltam mais.. Quem nunca viveu esse fracasso por não tentar se arriscar? Eu vivi muitos!

  8. Arrisquei assistir na Netflix só por Hopkins. Sem palavras! Lembrei daqui e vim correndo buscar as referências das referências.

  9. Sérgio, você deve ter percebido, mas não quis registrar: a compra pelo bilionário americano da mansão decadente Darlington Hall para restaurá-la é uma micro referência ao Plano Marshall, o programa de ajuda americana à reconstrução da Europa depois da Segunda Guerra.

  10. Grande Sergio, deu um grau no site hein, parabéns! Ficou mais bonito. E não afugenta a moçada fiel. Acho. O que eu entendo? Nada. Parabéns de novo.
    Vi ontem o Vestígios. Sempre que vejo alguma coisa de que gosto fuço o site.
    Sergio, de vez em quando vc não tem a impressão de que nós brasileiros estranhamos tanto o jeito inglês pelo fato de que o que a gente chama aqui cultura, nossa cultura, é uma gotinha de água com cal, enquanto a deles já formou estalactite?
    Tem nego que diz que na Inglaterra as regras são conhecidas por todos. Vc pode não gostar delas, mas isso é outro papo. E a gente? A gente tem regra? Norma? Qual?
    Abração meu, se cuida

  11. Heitor! Grande Heitor!
    Você tinha sumido, cara! Bem, eu também…
    Bom ler comentário seu!
    Outro dia mesmo meu amigo Valdir Sanches, em um texto no 50 Anos de Textos, citou o livro “50 Anos de Filmes”, por Sérgio Vaz… Um livro que só existe graças a você!
    Leia lá, leia lá: http://50anosdetextos.com.br/2020/anotacoes-de-um-confinado-2/
    E mande comentários de vez em quando, pô!
    Abração!
    Sérgio

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