Anotação em 2010: O único defeito deste filme de Martin Ritt de 1963 é o título imbecil que os exibidores brasileiros escolheram para ele. O Indomado passa um sentido positivo para o protagonista da história, o Hud do título original, interpretado por Paul Newman. E Hud é um crápula.
Hud é um drama familiar, uma parábola sobre moral, princípios, valores. A ação se passa em uma fazenda do interiorzão do Texas e na cidadezinha pequena – tão pequena que nem ficamos sabendo seu nome – mais próxima a ela. Há carros e uma estrada asfaltada, e na cidade há elementos que identificam a época – fim dos anos 50, início dos 60, quando o filme foi feito –, mas, apesar disso, é quase como se estivéssemos no Velho Oeste. Hud tem um jeitão quase de western.
Como nos westerns, não se fala muito no filme. Há longas sequüências sem diálogos, e muitos dos diálogos são naquele estilo seco, macho, típico dos velhos westerns. Haverá, sim, ao longo de todo o filme, uns quatro ou cinco diálogos fortes, importantes, impactantes, reveladores – mas são poucos.
Como nos westerns, temos longas tomadas em plano geral, que nos mostram a paisagem ampla. E a paisagem – realçada pela extraordinária fotografia em preto-e-branco de James Wong Howe, um dos maiores diretores de fotografia do cinema americano – é áspera, árida. Praticamente não há árvores – a vegetação é baixa, rasteira, e a terra é plana, a perder de vista. Aquilo ali é fim de mundo, longe de tudo, uma imensa desolação.
A fazenda de Homer Bannon (interpretado pelo grande Melvyn Douglas, então com 62 anos, mas aparentando bem mais) é grande, mas ele não é rico. Cria gado, vive disso; a vida é dura, há trabalho demais; não chega a haver falta de dinheiro, mas não há sobra alguma.
Na casa simples da fazenda, Homer vive com seu filho Hud, que está aí com uns 30 e poucos anos, e seu neto Lon (Brandon de Wilde, que tinha feito o garotinho de Shane), de 17 anos. Numa edícula perto da casa vive Alma (Patricia Neal, em um dos papéis mais marcantes de sua carreira), a empregada, uma mulher divorciada, amarga, lutadora, batalhadora, solitária.
O garoto Lon perdeu o pai, o irmão de Hud, e a mãe. Tem um certa tesão por Alma, apesar da diferença de idade; e tem também respeito pelo avó e uma admiração adolescente pelo tio.
Hud e o pai não se dão bem. Lon pergunta ao avô por quê, Hommer diz que Hud sabe por que, e isso é o suficiente.
Aos 30 e tantos anos, tendo que trabalhar duro na fazenda, e apesar de não ter dinheiro folgado, Hud mais parece um adolescente filho de papai, um playboyzinho irresponsável. Bonitão, atraente, come as mulheres da cidade, casadas ou não. Bebe feito um profissional. É absolutamente egocêntrico, daquele tipo que acha que o mundo gira em torno de seu umbigo.
Toda sua escala de valores, sua forma de ver o mundo é exatamente oposta à do pai.
Um personagem como os de Marlon Brando e James Dean
É fascinante notar que Hud – um filme em que o velho é o herói, e o jovem é um crápula, um sem caráter – tenha sido feito naquela época, 1963, em que o cinema, assim como toda a sociedade a seu redor, passavam a privilegiar, a incensar, a bajular os jovens, em detrimento dos mais velhos. Desde o surgimento do rock’n’roll, em meados dos anos 50, e cada vez mais, ao longo dos anos 60, a juventude foi tomando o poder – pelo menos na música e no cinema. Os jovens foram passando a ser os maiores consumidores de discos e ingressos no cinema, e a indústria foi se voltando cada vez mais para eles.
