Anotação em 2010: Nesta comedinha de 1953, George Cukor, que ficou conhecido como o diretor dos anos dourados de Hollywood que entendia a alma feminina, conta a história de uma loura burra, e acaba metendo os pés pelas mãos.
A intenção – foi o que achei – era boa, era excelente: décadas antes da explosão mais intensa do culto às celebridades, da invasão da privacidade das personalidades públicas, da busca frenética pelos 15 minutos de fama a qualquer preço, Demônio de Mulher pretendia fazer uma crítica a tudo isso, e uma defesa da vida simples, das pessoas anônimas, comuns, gente como a gente.
Da maneira como afinal conduziu a história, o filme acaba prestando um desserviço às mulheres.
Perdi os cinco minutos iniciais do filme: quando Mary me alertou que o TCM estava passando um classicão preto-e-branco, os créditos iniciais já haviam acabado, a ação estava começando: no Central Park, em Nova York, um aspirante a documentarista, interpretado por um Jack Lemmon muito, mas muito, mas muito jovem, encantava-se com uma moça loura que discutia com um grupo de pessoas. A moça é interpretada por Judy Holliday, a atriz que se notabilizou como o protótipo da loura burra em Nascida Ontem/Born Yesterday.
Em Nascida Ontem, feito em 1950 pelo mesmo Cukor, Judy faz o papel da amante de um milionário grosseirão (Broderick Crawford) que vai a Washington fazer lobby para sua empresa; como a moça não sabe nada de coisa nenhuma, e não poderia ser apresentada a ninguém na capital federal sem dar vexame, o milionário contrata um jornalista desempregado (William Holden) para ensinar boas maneiras e um vernizinho de cultura a ela. O filme teve cinco indicações ao Oscar – filme, direção, roteiro, figurinos e atriz, e Judy levou a estatueta dourada, mais o Globo de Ouro.
Neste Demônio de Mulher, ela praticamente repete o papel: sua personagem, Gladys Glover, é tão loura e tão burra e tem coração tão grande quanto a Billie de Nascida Ontem. Só que, em vez de ser amante de alguém, é tão virginal quanto Doris Day viria a ser nas comedinhas românticas ao lado de Rock Hudson, no finalzinho dos anos 50 e começo dos 60.
Uma interiorana sem talento que quer ser famosa
Gladys Glover, nascida e criada em Binghamton, interiorzão do Estado de Nova York, vai para a cidade de Nova York, a capital do mundo, com a pequena fortuna de US$ 1 mil, poupada a duras penas ao longo da vida inteira, e uma determinação firme na sua cabecinha loura e burra: quer ser alguém, quer ter seu nome conhecido, reconhecido.
É o que Gladys-Judy Holliday conta, com sua vozinha meio de taquara rachada de atriz especializada em fazer papel de loura burra, ao jovem aspirante a documentarista que conhece no Central Park, Pete Sheppard – a estréia de Jack Lemmon no cinema, ladies and gentlemen!
Mas pera lá: então a moça quer ser alguém, quer a fama – mas… fazendo exatamente o quê?
Bem… Gladys Glover não tem propriamente assim um talento – não é atriz, não é cantora, não é instrumentista, não é atleta, sequer é linda (Judy Holliday, grande atriz, não era propriamente uma Vênus). Mas quer ser um nome reconhecido, quer ser famosa, uai! É loura, burra, tem coração grande e quer ser diferente do bilhão de pessoas anônimas que povoam o mundo.
A trama começa bem, o roteiro é de um mestre
A matéria-prima da trama é boa, é interessante – a busca louca pela fama, custe o que custar, décadas antes que essa loucura piorasse muito mais, décadas antes das Madonna, das Lady Gaga da vida, da loucura dos paparazzi que levaram Diana Spencer à morte estúpida.
