2.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2010: O adjetivo mais adequado para este filme, uma baita superprodução suntuosa com dinheiro de quatro países europeus, é afetado.
“Afetado, adj. Que tem afetação; artificial. Antônimo para natural; singelo.” É isso: é um filme todo afetado. Os personagens têm o narizinho empinado. O filme tem o narizinho empinado. É a mais perfeita tradução do estereótipo criado e disseminado em várias partes do mundo sobre os franceses: um povinho fresco, metido a besta. Afetado.
Arsène Lupin, um ladrão elegante, foi criado no início do século XX pelo escritor francês Maurice Leblanc (1864-1941), que escreveu diversas novelas com o personagem. Uma delas (que aliás eu li quando era garoto), publicada em 1907, chamava-se Arsène Lupin contra Herlock Sholmes – um pequeno capítulo na milenar e eterna briguinha França x Inglaterra. Nela, o ladrão fazia gato e sapato do grande detetive londrino Herlock Sholmes e seu eterno acompanhante Wilson; segundo a Wikipedia, Arthur Conan Doyle ficou bravíssimo com a gozação que o colega francês fez de seus personagens Sherlock Holmes e Watson.
Numa dessas peças que o destino prega nas pessoas, Leblanc iria sofrer do mesmo mal que também atormentou Conan Doyle. O grande escritor escocês, como se sabe, ficou profundamente desgostoso com seu próprio personagem, e, para se ver livre dele, matou-o. A comoção que a morte de Sherlock Holmes causou, no entanto, foi tão grande, que Doyle teve que ressuscitar o detetive. Pois, segundo a Wikipedia, o mesmo aconteceu com Leblanc e Lupin; o primeiro matou o segundo, na novela 813, mas teve que ressuscitá-lo em diversos outros livros – Le Bouchon de cristal, Les Huit Coups de l’horloge, La Comtesse de Cagliostro.
O filme reúne características de uma dezena de gêneros
Nos créditos iniciais do filme dirigido por Jean-Paul Salomé em 2004, está dito que o roteiro se baseia nesse último livro citado, A Condessa de Cagliostro. Não conheço o livro, mas duvido muito que o filme se baseie apenas nele. A sensação é de que os autores do roteiro – o próprio diretor Salomé e Laurent Vachaud, mais Nicolas Saada, creditado como colaborador – quiseram reunir na sua história diversas das tramas das novelas de Maurice Leblanc, com a ajuda de um bom ácido, ou outro alucinógeno poderoso. A trama que resultou de seu trabalho é de uma complexidade enlouquecedora.
O filme é, ao mesmo tempo, um capa-e-espada, um filme de lutas marciais, um romance folhetinesco, uma ficção-fantasia com um pé no sobrenatural, uma comédia de costumes, um filme de época, com mais uma boa pitadinha de O Código Da Vinci, com símbolos e signos que precisam ser decifrados para se chegar ao tesouro mais precioso do mundo, os que a imperatriz Maria Antonieta teria escondido em algum lugar do planeta antes que a dinastia de Louis XVI fosse varrida do mapa pela Revolução Francesa.
Na sua ambição de juntar a maior quantidade de histórias possíveis numa trama só, o filme mostra um complô de monarquistas que queriam derrubar a república francesa no início do século XX e ainda roça o início do Primeira Guerra Mundial, com um atentado contra o arquiduque Franz Ferdinand da Áustria.
Eta trem doido, siô.
A condessa de Cagliostro – interpretada pela maravilhosa Kristin Scott Thomas – é uma bruxa com poderes sobrenaturais que, como um Fausto, um Dorian Gray, atravessa muitas, muitas décadas sem ser afetada pela ação do tempo, à base de uma poção mágica que cura milagrosamente suas feridas e as de seu fiel escudeiro, Léonard (Patrick Toomey).
Aliás, a capacidade de sobrevivência dos personagens do filme, sua quase imortalidade, é uma coisa impressionante. Tem lá um tal de Beaumagnan (Pascal Greggory) que despenca do alto da torre de um farol em chamas para ressurgir vivinho da silva, como se nada houvera, algumas seqüências adiante. O próprio Arsène Lupin (Romain Duris, tão careteiro quanto um Jim Carrey nos seus piores momentos) sobrevive intacto mesmo estando no epicentro de uma explosão que devasta boa parte da Place de l’Opéra.
Europeu, mas com tanta explosão quanto um hollywoodiano
Aliás, o que tem de explosão no filme é uma grandeza. É o que eu volta e meia digo: não há diferença alguma entre as superproduções feitas para ser blockbuster, arrasa-quarteirão, tremendo sucesso de bilheteria – sejam européias, sejam hollywoodianas, são a mesma coisa, farinha do mesmo saco. Este Arsène Lupin de 2004 padece dessa doença infanto-juvenil do cinemãozão comercial atual, a síndrome do exagero. Um dia ainda crio essa tag, a Síndrome do Exagero.