Marlon Brando e James Dean, dois colegas de geração de Paul Newman – e que, como ele, aprenderam arte dramática no emblemático Actors Studio, de Lee Strasberg – foram representantes dessa reviravolta, em filmes também emblemáticos, Juventude Transviada/Rebel Without a Cause, de 1955, e O Selvagem/The Wild One, de 1953. No conflito de gerações, o cinema tomava o partido dos jovens, nesses e em dezenas e dezenas de outros filmes, não só americanos, mas também ingleses, franceses.
O Hud que Paul Newman compõe é muito parecido com o personagem de Marlon Brando em O Selvagem, ou os personagens de James Dean em Juventude Transviada e também em Assim Caminha a Humanidade/Giant, de 1956 – que aliás também se passa numa fazenda de gado do Texas, com a diferença de que numa fazenda muito, muito rica. Hud não usa o blusão de couro ou a moto dos outros dois – mas essa parece ser a maior diferença entre o personagem de Newman e os de Brando e Dean.
Em vez de moto, Hud usa um Cadillac cor-de-rosa. Em vez de blusão de couro, usa jaqueta jeans. O resto é igual – o jeito rebelde, um tanto irresponsável, egocêntrico, contra o sistema estabelecido, contra a forma de os pais verem o mundo.
Por mais anti-heróis que fossem, os personagens de Brando e Dean eram, para os jovens, os heróis.
Tome-se o exemplo de Giant. Entre o fazendeirão ricaço, que consegue tudo o que quer, interpretado por Rock Hudson, e o rebelde sem causa pobretão, desajeitado, charmosíssimo, intepretado por James Dean, as simpatias de 101% das pessoas da platéia iam para James Dean, é claro.
Em Hud, não dá para ter simpatia pelo jovem – ele é o anti-herói acabado, um crápula, sem caráter.
Sim, é fascinante ver isso hoje, com a visão mais clara permitida pela distância. Hud é um filme que ia contra a maré da época. Em Hud, bom é o velho.
Um cineasta progressista, que gostava de temas polêmicos
Martin Ritt (1914-1990) era dos cineastas progressistas, que gostavam de temas políticos e sociais. Fez diversos bons filmes, alguns ótimos. Acabei de escrever essas duas frases e fui dar uma olhada na filmografia dele no Dicionário de Jean Tulard: “Cineasta generoso, representou a ala liberal do cinema americano. Foi, aliás, incluído na ‘lista negra’ nos anos 60 e passou, interrompendo sua carreira de ator e diretor de teatro, a lecionar no Actors Studio, onde teve James Dean por aluno. Seus filmes abordam, a partir de 1957, temas polêmicos. (…) Fez filmes sobre o racismo (Um Homem Tem Três Metros de Altura, A Grande Esperança Branca), o macartismo (Testa de Ferro por Acaso), o sindicalismo (Norma Rae).”
Martin Ritt dirigiu Paul Newman – ele também um liberal, na acepção americana do termo – diversas vezes: O Mercador de Almas/The Long, Hot Summer, de 1958, Paris Vive à Noite/Paris Blues, de 1961, As Aventuras de um Jovem/Hemingway’s Adventures of a Young Man, de 1962, este Hud, Quatro Confissões/The Outrage, de 1964, Hombre, de 1967. Devia de fato ser amigo do ator – dirigiu a mulher dele, Joanne Woodward, em pelo menos três filmes. Formaram uma bela dupla, o diretor e o grande ator.
Hud foi indicado a sete Oscars. Perdeu nas categorias de direção, ator (Paul Newman), roteiro adaptado e direção de arte. Levou os prêmios de atriz coadjuvante para a maravilhosa Patricia Neal, ator coadjuvante para Melvyn Douglas e fotografia em preto-e-branco. Patricia Neal levou também o Bafta para melhor atriz estrangeira, isto é, não britânica. O filme teve um total de 14 prêmios e 14 outras indicações.
Vejo na edição brasileira de 1001 Noites no Cinema que Pauline Kael, exigentíssima, língua ferina, pronta a desancar com qualquer maravilha, que ela define Hud como um “interessantíssimo western contemporâneo, passado no Texas de Cadillacs e gado, grilos e rádios transistorizados”:
“O filme é esquizóide: manda-nos condenar o vigarista niilista Hud (Paul Newman), que representa o ‘materialismo’ moderno, mas colocar Newman como um materialista mau é como alguém escrever um manifesto contra os bancos jogando ao mesmo tempo com investimentos para fazer fortuna.”
