2.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2010: Arroz Amargo, sabe-se, é um filme de grande importância histórica. Feito em 1948 na Itália arrasada pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945), é tido como um dos marcos do neo-realismo, um dos movimentos mais importantes do cinema, que influenciou profundamente diversos outros movimentos cinematográficos no mundo inteiro, da nouvelle vague francesa ao cinema novo brasileiro e ao cinema independente americano, chegando ao iraniano do breve período de alguma liberdade, pós-Khomeini e pré-Ahmadinejadi.
É também o filme que lançou ao mundo uma atriz que viria a ser uma das maiores estrelas do cinema de todos os tempos, Silvana Mangano, uma mulher de magnífica beleza, das mais magníficas que as telas já conheceram, e que teria interpretações admiráveis em filmes importantíssimos de Pasolini e Visconti.
É preciso, portanto, antes de mais nada, reconhecer a importância de Arroz Amargo, e respeitá-lo.
Isso posto, tenho a dizer que nunca tinha me chocado tanto com a ruindade de um grande clássico quanto com Arroz Amargo – e olha que faz quase meio século que vejo grandes clássicos. Tá bom, posso estar exagerando; tenho uma certa tendência às afirmações absolutas, quando se trata de gosto. Poderia relativizar: pouquíssimas vezes, ao longo de meio século, fiquei tão chocado com a ruindade de um grande clássico quanto ao ver Arroz Amargo.
Um filme ambicioso, com belos planos gerais de multidões
É um filme extremamente ambicioso – em boa parte de suas seqüências, vemos, em planos gerais de grande beleza visual, vastas multidões. Dezenas, centenas de pessoas. Apenas três anos após o fim da guerra, a produção – a cargo de Dino de Laurentiis, um maiores produtores de grandes espetáculos cinematográficos da Europa no século, talvez o maior de todos – bancou o pagamento de centenas e centenas de extras. Dino de Laurentiis é assim uma espécie de Cecil B. de Mille europeu – e há tomadas de Arroz Amargo que lembram a grandiosidade de um Os Dez Mandamentos.
O que se mostra são as multidões de mulheres que, a cada mês de maio, final da primavera, véspera do verão, acorriam para uma região do Norte da Itália para a colheita de arroz. Chamadas “mondines”, labutavam durante semanas naquele trabalho duro, conforme mostram as belas imagens do diretor Giuseppe De Santis e um locutor de rádio realça, enfatiza, pleonasma bem no início da narrativa: tinham que se meter nos campos encharcados, com água até os joelhos, o sol forte batendo sobre elas, curvadas em direção ao solo, as costas encurvadas. Depois de horas e horas nesse trabalho desumano, recolhiam-se a grandes galpões, para descansar os corpos exaustos em cima de colchões de palha feitos por elas mesmas.
Em troca desse trabalho quase escravo, receberiam, ao final da colheita, alguns quilos do arroz que haviam colhido e uma paga magra, aviltante.
A primeira intenção de De Santis é nítida, clara, límpida: um grito de denúncia contra aquele tipo de trabalho, contra a exploração daquelas mulheres. Um clamor contra esse aspecto gritante, chocante, absurdo, do regime capitalista italiano.
E isso o filme faz muito bem.
As tomadas gerais das centenas de mulheres trabalhando nos arrozais são, sem dúvida alguma, de uma beleza espetacular, e a força da denúncia daquela situação desumana é violentíssima, poderosa.
São impressionantemente belas e poderosas até hoje, 62 anos depois que o filme foi feito. Serão para sempre.
Dá para compreender perfeitamente o impacto que essas imagens provocaram na época, como elas deixaram embasbacados todos os críticos de cinema do mundo.
Com a palavra, os mestres Sadoul e Tulard. Mas eles…
Ao ver o filme hoje, no entanto, me pareceu claro que essas imagens maravilhosas são sua única qualidade.
O roteiro é um emaranhado de bobagens, de situações ridículas, mal costuradas, mal ajambradas. Entre os coadjuvantes, certamente havia muitos atores não profissionais – nada contra; mas os atores principais, o grande Vittorio Gassman, o importante Raf Vallone, a revelação Silvana Mangano, estão péssimos, assim como todos os coadjuvantes principais. São atuações caricatas, grotescas, de dar vergonha no espectador.
