3.5 out of 5.0 stars
Anotação em 2010: Minha Vida de Cachorro é um belo filme, sensível, com um bem dosado equilíbrio entre tristeza e graça. Não tem contra-indicação: é agradável até para quem, como eu, não gosta especialmente de filmes sobre infância, o mundo visto através dos olhos de uma criança.
A criança em questão é Ingemar, um moleque de uns 12 anos, raciocínio de adolescente bem mais velho em diversas situações, e comportamento e aparência de bem mais novo que isso. Ele é interpretado por Anton Glanzelius, que está absolutamente perfeito no papel.
A ação se passa no final dos anos 50 – em 1959, para ser preciso. Não há letreiro informando a data, mas, em uma seqüência no final, toda a pequena cidade em que está Ingemar acompanha a luta em que em Ingemar Johansson derrotou Floyd Patterson e tornou-se campeão mundial dos pesos pesados, o primeiro e creio que único sueco a conquistar o título. A luta aconteceu em 1959, um ano depois que o Brasil foi campeão mundial de futebol em Estocolmo. Essa informação não está aí solta – está é fora de lugar. Volto ao assunto mais tarde.
Nosso Ingemar, então, é assim: uma figurinha um tanto complexa. Volta e meia tem atitudes de moleque de sete anos de idade – briga aos tapas com o irmão mais velho, Erik (Manfred Serner, à esquerda na foto), que deve ter uns 16; faz manha, derruba leite na mesa e no chão; remexe o prato de comida e não come nada, irrita os mais velhos. Ao mesmo tempo, faz longas filosofadas sobre o peso das coisas da vida – compara tragédias. Para se consolar da sua dor, pensa em histórias mais tristes ainda, como a de uma freira que foi ajudar as pessoas na Etiópia e acabou morta a pauladas. Ou sobre a cadelinha Laika, que os russos tinham acabado de mandar para o espaço num Sputnik e que morreria lá de fome. É um menino muito bem informado. Bem, também estamos falando de Suécia, primeiríssimo mundo, boa educação.
Um garoto com sortes na vida – e enfrentando uma tragédia
Ingemar tem algumas sortes na vida. Tem uma namoradinha linda na sua cidadezinha – e, na cidadezinha do seu tio, para onde será mandado duas vezes, será disputado por duas garotinhas; uma delas, Saga (Melinda Kinnaman) é uma gracinha de menina, boa no futebol e no boxe e bastante oferecidinha a ele, Ingemar. O tio (Tomas von Bromssen) é uma grande figura, sujeito sempre alegre, brincalhão, bem humorado, assim como sua mulher. E ainda tem Berit (Ing-Marie Carlsson, na foto abaixo), a mulher mais gostosa da cidadezinha, por quem aliás o tio tem uma forte atração; Berit gosta de Ingemar, ficam amigos, e, quando o escultor da localidade a chama para posar nua, ela leva Ingemar junto para as sessões na casa do artista, que é para manter a coisa meramente profissional, sem sexo envolvido.
A tragédia na vida de Ingemar é que sua mãe (Anki Liden), uma bela mulher que foi fotógrafa, está muito doente, e cada vez pior. É para que ela possa descansar, longe daquele moleque travesso dentro de casa, que Ingemar é enviado para a casa do irmão dela, na outra cidadezinha. Ingemar ficará lá cercado por pessoas que gostam dele e o tratam bem – mas longe da mãe e da outra grande paixão de sua vida, a cadelinha Sickam.
Um dos grandes méritos do diretor Lasse Hallström e de seus roteiristas é criar uma galeria de tipos interessantes, fascinantes, bem desenvolvidos. Nisso ele tem a ajuda do elenco, todo ele extraordinário. Temos o tio, figura de bem com a vida, tarado por mulheres, por futebol, por boxe; trabalha numa fábrica de vidro – aparentemente, o lugar que dá emprego para boa parte dos habitantes da cidadezinha; e, nas horas vagas, está sempre produzindo alguma coisa; tem jeito para tudo; construirá para Ingemar brincar uma casinha no terreno ao lado da casa onde mora.
Temos um velhinho bem velhinho e doente que vive com o tio de Ingemar, tarado e safado, que vive a pedir ao garoto que leia para ele textos de uma revista que descrevem roupas íntimas de mulheres. Temos a já citada Berit, figura sensacional, que sabe que é a mulher mais cobiçada do lugar e leva isso numa boa, na maior. A mulher do tio, que tem, como ele, um bom humor a toda prova. Temos o doidão do lugar, que gosta de tomar banho pelado no riacho em pleno inverno nórdico. E temos a garotinha Saga (na foto mais abaixo), uma figura também muito interessante, a princípio preocupada em esconder os seios que começam a crescer, para poder continuar jogando futebol com os garotos, e depois interessada em mostrá-los e oferecê-los a Ingemar.
Falei da coisa de o Brasil ter sido campeão do mundo na Suécia em 1958 – tem a ver com a história. O tio de Ingemar é apaixonado pelo Brasil, fala de samba, do futebol brasileiro, tem fotos de sua viagem ao Rio de Janeiro. Se o Lula visse o filme, diria que foi graças a ele que o Brasil se tornou conhecido mundialmente, e é por causa dele que na Suécia se fala tanto de Brasil. Claro, claro.
