3.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Os personagens deste filme não são apresentados com simpatia pelo diretor Peter Bodgdanovich. Muito ao contrário. São mostrados, todos, como pessoas desprezíveis, abjetas, patéticas – este último adjetivo é usado no próprio filme para descrevê-las; são gente sem caráter, ou no mínimo de caráter duvidoso, absolutamente egocêntrica, capaz de qualquer coisa para prejudicar os outros e se dar bem. E Peter Bogdanovich conhece a laia: ele está falando de seus pares.
São gente do cinema, gente de Hollywood. Entre os personagens do filme estão Charles Chaplin (interpretado por Eddie Izzard), o importante pioneiro da indústria cinematográfica Thomas Howard Ince, um dos criadores do gênero western (Cary Elwes), a atriz Marion Davies (Kirsten Dunst), a colunista de fofocas Louella Parsons (Jennifer Tilly), o magnata da imprensa e produtor de filmes William Randolph Hearst (Edward Herrman). Sim, ele mesmo – o homem cuja vida Orson Welles dissecou em Cidadão Kane.
O filme é o primeiro longa-metragem que Bogdanovich conseguiu fazer após oito anos de exílio na TV e nos livros sobre cinema – e mesmo assim com dinheiro alemão e inglês. Abre em preto-e-branco, como se fosse um cinejornal antigo (vai terminar, quase duas horas de bom cinema depois, de novo em P&B), com imagens que mostram gente rica chegando a um velório, enquanto uma voz de mulher em off – com fino sotaque britânico – diz o seguinte:
“Em novembro de 1924, durante uma festa de final de semana em um iate com destino a San Diego, houve uma misteriosa morte na comunidade de Hollywood. No entanto, não houve atenção por parte da imprensa nem da polícia, e, dos 14 passageiros a bordo, apenas um chegou a ser interrogado pelas autoridades. Hoje há poucas evidências, se é que chegou a existir alguma, para sustentar qualquer versão do ocorrido. A história tem sido escrita com base em rumores. Este (a narrativa que vai se seguir) é o boato mais conhecido. O iate citado pertence a William Randolph Hearst. Somente num lugar como este repórteres e caçadores de autógrafos não possuem escrúpulos ao abordar pessoas em um funeral. Bem-vindos a Hollywood, uma terra um tanto distante do planeta Terra. (Uma pausa.) Depois que sairmos, o homem da caixa desaparecerá. Só restarão suas cinzas. Afinal de contas, é o fogo que fere, não as cinzas.”
Quando a voz em off está dizendo as últimas palavras, a câmara está mostrando um caixão. Sobre essa imagem em preto-e-branco do caixão, sobrepõe-se outra, em cores, de um gigantesco iate, praticamente um navio.
Bogdanovich vai apresentando, então, os passageiros que chegam para a festa de fim de semana no iate de 67 metros de comprimento – aqueles já citados acima, e mais alguns outros, dos quais as mais importantes são a narradora, a escritora inglesa Elinor Glyn (Joanna Lumley), o sócio de Tom Ince, George Thomas (Victor Slezak), e a jovem atriz, amante de Ince, Margaret Livingston (Claudia Harrison).
A festa é para comemorar o aniversário de Tom Ince. Todo o filme, tirando apenas a abertura e o fecho em P&B, passa-se no iate, durante o passeio de fim de semana.
Rapidamente, nos 15, 20 minutos que se seguem à abertura, Bogdanovich vai nos mostrar, entre outras coisas, o seguinte:
– Tom Ince está precisando desesperadamente do dinheiro de Hearst; está cheio de dívidas, e tentará arrancar do bilionário uma sociedade, uma ajuda;
– todo o mundo está cansado de saber que Marion Davies é amante de Hearst, teúda e manteúda por ele; seus jornais falam dela a todo momento; loucamente apaixonado, ele faz tudo para transformá-la numa imensa estrela;
– Chaplin é um garanhão que, como se diz muito nos filmes americanos, não consegue manter a braguilha fechada; depois de lançar um filme dramático em que aparecia num papel pequeno, Casamento ou Luxo?/A Woman of Paris, com Adolphe Menjou e Edna Purviance, estava naquele momento, novembro de 1924, trabalhando na produção do ousado e caríssimo A Corrida do Ouro/The Gold Rush, com Lita Grey, uma jovem atriz menor de idade que – escândalo total! – estava grávida (de Chaplin, é claro);
– Chaplin, o garanhão, fazia de tudo para conquistar Marion Davies, a amante do magnata Hearst; Hearst sabia dos rumores, e dizia-se que havia convidado Chaplin para o passeio exatamente para poder ver o que ele estava fazendo;
– Louella Parsons havia sido contratada por Hearst fazia pouco tempo, para escrever sobre gente do cinema (e, certamente, para falar bem de Marion Davies); o retrato que o filme faz dela, com a ajuda da interpretação caricata de Jennifer Tilly, é de uma jovem em tudo desprezível, que saberá usar até chantagem em benefício próprio, uma megera iniciando uma vida de maldades;
– Tom Ince odeia e despreza Chaplin, mais até do que Chaplin odeia e despreza Tom Ince; a rigor, todos se toleram e convivem socialmente, mas todos desprezam todos.