Bem. É preciso fazer uma sinopse; para não contaminar uma rápida descrição da história com a minha visão extremamente crítica do filme, recorro a dois respeitabilíssimos mestres franceses da história do cinema.
Georges Sadoul: “Num acampamento de ‘mondines’ penetram um ladrão (Vittorio Gassman) e sua cúmplice (Doris Dowling), cujo butim é roubado por uma das operárias (Silvana Mangano). Após uma luta com um sargento (Raf Vallone), ela…”
E aqui censuro o grande Sadoul, corto-lhe a palavra, já que ele conta o fim da história.
Jean Tulard: “Um ladrão, Walter, e sua cúmplice Francesca encontram refúgio em um acampamento de mondines (colhedoras de arroz) empregadas nos arrozais do Pó. Entre elas está a bela Silvana, que denuncia Francesca ao sargento Marco. Ela se transforma na amante de Walter. Marco se lança ao encalço deles. Marco e Walter lutam…”
E aqui censuro o grande Tulard, corto-lhe a palavra, já que conta o fim da história.
Um melê disforme, uma salada indigesta de elementos conflitantes
O filme não é ambicioso apenas porque é cheio de planos gerais que mostram multidões. Isso, repito, ele faz bem demais. É ambicioso sobretudo porque, com aquele pano de fundo de denúncia social, resolve embaralhar um drama romântico, um quadrado amoroso, com uma trama policial. E ainda por cima não consegue evitar, tendo diante das câmaras aquela Silvana Mangano toda, absurdamente deslumbrante aos 18 aninhos de idade, um tom de erotismo que acaba permeando toda a narrativa.
Denúncia social, drama romântico, trama policial e apelo erótico – o resultado foi um melê disforme, uma salada de elementos conflitantes profundamente indigesta.
Muita ambição, querer fazer tanta coisa ao mesmo tempo. Fico pensando: algumas das mais impressionantes obras do neo-realismo foram e continuam sendo impressionantes exatamente por sua simplicidade, por sua secura, por ir direto ao ponto. Ladrão de Bicicletas, de Vittorio De Sica, por exemplo: o pintor precisa da sua bicicleta para poder trabalhar, é seu instrumento de trabalho, é a forma de ganhar seu pão; roubam-lhe a bicicleta, e ele está perdido. Simples, seco, direto ao ponto. O Teto, também de De Sica: a família precisa construir seu barraco e colocar nele um teto; se o barraco for concluído, tiver um teto, a polícia não poderá botá-lo abaixo; mas, se a polícia chegar antes que o teto seja colocado, tem o direito de destruir o barraco. Simples, seco, direto ao ponto.
De Santis foi ambicioso demais, quis misturar diversos elementos, coisa demais. Produziu uma trama em que todo mundo – personagens e espectador – ficam mais perdidos que cego em tiroteio.
Personagens descozidos, descosturados, mal engendrados
Poucas vezes vi – e aí não estou falando apenas dos grandes clássicos; estou incluindo todo tipo de filme ruim – personagens tão descozidos, tão descosturados, tão pobremente engendrados. Walter, o ladrão feito por Gassman, Francesca, a pobre empregada e camareira de hotel seduzida por ele, interpretada por Doris Dowling, o sargento do Exército Marco, que detesta o Exército e a polícia, feito por Raf Vallone (na foto), e sobretudo Silvana, o papel que transformou La Mangano em estrela, são personagens absolutamente frágeis, inconsistentes, mal construídos, mal delineados – assim como a maior parte das situações da trama.
Por que Francesca, achando-se possuidora de um colar no valor de milhões, optaria por passar aquelas semanas todas trabalhando como quase escrava? Por que Silvana, depois de ter roubado o colar de Francesca, não foge dali com seu butim? Por que Silvana primeiro tenta ajudar Francesca, para em seguida tornar-se sua inimiga mortal? Por que Silvana apaixona-se perdidamente por Walter depois de levar dele uma surra e uma curra?
Horas e horas de trabalho no barro – e à noite estão lindas
À fragilidade, à inverossimilhança das situações e dos personagens, somam-se erros grotescos de produção. Como é possível que aquelas mulheres pobres, quase miseráveis, tenham tantas roupas diferentes em suas pequeninas valises? Como é possível que, após um dia inteiro de trabalho desumano no meio do barro, em lugar sem chuveiros, aquelas mulheres apareçam à noite, no dormitório, limpinhas, com os cabelos lindíssimos, as roupas imaculadas?