Um diretor de belos filmes
O filme se baseia numa novela autobiográfica de um escritor chamado Reidar Jonsson. Lasse Hallström, então com 39 anos (nasceu em Estocolmo, em 1946), foi um dos autores do roteiro. Tinha já uma carreira firme, na Suécia; havia dirigido seis longa-metragens, inclusive ABBA: The Movie, de 1977, sobre o conjunto musical que era o maior produto de exportação da Suécia. Com Minha Vida de Cachorro, tornou-se conhecido internacionalmente. O filme foi indicado para os Oscars de melhor filme estrangeiro e melhor roteiro adaptado, e também para o Bafta de filme estrangeiro; não levou nenhum dos três prêmios, mas ganhou o Globo de Ouro de filme estrangeiro e mais 12 prêmios mundo afora.
Hallström ainda faria mais dois filmes na Suécia depois de Minha Vida de Cachorro, mas, a partir do início dos anos 90, estabeleceu-se em Hollywood. Fez diversos bons filmes, em geral falando do mesmo tema, a vida em família, as relações familiares – Meu Querido Intruso/Once Again, de 1991, em que reuniu novamente Richard Dreyfuss e Holly Hunter, que haviam feito juntos Além da Eternidade/Always, de Steven Spielberg; Gilbert Grape – Aprendiz de Sonhador/What’s Eating Gilbert Grape, de 1993, com Johnny Depp e um à época desconhecido Leonardo DiCaprio; Chocolate, de 2000, uma gostosa fábula em homenagem à liberdade de comportamento, com Juliette Binoche no auge da beleza; Chegadas e Partidas/The Shipping News, de 2001, um drama poderoso com Kevin Spacey em grande forma; e Um Lugar para Recomeçar/An Unfinished Life, de 2005, que fala de violência de marido contra mulher e, de novo, relações familiares, perdas de entes queridos, com um elenco de primeiríssima, Robert Redford, Morgan Freeman, Jennifer Lopez.
São, todos eles, bons, ótimos filmes – mas meu preferido, entre todos, é Regras da Vida/The Cider House Rules, de 1999, um filme sobre crianças sem pais e uma vibrante, forte, corajosa defesa do aborto, outro filme com elenco extraordinário, reunindo Tobey Maguire, Charlize Theron, Delroy Lindo, Paul Rudd e Michael Caine, em um dos melhores papéis de sua longa e veneranda carreira (ele levou o Oscar de coadjuvante).
Em Minha Vida de Cachorro – na minha opinião o segundo melhor filme desse diretor de diversos filmes bons –, Hallström consegue criar um maravilhoso clima que mistura bem tristeza e bom humor, pancadas da vida com momentos de alegria. Muita gente tenta essa mistura e se dá mal; Hallström fez a receita perfeita.
Ah, sim, para registrar. Já vi muito crítico falar mal de Hallström, chamá-lo de coisas como sentimental, sentimentalóide, piegas. E que viva o sentimentalismo e a pieguice.
“Uma impressão ao mesmo tempo inquietante e engraçada”
Vou dar uma olhadinha em outras opiniões. É sempre bom.
Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4: “Ao mesmo tempo cômico e comovente, é uma descrição tremendamente honesta da natureza muitas vezes confusa da infância. Glanzelius está excelente no papel principal.”
No AllMovie, Karl Williams diz que o tom bem humorado, quase nostálgico do filme se mistura surpreendentemente bem com a história e as situações francas, pesadas, deixando uma impressão ao mesmo tempo inquietante e engraçada, um tributo à habilidade com que o filme é dirigido por Lasse Hallström. Ele informa também que o filme fez tremendo sucesso nos cinemas de arte das grandes cidades americanas.
O guia de Jean Tulard diz que é um filme caloroso que explora com muita ternura e pertinência os segredos da alma de um garoto. Jamais cai no melodramático – ao contrário, é um filme cheio de humor.
É isso aí. Um filme para ver e rever.
Minha Vida de Cachorro/Mitt Liv Som Hund
De Lasse Hallström, Suécia, 1985
Com Anton Glanzelius (Ingemar), Anki Liden (a mãe), Manfred Serner (Erik), Melinda Kinnaman (Saga), Tomas von Bromssen (o tio), Ing-Marie Carlsson (Berit), Kicki Rundgren (tia Ulla)
Roteiro Lasse Hallström, Per Berglund, Brasse Brannstrom e Reidar Jonsson
Baseado no livro de Reidar Jonsson
Fotografia Rolf Lindström e Jörgen Persson
Música Björn Isfält
Produção Svensk Filmindustri e FilmTeknik
Cor, 101 min
R, ***1/2
Título em inglês: My Life as a Dog. Título na França: Ma Vie de Chien
O filme mais lindo que assisti em minha vida.
Minha cadela teve dois cães e eu botei o nome deles de ingemmar e sickan. E ainda tatuei em meu braço!
MARAVILHOSO!!
O preferido da Liv Tyler também… rsrsrrsr
UM dos filmes que marcaram a minha infância
Belissimo. Muito bem dosado e de muita sensibilidade. Para a galeria dos ótimo os filmes. Inesquecível.
A sua dissertação estava agradável até o momento em que você fez o comentário sobre o Lul4drão e aborto (porque aqueles que defendem aborto não foram abortados), que soou como positiva, e isso foi um balde de água fria . O Brasil estava na boca dos suecos neste período por causa da tentativa de implementação de politicas socialistas que fracassaram (graças a Deus), e a cultura brasileira não era de libertinagem da forma que é hoje em dia!