Mas então tá: Arsène Lupin é uma gigantesca porcaria?
Como diz a anedota: veja bem…
É, sim, uma gigantesca porcaria. Mas uma gigantesca porcaria cheia de capricho. Bem caprichada.
É um filme de visual suntuoso. Há tomadas belíssimas. O tal Salomé, de quem jamais tinha ouvido falar, é homem que conhece o artesanato. Há alguns travellings de arrepiar, de tão belos, bem feitos; não sei como o cara faz aquilo – não há grua no mundo capaz de fazer aqueles travellings aéreos. Talvez tenham sido feitos de helicóptero, talvez sejam imagens gerados por computação gráfica, sei lá, nunca tive grande interesse em tentar entender esses truques, essas magias – mas são acachapantemente belos.
A reconstituição de época, a direção de arte, os figurinos – é de um luxo absurdo. Vejo no iMDB que o autor dos figurinos, Pierre-Jean Laroque, criou cerca de 500 roupas diferentes, 20 para Romain Duris, 18 para Kristin Scott Thomas. David O. Selznick, Cecil B. DeMille seguramente babaram com Arsène Lupin, se viram o filme no céu (ou no inferno, sei lá onde eles estão). O filme tem quase tanto figurante quanto E o Vento Levou…, de Selznick, e Os Dez Mandamentos, de DeMille. Toda a seqüência na Place de l’Opéra, por exemplo, é de um luxo, um cuidado com todos os detalhes, de deixar qualquer pessoa apaixonada por cinema babando.
Além desse visual de fato suntuoso, impressionante, esta gigantesca porcaria tem outras duas grandes qualidades. Uma delas é a trilha sonora, assinada por Debbie Wiseman, uma inglesa nascida em 1963. A trilha que ela escreveu é tão suntuosa quanto o visual do filme. É grandiloqüente, forte, é uma coisa sinfônica – a moldura perfeita para um filme tão loucamente pretensioso. São composições soberbas – de vez quando ouço no iTunes do computador e do iPod, com prazer, já faz algum tempo.
A outra grande qualidade é Kristin Scott Thomas. Essa atriz fantástica me surpreende cada vez mais. A cada filme que vejo dela mais fico embasbacado. Inglesa da Cornualha (nasceu em Redruth, Cornwall, em 1960), foi casada com um francês, morou na França; já trabalhou em filmes ingleses, americanos, italianos, franceses. Fala francês maravilhosamente bem. É ótima no drama (O Encantador de Cavalos, O Acompanhante), calma, serena, nada escrachada na comédia (Quatro Casamentos e um Funeral, De Bico Calado), tão à vontade em filmes ingleses e americanos quanto em franceses (Contratado para Amar, Não Conte a Ninguém). E é capaz de se dar maravilhosamente bem nesta aventura capa-e-espada-ficção-fantasia. Sem ter nada da beleza padrão, ou da beleza perfeita, ou da beleza Barbie, encara com a maior competência o papel da bruxa que seduz todos os homens que passam pela frente dela ao longo das décadas e décadas e décadas. O diretor Salomé e o fotógrafo Pascal Ridao capricharam em especial na primeira seqüência em que ela aparece, prisioneira do bando de monarquistas – são tomadas em que ela de fato está uma mulher de fechar o comércio, como se dizia antigamente.
É isso aí. Uma gigantesca porcaria – bela, suntuosa, exagerada e afetada.
Arsène Lupin
De Jean-Paul Salomé, França-Itália-Espanha-Inglaterra, 2004
Com Romain Duris, Kristin Scott Thomas, Pascal Greggory, Eva Green, Robin Renucci, Patrick Toomey, Mathieu Carrière, Philippe Magnan, Marie Bunel
Roteiro Jean-Paul Salomé, Laurent Vachaud, com colaboração de Nicolas Saada
Baseado na obra de Maurice Leblanc
Fotografia Pascal Ridao
Música Debbie Wiseman
Figurinos Jean-Pierre Larroque
Produção TF1 Films, Hugo Films, M6 Films, Poisson Rouge Pictures, RAI Cinema, SND, Stephane Marsil, Vertigo Films
Cor, 125 min
**
Eu acho que o maior erro deste filme foi a escolha do ator Romain Duris para o papel do protagonista, . Eu assisti “As Aventuras de Molière” e ele tbm não convence no papel, apesar de estar infinitamente melhor do que como Arsène Lupin.
Mas que o filme é visualmente um desbunde (ainda se fala isso?!) isso não há como negar!