Anotação em 2010: Ann Vickers é um filme fascinante, avançadíssimo, muito, muito à frente de seu tempo – foi feito em 1933, por John Cromwell, com os grandes astros Irene Dunne e Walter Huston.
É a adaptação do romance homônimo de Sinclair Lewis, publicado exatamente naquele ano, 1933. Lewis (1885-1951), que lançou sua primeira obra em 1912, já era então um autor famosíssimo. Seus livros anteriores haviam sido grandes best-sellers – Main Street, Babbit, Elmer Gantry, Dodsworth – e em 1930 ele havia ganho o Nobel de literatura. Foi o primeiro escritor americano a receber a láurea.
Sinclair Lewis é tido como um profundo crítico de muitas das mazelas americanas (e na história de Ann Vickers há virulentos ataques a elas), mas não por defender algo mais próximo do socialismo, conforme fizeram muitos dos intelectuais seus contemporâneos, como Theodore Dreiser e John Steinbeck, e sim por ser um veemente defensor dos mais tradicionais e arraigados valores americanos. É um defensor do trabalho duro, honesto, e tem desprezo profundo pelo provincianismo, os valores pequeninos, mesquinhos, as pessoas sem profundidade espiritual ou emocional.
Contra tudo o que ditava o Código Hays, o conjunto de regras de auto-censura aceito pelos grandes estúdios de Hollywood, Ann Vickers, a protagonista, trepa antes de casar. Percebe depois que o caso foi uma besteira – o homem por quem se acreditava apaixonada, Resnick (Bruce Cabot), um capitão do Exército prestes a embarcar para a Europa para lutar na Primeira Guerra (a ação começa em 1917 e se estende por vários anos daí em diante), era um crápula. Prometia mundos e fundos e o casamento, mas na verdade, como Ann aprende à força, só queria mesmo era comer a moça.
Pois Ann Vickers decide fazer um aborto – num filme de 1933, cuja ação está ainda em 1917!
É uma trabalhadora incansável. Quando a ação começa – numa festa para soldados prestes a embarcar para o front na Europa, onde conhece o tal capitão safado –, é assistente social. Estuda, estuda, adquire um PhD em sociologia, vira doutora. Quer porque quer trabalhar numa prisão; a experiência revela-se um pesadelo horroroso, os dirigentes do presídio são carniceiros, sádicos, cruéis. Ann se vinga deles revelando as barbaridades cometidas ali dentro contra as presas num livro em que relata suas experiências. O livro torna-se um best-seller, ela é convidada para dirigir um outro presídio para mulheres, e o faz com dignidade, humanismo, boa vontade. A experiência se transforma num grande sucesso.
E então Ann fica conhecendo Barney Dolphin (o papel do grande Walter Huston), um juiz da Suprema Corte estadual, sujeito de princípios morais fortes e mentalidade progressista como a própria Anne. Há vários anos Dolphin vive separado de sua mulher, Mona (Gertrude Michael), que passa boa parte de seu tempo na Europa, gastantado com um amante parte do dinheiro do juiz. Ele vem pedindo o divórcio faz tempo, mas ela não quer perder a boquinha, não concede.
Pois Ann Vickers torna-se amante de um homem casado, e, solteira, tem um filho dele – num filme de 1933!
E ainda virão novos e pesados dramas – e temas pesados como erro judiciário contra um homem de bem.
Além dos temas à frente do tempo, o filme ainda tem ousadias formais
Eta filme à frente de seu tempo, siô!
E o diretor John Cromwell (1888-1979) ainda se permite pequenas ousadias formais, dentro de uma narrativa de estrutura mais clássica possível. Na festa em que Ann enfim fica conhecendo pessoalmente o juiz Dolphin de que tanto ouvira falar, há um travelling no meio da sala, a câmara se esgueirando entre os convivas, que faria a delícia de qualquer John Cassavetes, algumas décadas depois.
Há uma tomada em que Ann aparece de pé, na prisão dirigida por sádicos, com a roupa social com que havia acabado de chegar; corta, e monta com outra tomada quase idêntica, Ann já com a roupa de funcionária do presídio, toda negra.
O filme é tão saidinho, tão ousado no enfrentamento das regras então muito rígidas da autocensura hollywoodiana, que há até palavrão – algo então inimaginável. Lá pelas tantas, num diálogo entre Ann e um antigo conhecido dela, que a tinha pedido em casamento tempos atrás, ela diz que agora é PhD – e, sigla por sigla, ele responde que é um SOB – son of a bitch. Fantástico: quando, em 1939, Rhett Butler-Clark Gable disse a frase “Frankly, my dear, I don’t give a damm” – algo do tipo francamente, minha cara, estou me ralando, estou me danando –, foi um Deus nos acuda. … E o Vento Levou é de 1939 – pois seis anos antes, em Ann Vickers, fala-se fdp, que é um tanto mais grave.
