Infâmia / The Children’s Hour


4.0 out of 5.0 stars

Anotação em 2009: Infâmia/The Children’s Hour, feito em 1961, é um filme muito menos conhecido do que deveria. É – ou pelo menos era, até há pouco – quase obscuro, embora seja dirigido por um nome importantíssimo, William Wyler, vencedor de três Oscars de melhor direção e com outras nove indicações, e tenha duas atrizes excepcionais e que, na época, estavam no auge da carreira, e da beleza – Audrey Hepburn e Shirley MacLaine.

Para mim, especificamente, pessoalmente, o filme tem uma importância especial, por diversos motivos, que a rigor não importam nada, não interessam a ninguém – mas faço esta anotação mesmo assim, já que este é um site pessoal, personalíssimo. Eu já babava pelo filme antes mesmo que ele estreasse em Belo Horizonte, no início dos anos 60, só de ver as fotos das duas atrizes nos cartazes e nas revistas.

childrencartazUm filme muito menos conhecido do que deveria, quase obscuro: fui conferir no VideoBook, o mais abrangente livro sobre filmes lançados em VHS no Brasil – não, o filme não foi lançado naquele formato aqui. Conferi na edição mais recente que tenho do Guia de Vídeo e DVD da Nova Cultural, uma bela obra – o filme não consta.

Agora – segundo semestre de 2009 –, ele foi lançado em DVD pela Versátil, essa beleza de empresa dedicada basicamente a filmes de qualidade, na maioria europeus; de uns poucos tempos para cá, a Versátil passou a lançar em DVD filmes produzidos pelos grandes estúdios de Hollywood que as próprias empresas não se aventuram a lançar, porque seria anti-econômico, não venderiam o suficiente.   

Ainda bem que a Versátil existe. Infâmia é um filme extraordinário.

(Depois que eu já havia escrito este texto, li uma matéria de Luiz Carlos Merten no Estadão de 14 de outubro deste ano, 2009, em que ele conta que o filme foi relançado há pouco nos cinemas na França; eu não sabia disso.)

         Um pequeno ser humano a serviço do mal

Tento uma sinopse rápida – não sei se vou conseguir ser rápido, mas tento.

Um lugar não especificado dos Estados Unidos, muito provavelmente Costa Leste, Nova Inglaterra, lugar de gente muito rica, época não exatamente determinada, mas provavelmente os dias de então, 1961. (A peça na qual o filme se baseia havia sido lançada em 1934, mas não tinha havido mudanças significativas no comportamento e nos valores da sociedade entre 1934 e 1961, então o filme na verdade está bem fiel à peça.) 

childrenasduasUma escola, um internato para meninas adolescentes, filhas de ricos. As donas da escola – e professoras, e cozinheiras, e bedéis – são duas jovens amigas de muitos anos, formadas pouco tempo antes, que ali puseram todas as suas economias, esperanças, sonhos: Karen Wright (Audrey Hepburn), e Martha Dobie (Shirley MacLaine). São 20 alunas, a aristocracia local. No mês em que começa a ação, o caixa da escola está com seu primeiro lucro – US$ 90,00!

Karen e Martha têm, teoricamente para ajudá-las, mas a rigor para atrapalhá-las e cansar a paciência delas, uma tia de Martha, Lily Mortar (Miriam Hopkins), ex-atriz de teatro, egocêntrica, um pé no saco, um traste.

Karen namora um jovem médico da região, Joe Cardin (James Garner). Faz tempo que Joe já queria ter casado, mas Karen está sempre adiando a data, quer primeiro que a escola se firme, dê certo.

Joe é sobrinho da Sra. Amelia Tilford (Fay Bainter), uma das senhoras mais ricas e respeitadas da rica região. A Sra. Tilford é quem cria a neta Mary (Karen Balkin), uma das 20 alunas da escola Dobie-Wright. E essa Mary é uma peste, uma pustema, um pequeno ser humano a serviço do mal.