A trama promete – como perdi os créditos iniciais, só fiquei sabendo depois de ver o filme que o roteiro é de Gerson Kanin, escritor inteligente, sofisticado, mestre do diálogo esperto, elegante, rápido, de boas sacadas. Kanin teve bela carreira como dramaturgo e diretor da Broadway, e foi para Hollywood em 1938, onde escreveu os roteiros de belos filmes, vários deles em parceria com a mulher com quem casou em 1942, Ruth Gordon – uma mulherzinha danada de safa e competente, que, além de roteirista talentosa, teve atuações marcantes como atriz em O Bebê de Rosemary, a obra-prima de Polanski, e em Ensina-me a Viver/Harold and Maude, de Hal Ashby.
Aliás, as carreiras do diretor George Cukor, dos roteiristas Gerson Kanin e Ruth Gordon e da atriz Judy Holliday têm diversos pontos em comum. Cukor foi o diretor de A Costela de Adão/Adam’s Rib, de 1949, uma comédia absolutamente deliciosa, inteligente, genial, com roteiro de Kanin e Ruth Gordon, em que o casal interpretado por Spencer Tracy e Katharine Hepburn se enfrenta no tribunal – ele na acusação, ela na defesa de uma mulher que está sendo julgada por ter tentado matar o marido infiel, a mulher sendo interpretada, sim, por ela mesma, Judy Holliday. Spencer Tracy e Katharine Hepburn foram um dos casais de maior química da história do cinema, uma espécie assim de Lennon e McCartney, Tom e Vinicius, Joan Baez e Bob Dylan, Pelé e Pepe – e no entanto há quem diga que Judy Holliday ofuscou o casal no papel da loura burra traída e ruim de tiro, tanto que erra o alvo, pega o marido traidor só de raspão.
O filme que deu a Judy Holliday o Oscar, Nascida Ontem, dirigido pelo mesmo Cukor, baseava-se em peça de sucesso na Broadway de autoria do mesmo Gerson Kanin.
Como se fosse possível comer alguém numa comedinha dos anos 50
E então toda aquela turma se reuniu para fazer este Demônio de Mulher; até o figurinista era o mesmo, Jean Louis, indicado para o Oscar por Nascida Ontem, indicado ao Oscar de novo por este filme aqui.
E partia-se de uma trama boa, interessante – volto ao ponto. A busca pelo sucesso, pela fama, ter o nome conhecido, reconhecido, décadas antes do pop Andy Wharol cunhar sua frase pop sobre todo mundo buscar seus 15 minutos de sucesso.
De um lado, a loura burra virginal de coração grande e sua firme determinação de ter um nome. De outro, o pobre, esforçado, batalhador candidato a documentarista, muito mais esperto que a loura burra, consciente de que a felicidade não está na fama, e sim no anonimato – Greta I Wanna Be Alone Garbo que o diga. E, na outra ponta do triângulo, o sujeito que é a antítese do personagem de Jack Lemmon, Evan Adams III (o papel perfeito para Peter Lawford), riquíssimo, herdeiro e dono de fábrica de sabonetes, safado, mau caráter, querendo – imagine só que mau-caratismo! – comer a loura burra.
Como se fosse possível comer a loura, burra ou não, sem casar, numa comedinha dos anos 50 anos. A audácia do bofe!
E dá vontade de dar um exemplo do diálogo inteligente criado por Gerson Kanin. Adams The Third liga para o prédio em que Gladys Glover aluga um quarto; a concièrge, a zeladora, diz para Gladys que ligou um tal Adams, dizendo que era urgente, importante. A loura burra pergunta: – “Adams The Third?” A zeladora, de bate-pronto: – “Bem, ele só ligou duas vezes.”
Uma atriz que morreu antes da hora
Judy Holliday morreu muito jovem, aos 43 anos, de câncer, em 1965. É uma personalidade fascinante, e então transcrevo o que diz dela a Katz’s Film Encyclopedia: “Começou sua associação com o teatro como operadora de luz do Mercury Theater de Orson Welles e fez sua estréia com The Revuers, um grupo de cabaré que formou com Betty Comden e Adolph Green. Isso levou a três papéis menores em filmes de Hollywood em 1944 e ao eventual estrelato na Broadwaqy como Billie Dawn, a loura burra em Born Yesterday (1946). Ela repetiu o papel com sucesso hilariante na versão cinematográfica de 1950, ganhando um Oscar, um ano depois de roubar o show de Katharine Hepburn e Spencer Tracy no papel da cérebro de passarinho acusada de tentativa de assassinato no filme Adam’s Rib. Uma comediante de grande inteligência que tratava sua arte com precisão intuitiva e talento exuberante, ela continuou a mostrar seu estilo cômico único e inflexão de voz em diversas outras peças e filmes antes de ser derrotada pelo câncer aos 43 anos.”