Como em Dodsworth, a crítica às americanas deslumbradas com a Europa
Mona, a mulher do juiz Dolphin que gasta o dinheiro dele em infindáveis viagens pela Europa, faz lembrar, e muito, a personagem Fran, mulher de Sam Dodsworth, um industrial que, ao chegar perto da velhice, decide vender sua fábrica para aproveitar o tempo que ainda tem para viver. Fran, exatamente como Mona, encanta-se com a Europa e com amantes ocasionais encontrados por lá, europeus espertos que comem americanas embasbacadas e vivem bem com o dinheiro delas.
O romance Dodsworth foi lançado quatro anos de Ann Vickers, em 1929 – exatamente o ano do crack da Bolsa de Nova York, que marcou o início da Grande Depressão. Mas só viraria filme, sob a direção do grande William Wyler, em 1936 (no Brasil, Fogo de Outono). Não por coincidência, quem interpretou Dodsworth foi o mesmo Walter Huston (1884-1950), extraordinário ator, pai do diretor John e avô dos atores Angelica e Danny Huston.
Vou atrás de outras opiniões.
Leonard Maltin não se comoveu com a imensa coragem do filme em abordar de forma franca e progressista uma série de temas importantes e controvertidos. Deu 2.5 estrelas em 4, e pontificou: “Assistente social feminista e reformista do sistema carcerário Dunne tem um caso com o canalha Cabot, eventualmente encontra o amor com o carismático e controvertido juiz Huston. Os atores principais estão ótimos nessa adaptação cortada do romance de Sinclair Lewis; o filme é mais episódico do que qualquer um tem o direito de ser.”
Sim, é de fato um problema adaptar um livro caudaloso, cheio de detalhes, que atravessa décadas na vida dos personagens, em um filme curto – e o filme é especialmente curto, com apenas 72 minutos.
Possivelmente, se eu tivesse lido o livro de Lewis, teria essa impressão de que é uma adaptação cortada. O filme visto independentemente do livro, no entanto, me pareceu contar direitinho a história desse personagem fascinante que é Ann Vickers.
E, sim, os atores centrais estão ótimos. Nisso aí estou inteiramente de acordo com Maltin.
O livro The RKO Story diz que o roteiro de Jane Murfin (creio que não era muito comum, em 1933, mulheres assinando sozinhas um roteiro) tornou bastante aguado o conteúdo do livro. (Cacilda! O livro, então, deve ser porreta.) Porém, prossegue o livro, com o elenco de nomes admirados e a direção polida de John Cromwell, o filme tinha seu apelo. O livro realça também a “imaculada” direção de arte – de fato extraordinária.
Uma grande atriz, Irene Dunne
Uma palavrinha sobre Irene Dunne (1898-1990). Com uma bela voz treinada para a música clássica, trabalhou em musicais (Snowboat, 1936), western épico (Cimarron, 1931), dramas (A Esquina do Pecado/Back Street, 1932, Sublime Obsessão/Magnificent Obsession, 1935). Só depois de ser reconhecida e admirada num monte de dramas, Hollywood descobriu, a partir de Os Pecados de Teodora/Theodora Goes Wild – a história de uma dona-de-casa aparentemente pacata que, secretamente, escreve tórridas histórias de amor e sexo – que a atriz tinha também uma bela veia para a comédia. E a partir daí vieram diversas comédias de sucesso, duas delas em que Irene contracenava com seu amigo Cary Grant – Cupido é um Moleque Teimoso/The Awful Truth, 1937, e Minha Esposa Favorita/My Favorite Wilfe, 1940.
Irene Dunne teve cinco indicações ao Oscar, mas não levou nenhum. O que não é qualquer problema: Orson Welles e Hitchcock também nunca levaram a estatueta de gesso para casa.
Só depois de fazer a anotação acima fui ver que, ano passado, eu já havia feito assim uma apresentação de Irene Dunne, quando vi o drama Serenata Prateada/Penny Serenade, de George Stevens, de 1941. Lá anotei: “acho que ela é uma boa atriz, sem dúvida, e tem o rosto bonito – mas ela não me encanta, não me passa nada especial”.
Pois bem: com este Ann Vickers, ela me conquistou. Não escreveria mais a frase anterior. Irene Dunne é uma grande atriz.
Ann Vickers
De John Cromwell, EUA, 1933.
Com Irene Dunne (Ann Vickers), Walter Huston (Barney Dolphin), Conrad Nagel (Lindsay), Bruce Cabot (Resnick), Edna May Oliver (Malvina Wormsor), Sam Hardy (Russell Spaulding), Mitchell Lewis (capitão Waldo)
Roteiro Jane Murfin
Baseado em romance de Sinclair Lewis
Fotografia David Abel, Edward Cronjager
Música Max Steiner
Montagem George Nichols Jr.
Produção Pandro S. Berman, Radio Pictures. DVD Cinemax, Continental.
P&B, 72 min
***1/2
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