Com base em sua própria maldade, e em uma ou duas frases ouvidas pelas alunas, uma delas saída da boca idiota da tia Lily, Mary dirá à avó que as professoras Karen e Martha são amantes. A tragédia se abate sobre a escola Dobie-Wright com a rapidez de um raio.

         A maldade que se espalha ao vento como um veneno

Ao rever o filme agora, não pude deixar de lembrar do recente e também excelente Dúvida/Doubt, igualmente baseado em uma peça de teatro, um filme, como eu disse na anotação sobre ele, “sobre religião, educação, amor ao próximo, certeza e dúvida, sobre os julgamentos que fazemos sobre as pessoas e seus atos sem ter prova concreta de nada, sobre como boatos podem destruir vidas”. Lembrei do maravilhoso sermão de domingo do Padre Flynn, interpretado por Philip Seymour Hoffman; no meu comentário sobre Dúvida, escrevi que “a seqüência em que o Padre Flynn faz seu segundo sermão, o sobre a fofoca, a maldade que se espalha como um veneno que ninguém depois tem condições de aprisionar de volta, é de um brilho absoluto. É o tipo da união perfeita de forma e conteúdo, o que se diz e como se diz”. No entanto, não transcrevi o texto brilhante do sermão. Como tem absolutamente tudo a ver com o que se passa neste Infâmia, transcrevo agora:

– “Uma mulher estava fofocando com sua amiga sobre um homem que elas mal conheciam – eu sei que nenhum de vocês faz isso. Naquela noite, ela teve um sonho: uma grande mão apareceu apontando para ela. Ela foi imediatamente tomada por uma gigantesca sensação de culpa. No dia seguinte foi se confessar. Chegou-se para seu velho pároco, o Padre O’Rourke, e contou tudo para ele. “Fofocar é pecado?”, perguntou. “Era a mão de Deus Todo Poderoso apontando contra mim? Devo pedir sua absolvição? Padre, eu fiz algo errado?” “Sim”, respondeu o Padre O’Rourke. “Sim, mulher ignorante, mal criada. Você prestou falso testemunho sobre seu vizinho. Você brincou com a reputação dele, e deveria se sentir profundamente envergonhada.” E então a mulher disse que sentia muito, e pediu pelo perdão dele. “Não tão depressa”, disse O’Rourke. “Quero que você vá para casa, pegue um travesseiro, coloque-o no alto de sua casa, corte o travesseiro com uma faca, e volte aqui.” Então a mulher foi para casa, pegou um travesseiro de sua cama, uma faca da gaveta, subiu até o telhado e esfaqueou o travesseiro. Depois voltou ao velho padre, conforme ele havia ordenado. “Você cortou o travesseiro com a faca?”, ele perguntou. “Sim, Padre.” “E qual foi o resultado?” “Penas”, ela respondeu. “Penas?”, ele repetiu. “Penas, em todos os lugares, Padre.” “Agora quero que você volte lá e junte cada uma das penas que voaram com o vento.” “Bem”, ela disse, “isso é impossível. Não sei para onde elas foram. O vento as levou para todos os cantos.” “E isso”, disse o Padre O’Rourke, “é o boato!”

         O crime da menina má e o crime da menina fantasiosa

childrenelasE me lembrei também, ao rever Infâmia, de Reparação, Atonement, o maravilhoso romance de Ian McEwan lançado em 2001, 40 anos depois do filme de William Wyler, 67 anos depois da peça de Lillian Hellman. São estranhos os caminhos da memória da gente. Ao ler Reparação, e depois, ao ver a bela adaptação para o cinema, Desejo e Reparação, de Joe Wright, não me lembrei de Mary Tilford, a garotinha cuja mentira espalha as penas da maldade ao vento na peça escrita em 1934. Era para ter lembrado. O crime da Mary Tilford de Lillian Hellman tem muito a ver com o da Briony Tallis criada por Ian McEwan, embora as duas crianças, pré-adolescentes, tenham personalidades diferentes uma da outra.