Tão falsos quanto a cara e a roupa limpa e os cabelos belíssimos das mondines me pareceram as oscilações das multidões – num momento estão todas em guerra contra as sem contrato, no momento seguinte estão todas de bem, felizes, trabalhando juntas.
Na sua paixão incontida pelas massas sofredoras, De Santis põe para cantar em coro aquelas centenas de mulheres que estão trabalhando com os corpos atolados na água do arrozal, o sol quente queimando as costas vergadas e doloridas. Ao mesmo tempo em que quer denunciar o regime quase escravo de trabalho, ele quer também louvar o espírito inquebrantável das mesmas mulheres – e o resultado desse choque, as mulheres sofrendo como mouras e cantando alegres, me pareceu apenas patético, ingênuo, fora de qualquer propósito.
É muita beleza demais, a de Silvana – e aí o filme perde a cabeça
Fico pensando aqui que, em parte, Silvana Mangano tem parte da culpa – involuntariamente, é claro, mas tem.
Silvana, repito, estava com 18 anos em 1948, quando o filme foi feito. Nascera em Roma, em 1930. Tinha estudado dança e trabalhado como modelo. Aos 16 anos, em 1946, o primeiro ano após a Segunda Guerra, havia sido eleita Miss Roma.
O diretor De Santis e seus diversos co-roteiristas tinham para fazer seu filme aquela Silvana Mangano toda. Como não aproveitar? Como não exibir sua beleza?
E então temos uma Silvana Mangano dançando logo no início da ação, quando mulheres de diversas regiões da Itália estão chegando para trabalhar na colheita do arroz. Walter, o ladrão, vai dançar com ela no meio do povo. A situação não tem muito sentido, é falsa que nem nota de 3 – mas, cacilda, como não botar Silvana Mangano para dançar logo no começo do filme?
As mondines trabalham com água até os joelhos. Como não botar Silvana, a personagem de Silvana Mangano, mostrando as coxas maravilhosas, perfeitas, sensacionais, abissais? Como resistir à tentação de colocar-lhe umas meias pretas, para ao mesmo tempo exibir o fetiche e realçar as coxas? Como não mostrar, no acampamento, na cama, as coxas de Silvana Mangano? Como não fazer demorados closes do rosto com aquela força da natureza de adolescente lindérrima, uma explosão de magnetismo?
Dá para entender que o filme aproveite tanto a beleza da mulher estonteante. Mas fica fora de propósito, no meio de um panfleto de denúncia social, que ao mesmo tempo é também drama romântico e trama policial.
Fica um melê danado de esquisito.
Como atriz, Silvana ainda era uma jovem modelo e miss
Já disse, mas repito: não me pareceu bem, a Silvana atriz. A mulher é estonteante, a atriz ainda era, em Arroz Amargo, uma jovem miss e modelo tateando na interpretação. Doris Dowling (à esquerda, na foto, ao lado de Silvana), que faz sua rival Francesca, é a única de todos os atores que me pareceu ter bons momentos na interpretação. Doris, americana de Detroit, nascida sete anos antes de Silvana, cambitinhos magros que somados não fazem uma das coxas monumentais da outra, não deixaria grande marca na história do cinema. Trabalhou bastante – o iMDB registra 59 filmes e/ou episódios de séries de TV –, mas jamais teve um centésimo da glória de Silvana.
Incensada pela imprensa americana como a Rita Hayworth italiana, alçada a símbolo sexual em todo o mundo, Silvana recusaria insistentes convites de produtores americanos para filmar em Hollywood, ao contrário do que fizeram Sophia Loren, Anna Magnani, Gina Lollobrigida, Claudia Cardinale. Preferiu ficar na Itália e casar-se com o próprio Dino De Laurentiis, o produtor deste seu primeiro grande sucesso. Com o tempo, se transformaria em uma grande atriz. Foi a Jocasta do Édipo Rei de Pier Paolo Pasolini, em 1967; foi a mãe da família muito rica revirada ao avesso em Teorema, também de Pasolini, de 1968; foi a aristocrática mãe do garotinho Tadzio em Morte em Veneza, do mestre Visconti, de 1971. Começou a partir da beleza descomunal, desenvolveu talento imenso. Grande Silvana.