John Lennon foi morto aos 40 anos, Eva Cassidy aos 33, Kate Wolf aos 44, meu irmão Arnaldo aos 41, Regina Lemos aos 47, Suely Rossanez aos 47. Este é um grande mistério, dos maiores da vida – por que eles morrem tão jovens, enquanto Sarneys, Malufs…
Outro dia, no Twitter, uma moça perguntou de quem seria a frase “Quero arder, mas não durar”. Pensava ela que era do filósofo Schiller. Eu só me lembrava da frase de Neil Young – “better to burn than to fade away”.
Calma, cara. Isto aqui é um site sobre filmes.
O cinema cada vez menos trata de pessoas comuns
A questão da busca da fama, do querer ser diferente do normal, de se querer deixar gravado o nome, é um tema importantíssimo. Bons filmes se dedicaram a isso. Quando eu era ainda garoto, e estava começando a estabelecer minha escala de valores, me apaixonei por Philippe de Broca, porque este era o tema de seus maravilhosos filmes. De Broca defendia exatamente o mesmo que o personagem de Jack Lemmon defende neste filme aqui: bom é ser como todo mundo – simples, anônimo, cinzento, desde que bom caráter, desde que com uma escala de valores boa, correta.
Aos 60 anos, sobrevivente a tanta gente melhor que eu, mantenho esta mesma crença.
Desde sempre, o cinema endeusou os que não são como todo mundo. Em nove de cada dez filmes, os personagens matam alguém, o que é absolutamente incoerente com o mundo que o cinema deveria retratar – só, sei lá, bem menos de cinco por cento das pessoas são criminosas.
Gosto demais dos filmes que mostram seres humanos normais, parecidos com 95% das pessoas que existem. Me cansa demais a mania do cinemão comercial de cada vez dedicar mais filmes a super-heróis, ou a criminosos – e menos a pessoas, seres humanos, gente como a gente.
A opção por virar serva do macho
Voltando especificamente a Demônio de Mulher, é o seguinte: na minha opinião, o belo roteirista George Kanin e o belo diretor George Cukor acabaram presos numa armadilha. E, como disse lá em cima, da maneira como afinal conduziram a história, o filme acaba prestando um desserviço às mulheres.
Entre a louca, insana busca da fama a todo preço e o casamento, a absoluta sujeição aos ditames do maridão, existe um amplo espectro, conforme as mulheres demonstraram, e vêm demonstrando, ao longo das décadas. Quando a loura burra opta por virar casadinha, serva do senhor macho, dá um péssimo exemplo. Faz uma escolha burra.
No final, ao fim e ao cabo, George Cukor, o cineasta da alma femina, e Garson Kanin, o dramaturgo e roteirista inteligente, elegante, acabam por transformar a loura burra numa coisa pior: um ser subserviente ao macho.
Demônio de Mulher/It Should Happen to You
De George Cukor, EUA, 1954
Com Judy Holliday (Gladys Glover), Jack Lemmon (Pete), Peter Lawford (Evan Adams III), Michael O’Shea (Brod), Connie Gilchrist (Mrs. Riker), Vaughn Taylor (Entrikin), John Saxon (rapaz no parque)
Roteiro Garson Kanin
Fotografia Charles Lang
Música Frederick Hollander
Montagem Charles Nelson
Figurinos Jean Louis
Produção Columbia Pictures
P&B, 87 min
**1/2
Muito bom o post.
Tem uma cópia de DEMÔNIO DE MULHER para trocar?
Adorei o post
eu estou a fazer um trabalho em Área de Projecto precisamente sobre o cinema nos anos 50 e este post vai me ajudar muito.
Para além de ter ficado com uma ideia mais vasta dos temas cinematográficos utilizados na altura, arecadei mais alguns nomes para a minha lista de artistas