É uma grande gozadora, e uma frasista brilhante, a primeira dama da crítica americana. Mais adiante, ela fala de Patricia Neal:
“Patricia Neal, encorpada e simpática, tem um bom humor descontraído, bruto, e fala sedutoramente, com um forte sotaque do Texas; a interação sexual entre ela e Newman tem a exata temperatura do verão – este é um dos melhores trabalhos já feitos pelo diretor, Martin Ritt.”
E Pauline Kael ainda tem a sacada óbvia mas necessária, de lembrar que Brandon de Wilde é uma versão adolescente do menino que ele havia interpretado em Shane.
Um tempo em que bons princípios passam a parecer obsoletos
O filme se baseia num romance do escritor texano Larry McMurtry, autor também dos textos que deram origem a A Última Sessão de Cinema, de Peter Bogdanovich, de 1971, e Laços de Ternura/Terms of Endearment, de James L. Brooks, de 1983. O clima do filme, em especial nas seqüências passadas na cidadezinha perdida naquele fim de mundo, faz de fato lembrar demais A Última Sessão de Cinema – ou vice-versa, na verdade, já que este último é posterior a Hud. Tem até uma sessão de cinema, em que o velho Homer e seu neto Lon cantam, acompanhando o que se passa na tela, a canção “My Darling Clementine.”
É uma seqüência belíssima. Em boa parte, sintetiza muito do que o filme quer dizer – aquele velho homem justo, de princípios morais rígidos e sólidos, se emocionando com uma canção antiga, ingênua, num tempo em que os princípios morais corretos passam a ser tidos como antigos, ingênuos, obsoletos, que devem ser descartados, jogados fora.
O Indomado/Hud
De Martin Ritt, EUA, 1963
Com Paul Newman (Hud Bannon), Melvyn Douglas (Homer Bannon), Patricia Neal (Alma Brown), Brandon de Wilde (Lon Bannon)
Roteiro Irving Ravetch e Harriet Frank, Jr.
Baseado no livro Horseman, Pass By, de Larry McMurtry
Fotografia James Wong Howe
Música Elmer Bernstein
Montagem Frank Bracht
Produção Paramount.
P&B, 112 min
R, ***1/2
Um filmaço. Assisti ontém 4 abril 2012 no TCM
Tipo do filme que me agrada muito. Tudo que é bom passa rápido. 115 minutos que pareceram 30. O cara era carne de pescoço mesmo. Mas, uma ótima atuação do Newman.Com certeza foi muito doído para aquele velho homem, cansado da vida, da lida, ver todo aquele gado abatido daquela maneira.
Não me lembro de ter visto algum filme com a Patricia mas, que beleza de Alma Brown, muito bonita, que olhar. Mas, está em outro plano.
Só mesmo Paul Newman para me fazer ver um quase western, dear God. Perguntei a uma amiga que também vê filmes antigos se ela já tinha visto este, e ela disse que não, mas que era pra eu ver, porque se fosse ruim pelo menos tinha Paul.
Achei estranho os primeiros minutos com ele vestido de caubói, não gosto do estilo, mas depois acabei me acostumando, o homem era lindo de qualquer jeito (redundante falar isso), apesar de estar um pouco mais magro que o normal dele, que já era naturalmente magro.
É realmente difícil ter alguma simpatia pelo seu personagem, principalmente no momento mais forte do filme. O cara era tão babaca que nem esperou a pobre Alma (sem trocadilho) sentar direito no carro quando deu carona pra ela (última foto que ilustra o texto), e acelerou ainda com a porta aberta (além disso, estacionava em cima das flores). O jeito com que tratava as pessoas, principalmente o pai dele, chega a causar revolta. Nem com o sobrinho, que pela ingenuidade ainda o admirava, ele tentava ser minimamente legal.