Algumas das muitas loas feitas ao filme
Peço desculpas a quem – como 11 entre 10 críticos de cinema desde o final dos anos 40 até hoje – considera Arroz Amargo um dos melhores filmes de todos os tempos. Outro dia recebi um comentário indignadíssimo de um cinéfilo que adora Faces, de John Cassavetes: “Quando se argumenta com base no gosto pessoal APENAS e o coloca como ABSOLUTO, perde-se toda e qualquer credibilidade ante uma análise mais séria, beirando o infantil”, disse ele.
Não sou dono da verdade, de forma alguma. Mas argumento, sim, com base no meu gosto pessoal. Não me importo se beiro o infantil. O que exponho aqui é com base no meu gosto pessoal. Procuro sempre registrar as informações objetivas e as opiniões diferentes das minhas – e apresento também a minha opinião. Como não sou crítico de cinema, e já passei muito da idade em que as pessoas se sentem obrigadas a incensar aquilo que a maioria incensa, não tenho medo de falar mal de ícones.
E então lá vão loas a Arroz Amargo:
Georges Sadoul: “Através de uma intriga deliberadamente ‘de suspense’, o jovem cineasta dedica-se a mostrar a vida das ‘mondines’, operárias agrícolas sazonais, trabalhando duramente nos arrozais piemonteses, e a destacar dois tipos: o sargento logo desmobilizado, que odeia a guerra e os policiais, generoso e cavalheiresco; e sobretudo uma ‘mondine’, com a cabeça virada por correios sentimentais, histórias em quadrinhos e maus filmes, que vive enterrada na lama até as coxas mas tem a mente perdida numa fábrica de sonhos. Para De Santis, ela era ‘o tipo de jovem inconsciente, incapaz de compreender a condição em que vive e de lutar ao lado dos seus, por ter sido desviada para uma vida fictícia que a condena ao aniquilamento’. Talvez, criticando essa ‘americanização de gosto’, ele tenha cedido um pouco demais a ela, num roteiro bastante engenhoso. O sucesso de seu filme nos Estados Unidos superou o de Paisà e Sciustà, além de revelar duas estrelas italianas de primeira grandeza: Silvana Mangano e Raf Vallone, até então um jovem jornalista.” (Na foto abaixo, o jovem Vittorio Gassman.)
A visão americana atual, do AllMovie, em texto de Hal Erickson: “Bitter Rice foi um dos filmes marcantes do movimento neo-realista italiano do pós-guerra. Silvana Mangano interpretada uma das centenas de mulheres trabalhando nos campos de arroz do Vale do Pó. (…) As cenas no arrozal são realistas o suficiente para passar como documentário, embora tendam a ser sub-apreciadas na versão em inglês pela dublagem amadorística. Os críticos foram unânimes em seus elogios a Bitter Rice; suas palavras, no entanto, foram ignoradas pelos fãs machos que foram ver o filme apenas pela força da foto hoje famosa de Silvana Mangano no arrozal usando calção e meias negras.”
Tá vendo? O cara quis denunciar uma cruel mazela do capitalismo mas o ser humano, ó horror, prestou atenção foi nos coxões da Silvana. O ser humano é foda.
Jean Tulard não faz apenas loas: “Muitos temas em um: uma reportagem sobre as mondine e suas condições de trabalho; uma intriga policial e melodramática; um filme erótico que tornou célebres no mundo inteiro as coxas de Silvana Mangano. Por causa delas, ainda dá para ver o filme”.
Epa: não estou sozinho!
Arroz Amargo/Riso Amaro
De Giuseppe De Santis, Itália, 1948
Com Silvana Mangano (Silvana), Doris Dowling (Francesca), Vittorio Gassman (Walter), Raf Vallone (Marco), Checco Rissone (Aristide), Nico Pepe (Beppe), Andriana Sivieri (Celeste), Lia Corelli (Amelia), Maria Grazia Francia (Gabriella), Ann Maestri (Irene), Mariemma Bardi (Gianna)
Argumento Carlo Lizzani, Gianni Puccini
Roteiro Corrado Alvaro, Giuseppe De Santis, Carlo Lizzani, Carlo Musso, Ivo Perilli. Também trabalharam no roteiro, segundo o iMDB, embora não sejam creditados, Mario Monicelli e Franco Monicelli
Fotografia Otello Martelli
Música Goffredo Petrassi
Produção Dino de Laurentiis, Lux Film
P&B, 107 min
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