Mary Tilford – a peça de Lillian Hellman mostra isso com poucas e fortes pinceladas, assim como o filme de Wyler – é, como eu disse, uma peste, uma pustema, um pequeno ser humano a serviço do mal. Briony Tallis é um personagem muito mais complexo. É mimada, fantasiosa, imaginativa, ambiciosa, orgulhosa, cheia de si e de empáfia – mas não é propriamente má, a essência do mal, o mal em si. Seu crime, no entanto, é bem parecido com o de Mary Tilford, tão grave quanto ele.

         Um casal extraordinário, fascinante

Uma sociedade que julga e condena inapelavelmente com base em boatos, rumores, fofocas não comprovadas; que bane, expulsa, proíbe de trabalhar as pessoas julgadas e condenadas dessa maneira; que, depois de tomada a decisão de condenar, fica cega a todas as evidências de que os acusados podem ser inocentes. Em que a imensa maioria adere à condenação definida por uns poucos, em que a acachapante maioria segue feito cordeirinho as decisões tomadas por uns poucos. Que cai num clima de paranóia geral e passa a enxergar bruxas em todos os cantos.

Até parece – me ocorre agora – que, em 1934, em sua peça, Lillian Hellman estava antevendo o que iria acontecer alguns anos mais tarde, na década de 50, quando os Estados Unidos mergulharam na loucura da caça às bruxas do macarthismo, do Comitê de Atividades Anti-Americanas.

allillianLillian Hellman (foto) e seu amigo, amante, instrutor, professor de texto e companheiro de várias décadas, Dashiell Hammett, seriam eles próprios vítimas do macarthismo.

Lillian e Hammett formaram um dos casais mais fascinantes da história, na minha opinião. Como Zelda e F. Scott Fitzgerald, Spencer Tracy e Katharine Hepburn.  

Os dois estavam começando a viver juntos quando Lillian Hellman escrevia The Children’s Hour, sua primeira peça, seguindo uma sugestão dele. Hammett já era um escritor respeitado, de renome, famoso, e era 11 anos mais velho que ela – é de 1894; Lillian nasceu em 1905. Era casado, e não se divorciaria da mulher. Passou para Lillian lições de texto e a admiração pelo comunismo. O filme Julia, de Fred Zinnemann, de 1977, baseado em um capítulo de um dos livros de memórias de Lillian, mostra a então jovem escritora (interpretada por Jane Fonda) escrevendo e reescrevendo e reescrevendo os diálogos da peça, e submetendo ao crivo do amante (o papel de Jason Robards Jr.) as sucessivas tentativas.

Julia é um dos capítulos de Pentimento, o segundo livro autobiográfico da autora, lançado em 1973; em 1969 ela havia lançado An Unfinished Woman, e em 1976 sairia Scoundrel Times, especificamente sobre a era McCarthy (scoundrel é salafrário, patife, canalha).

         Uma história de vida fantástica como uma peça de teatro

Em outro capítulo de Pentimento, intitulado Teatro, ela fala de The Children’s Hour. Não fala muito do processo de criar a belíssima peça, sua inspiração, o que pretendia dizer, e sequer sobre a participação de Hammett como autor da sugestão do tema e leitor dos originais. Diz que guardou “certas cenas, imagens e recordações” de suas peças. Entre suas recordações está Lee Shubert, o dono do teatro de Nova York em que The Children’s Hour estava para estrear, dizendo a ela: “Esta peça pode nos pôr todos na cadeia”. 

“Sempre achei que ficara tão bêbada na noite de estréia de The Children’s Hour porque tinha começado a beber duas noites antes. (…) Na tarde da noite da estréia de The Children’s Hour, afoguei a ressaca em conhaque. Creio que vi a peça do fundo do teatro, agarrada a um corrimão, mas não tenho certeza: lembro-me de quando a cortina se fechou, e de uma assistência que gritava ‘o autor, o autor!’. Mas não foi apenas a modéstia que me impediu de comparecer às chamadas à cena – não poderia ir aos bastidores sem cair.”