Paul disse ter ficado espantado ao ver que mesmo sendo um vilão, Hud conquistou muitos fãs no cinema, que compravam o pôster do personagem e o tinham como herói.
Não achei Alma amarga, apenas sofrida, e ao contrário dos que geralmente já sofreram, bastante humana. Ela sabia onde pisava (e como sabia: só assim para rejeitar alguém na pele de um Paul Newman canalha mas sedutor, cheirando o seu cangote, ou lhe atentando no quarto, com uma flor na boca). Acabei torcendo por ela, que era uma boa pessoa, assim como o pai e o sobrinho do Hud. Eu devia ter meus olhos somente voltados ao Paul, mas nas sequências em que ele não aparece, eu era obrigada a olhar pra quem estava em cena; e não sei se é por estar acostumada a ver tanta plástica e cabelos milimetricamente no lugar nos filmes de Hollywood, que achei Patricia Neal bastante bonita, uma beleza natural, mas que se impõe. Talvez por causa do olhar forte.
Eu li que ela levou o Oscar de melhor atriz (mesmo tendo aparecido muito pouco tempo na tela, apenas 21 minutos), e não o de melhor atriz coadjuvante, apesar do papel ser secundário.
O Oscar de melhor ator por Hud foi mais um dos que Paul não levou, tadinho. Chegou uma época em que ele até desistiu de ir à premiação, mesmo sendo indicado. Ainda bem que ele já tinha um Noscar. hehehe
Hilária e certeira a frase de Pauline Kael sobre ele e o personagem. Engraçado ela sempre falar do peso das atrizes, ainda que de maneira sutil (“encorpada”, “papudinha”).
A sequência que você cita do avô com o neto no cinema, cantando “My Darling Clementine” me chamou a atenção e me emocionou de leve. É mesmo belíssima, e achei interessante ler sobre ela aqui depois de ter visto o filme.
“Em boa parte, sintetiza muito do que o filme quer dizer – aquele velho homem justo, de princípios morais rígidos e sólidos, se emocionando com uma canção antiga, ingênua, num tempo em que os princípios morais corretos passam a ser tidos como antigos, ingênuos, obsoletos, que devem ser descartados, jogados fora.” Disse tudo! E será que não estamos voltando a essa época?
Ah, nas cenas onde eles colhem sangue do gado e também abatem, eu dei fast forward, achei agressivo. A sequência onde há um concurso de correr atrás de porcos, também preferi não ver inteira. Parece que as filmagens foram reais, no sentido de não haver cuidado com o bem-estar animal (não que hoje haja tanto, mas melhorou). Não é à toa que western é uma categoria de filme mais direcionada a homens. E verdade seja dita que tenho estômago sensível em relação a esse tipo de coisa, por não comer carne vermelha nem de porco há anos.
Uma curiosidade:
“After this success (Gata em Teto de Zinco Quente) Newman went on to make The Hustler (1961), Hud (1963), Harper (1966), Hombre (1967) and many other films starting with the letter ‘H’. Paul Newman got so sick of the letter ‘H’ that he refused to hear it until 1984’s Harry and Son.”
Resenha sensacional como de costume, Sérgio. É mesmo um prazer ler o que você escreve: lhe invejo por ter podido ver essas obras- primas na época em que foram lançadas. Assisti essa maravilha de filme pela segunda vez agora a pouco e percebi duas coisas: o filme envelheceu muito bem e Patrícia Neal era linda de doer. Brincadeiras a parte, é reflexivo e faz com que analisemos nossos valores e nossa moral. É forte, idealista, belo. O personagem de Paul Newman é maravilhoso, dos mais bem escritos que já se viu. Anti- heróis são tão necessários. E se Hud é dúbio, ao mesmo tempo é intimidante, invejável. Ele vive de acordo com sua própria lei superficial que o rege e não abre mão disso. Ao final, apesar de um certo pesar, senti uma mudança nele. No fundo, sabia que estava condenado a uma vida monótona, sem graça. Enfim, melancólico, nostálgico e real.