Na última meia hora do filme, haverá então o crime.
Na sua resenha, Maltin diz que o filme é bem feito e com boas interpretações, com Herrman perfeito como Hearst e Izzar convencendo como Chaplin. “O roteiro de Steven Peros (baseado na sua peça) captura o espírito da época, mas os eventos mostrados saíram estritamente de sua imaginação”, afirma.
Aí é que está.
O filme já avisa, logo na abertura, que há poucas evidências para sustentar qualquer versão do que aconteceu no iate de Hearst naquele fim de semana de novembro de 1924, e que o que vai se contar é o boato mais conhecido. Ou seja: não é apenas a imaginação do autor da peça e roteirista Steven Peros.
Se você não quer saber o desfecho do filme, não leia a partir de agora
O Dicionário de Jean Tulard diz o seguinte, no verbete sobre Thomas Harper Ince: “Morreu misteriosamente em 1924 a bordo de um iate de William Randolph Hearst”.
No seu Dicionário de Cineastas, Rubens Ewald Filho tira o dele da reta, fica com a versão oficial e fala do boato: “Morto de um envenenamento de sangue em 1924, corre até hoje (hoje era 2002, data da mais recente edição do livro) o boato de que teria sido assassinado pelo milionário William R. Hearst , por ciúmes de sua amante Marion Davies. Mas não seria ele, e sim Chaplin que o magnata pretendia matar”.
“Rumores cercam a morte no mar de Thomas Harper Ince.” Esse título está no maravilhoso livro Cinema Year by Year 1984-2000, organizado por Robyn Karney, da editora inglesa Dorling Kinderslay; o livro apresenta os fatos como se estivesse transcrevendo notícias de jornal, ano a ano. No capítulo 1924, traz o título acima e esta delícia de texto, datado de Hollywood, 21 de novembro daquele ano:
“As principais figuras de Hollywood, incluindo Charlie Chaplin, Douglas Fairbanks, Mary Pickford, Harold Lloyd e Marion Davies se reuniram hoje para o funeral do produtor e diretor Thomas Harper Ince. O corpo de Ince foi cremado sem uma autópsia, o que torna as circunstâncias que cercaram sua morte, dois dias atrás, ainda mais misteriosas. Ince estava no grupo que incluía Chaplin, a bordo do iate pertencente ao magnata de imprensa William Randolph Hearst. Ele foi levado para a terra, supostamente com uma “indigestão”, e morreu em sua residência em Hollywood. Circulam boatos de que a indigestão foi causada por uma bala disparada por Hearst, que o confundiu com Chaplin, que ele suspeitava estivesse tendo um caso com sua amante, Marion Davies.”
O próprio Chaplin fala bastante de Marion Davies e de Hearst, na sua imensa autobiografia publicada originalmente em 1964. Não dá para garantir, mas muito seguramente o jovem Steven Peros, autor da peça e do roteiro deste filme aqui, leu e releu o que Chaplin escreveu. O clima que Chaplin descreve sobre as festas promovidas por Marion Davies e Hearst, o relacionamento entre os dois, o relacionamento entre o casal e as pessoas de Hollywood, os passeios no iate, tudo, tudo está no filme, tintim por tintim.
Chaplin, é claro, não fala uma palavra sobre um eventual caso entre ele e Marion Davies, e nega de pé junto os boatos a respeito da morte de Tom Ince. “Circularam então pérfidos rumores: Ince fora baleado e Hearst estava envolvido na história. Não havia o menor fundamento. Sei disso porque Hearst, Marion e eu fomos juntos visitar Ince dias antes de sua morte; mostrou-se muito contente em nos ver e convencido de que em breve estaria bom.”
Tudo bem – mas, de novo: o filme não diz que essa é a história verdadeira. Diz que é o boato mais conhecido.
E o fato é que Chaplin, na sua autobiografia, transmite exatamente o mesmo clima que o filme.
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Este texto já está grande demais, mas ainda não está dito por que Bogdanovich esteve exilado do cinema (que é também o motivo de sua visão tão tenebrosa da indústria, de Hollywood). O eventual leitor que quiser saber um pouco sobre isso encontrará um relato no comentário sobre outro filme do diretor, Daisy Miller.
Adendo em 8/2010: Vejo agora que o filme está sendo relançado em DVD, pela California Filmes, com o título mais marqueteiro de O Pulo da Gata. Marketing é marketing.
O Miado do Gato, ou O Pulo da Gata/The Cat’s Meow
De Peter Bogdanovich, Alemanha-Inglaterra, 2001
Com Edward Herrman, Kirsten Dunst, Eddie Izzard, Jennifer Tilly, Joanna Lumley, Cary Elwes
Roteiro Steven Peros
Produção Lions Gate.
Cor e P&B, 114 min
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Título em Portugal: O Mar do Gato
10 Comentários para “O Miado do Gato / The Cat’s Meow”