Anotação em 2010: Miss Simpatia é uma daquelas comedinhas do cinemão comercial americano que, a rigor, são bobinhas e descartáveis – mas, ao mesmo tempo, uma boa, gostosa diversão.
Faz boas brincadeiras com os estereótipos das candidatas a miss e suas antípodas, as mulheres pós-feminismo que priorizam absolutamente a carreira e não ligam a mínima para a aparência e o charme.
Claro, é um filme altamente contra-indicado para as pessoas sisudas que entendem que cinema tem que ser apenas arte, jamais entretenimento.
Feito em 2000, tem no elenco duas grandes figuras, em papéis importantes, mas secundários: a maravilhosa Candice Bergen e o excelente Michael Caine; e ainda tem William Shatner, o capitão da Enterprise da série Jornada nas Estrelas. Mas o filme é todo construído para o brilho de sua estrela, a anti-estrela Sandra Bullock. Com uma carreira irregular, que inclui grandes, indigestos abacaxis mas também bons filmes, Sandra estava num bom momento. Está ótima como Grace Hart, uma agente do FBI que faz questão de esconder qualquer possibilidade de charme feminino; é um tanto desastrada, mas inteligente, esperta, perseverante, ótima tanto em artes marciais como no estudo de mensagens cifradas, em código – e se veste da maneira mais desleixada e desengonçada possível, jamais cuida do cabelo e nunca usou um batom na vida.
Dois intróitos para mostrar quem é a nossa protagonista
O filme tem não um, mas dois intróitos. Na primeira seqüência, temos Grace garota, aí com uns 12 anos, na escola. Um garoto enche o saco de um amiguinho de Grace – e leva a maior porrada da menininha de óculos gigantescos e igualmente gigantesco pendor para todo tipo de luta.
Corta, e temos Grace madura, óculos gigantescos na cara, diante de um livro sobre gramática russa, numa missão policial em um bar de russos em Nova York. Assim como ela, há vários agentes do FBI disfarçados no próprio bar e na rua em frente, prontos para prender em flagrante uns tipos perigosos da Máfia russa. Grace faz uma besteira, quase põe a perder toda a operação. E ainda estamos nos créditos iniciais.
A história mesmo vai começar quando terminam os créditos. Um terrorista que já agiu algumas outras vezes e continua solto está ameaçando atacar no próximo concurso de Miss Estados Unidos, a se realizar dentro de alguns dias em San Antonio, no Texas. Claro, surge a idéia de botar uma agente disfarçada concorrendo ao título. Grace Hart, é claro. O FBI leva a proposta à mulher que há 25 anos dirige o concurso, Kathy – o papel de Candice Bergen, belíssima no esplendor de seus 54 anos. Não há como negar um pedido do FBI – mas Kathy recomenda ao bureau que leve aquela agente horrorosa para ser trabalhada por Victor Melling, um expert na arte de preparar candidatas a miss.
É o papel de Michael Caine – e só para ver o grande ator inglês interpretar um homossexual todo afetado, aquilo que antes do politicamente correto a gente chamava de veadaço, já valeria a pena assistir a esta comedinha. Os encontros, os diálogos entre ele e a desengonçada e quase machona agente do FBI são uma delícia. É uma espécie assim de relação entre Pigmalião e Eliza Doolittle, da peça de George Bernard Shaw e do musical baseado nela My Fair Lady. A tarefa do personagem de Michael Caine de transformar a agente Grace Hart em uma candidata a miss é tão hercúlea quando a de Pigmalião-Henry Higgins em fazer da florista das ruas uma dama da alta sociedade inglesa.
Numa das conversas entre os dois, Grace, uma boca-suja fala alguma barbaridade – e o preparador de misses, escandalizado, horrizado, exclama:
– “Hum… Dirty Harriett!”
A cena em que, finalmente, depois de se submeter a uma torturante sessão com uns 20 esteticistas, a agente Grace Hart aparece como mulher também é deliciosa. E a Bullock, a garota da casa ao lado, está gostosérrima, com pernas que não fazem feio mesmo se comparadas à da Miss Roma de 1946, Silvana Mangano.
Miss Simpatia deu certo na bilheteria – tanto que teve uma seqüência, Miss Simpatia 2 – Armada e Poderosa, cinco anos mais tarde, em 2005. Um dia ainda vejo essa bobagem.
Uma estrela anti-estrela com péssimas e ótimas atuações
Me permito repetir aqui o que já disse outras vezes: ao contrário da minha filha Fernanda, e de tanta gente, gosto da Sandra Bullock. Gosto do jeitinho dela de mulher da casa ao lado, de anti-estrela, de anti-beleza perfeita, tradicional. Já fez muita porcaria, como o horrendo Forças da Natureza, mas está bem em 28 dias, em que faz o papel de uma alcoólatra, e em Confidencial/Infamous, de 2006, compôs uma maravilhosa Harper Lee, a escritora, autora de To Kill a Mockinbird, a amiga de Truman Capote que vai com ele ao Kansas após os bárbaros assassinatos que seriam retratados no livro A Sangue Frio.
Por uma imensa coincidência, vi Miss Simpatia no mesmo dia em que já havia visto Sandra Bullock em Maluca Paixão/All About Steve – um filme horroroso, que para ser considerado péssimo precisaria melhorar demais. Por Maluca Paixão, ela ganharia a Framboesa de Ouro, um antiprêmio de gozação dado aos piores do ano. Mas, naquele mesmo ano, 2009, ela teria dois grandes sucessos, A Proposta, uma comédia romântica descartável mas gostosinha, e o drama Um Sonho Possível/The Blind Side, pelo qual ela ganhou o Oscar, o Globo de Ouro e o prêmio do Screen Actors’ Guild, o sindicato dos atores. Com esses dois filmes, tornou-se a atriz número 1 dos Estados Unidos, a de maior bilheteria.
Uma figura, a Bullock: pior atriz e melhor atriz, no mesmo ano.
Miss Simpatia/Miss Congeniality
De Donald Petrie, EUA, 2000.
Com Sandra Bullock (Gracie Hart), Michael Caine (Victor Melling), Benjamin Bratt (Eric Matthews), William Shatner (Stan Fields), Ernie Hudson (McDonald), John DiResta (agente Clonsky), Candice Bergen (Kathy Morningside), Heather Burns (Cheryl “Rhode Island”)
Roteiro Katie Ford e Marc Lawrence
Argumento Marc Lawrence
Música Edward Shearmur
Fotografia Laszlo Kovacs
Montagem Billy Weber
Produção Castle Rock Entertainment, Fortis Films, Village Roadshow Pictures, distribuição Warner Bros.
Cor, 111 min
**1/2
Depois do Oscar para Sandra Bulok em 2010, aguardo ansiosamente a premiação de melhor ator a Silvester Stalone para 2011.
É a decadência de Hollywood.