E aí ela relata que ligou para Hammett, que estava em Hollywood, para contar a ele que a estréia havia sido um sucesso. “Depois de muito tempo, uma mulher atendeu dizendo que era secretária do sr. Hammett, e que aquela era uma hora muito estranha para telefonar.” Dias depois, “ocorreu-me que telefonara para ele às três horas da manhã, hora da Califórnia, e que ele não tinha secretária”.

“Falávamos ao telefone muitas vezes naqueles dias (ele estava muito contente com The Children’s Hour, orgulhoso de que todo o trabalho que eu lhe dera tivesse valido a pena), mas logo que entendi o que significava a secretária às três horas da manhã, tomei um avião para Los Angeles. Quando cheguei à casa de Pacific Palisades já era de noite e tinha bebido muito. Fui imediatamente até o bar de refrigerantes (Hammett tinha alugado a casa de Harold Lloyd), quebrei-o em pedacinhos, e voltei a Noa York num vôo tardio.”

         “Uma mentirosa persistente”. E nem precisava

childrenostresBeleza de história, esta. Regina, que nos anos 70 me introduziu ao universo de Lillian Hellman e Dashiell Hammett e me fez ler Pentimento e várias outras obras do e sobre casal, adorava especialmente essa história. (Em 1997, quando Mary e eu passamos dias maravilhosos na bela casa que Regina construiu em Trancoso, muito antes que aquilo ali virasse o paraíso dos muito ricos, eu leria lá The Children’s Hour, no livro das obras completas para o teatro que comprei de presente para Regina em Nova York, nos poucos e únicos dias que passei lá, em 1981.) 

A história do telefonema da Costa Leste para a Costa Oeste, da demora em cair a ficha sobre a “secretária” de Hammett, a viagem através do país inteiro para quebrar o bar da casa dele – isso é realmente um achado. Só que pode perfeitamente não ter acontecido – pode ter sido apenas a invenção de uma escritora, como as sandices que Briony Tallis criou na sua cabecinha imaginativa.

Em 1980, em rede nacional de televisão, a também escritora e também esquerdista Mary McCarthy, “de formação intelectual mais alta que Hellman mas escritora de menor sucesso”, a acusou de ser uma mentirosa persistente, como diz William Wright, no prefácio da grande e bem documentada biografia Lillian Hellman – The Image, the Woman. Ao que Lillian respondeu com um processo contra Mary McCarthy no valor de US$ 2,225 milhões. “A ação estava indo a julgamento quando Hellman, com os reflexos de dramaturga, desviou a atenção do público da discussão rancorosa e degradante para um entrecho de drama mais atraente. Ela morreu.”

O biógrafo Wright – que, como mostra a frase acima, tem um belo texto – demonstra que, sim, nos seus livros de memória Lillian Hellman embelezou passagens, alterou histórias. Em suma, mentiu. Justamente ela, que teve uma vida longa, produtivíssima, riquíssima. “Escreveu mais peças que qualquer outra autora, todas sobre temas sérios. Só alguns poucos dramaturgos americanos da sua época – Eugene O’Neill, Arthur Miller e Tennessee Williams – são reencenados tão freqüentemente. Suas três memórias não apenas tiveram grande vendagem como foram amplamente elogiadas por sua qualidade literária. Três de seus roteiros, escritos durante o período premier cru dos anos 30 e 40, são considerados clássicos e foram produzidos em colaboração com gigantes do cinema como William Wyler, Bette Davis e Samuel Goldwyn. Entre seus amigos estavam muitas das personalidades mais importantes de seu tempo. Sua ligação de três décadas com o brilhante escritor e enigmática personalidade Dashiell Hammett teria, por si só, assegurado a ela um lugar no folclore literário da época.”

“Hellman tinha o talento”, continua William Wright, “de se colocar no palco em que ocorriam eventos fundamentais: a Alemanha durante a ascensão do nazismo, a Rússia durante os julgamentos dos expurgos, a Espanha durante a guerra civil, o front russo durante a Segunda Guerra Mundial e a Iugoslávia logo depois que Tito rompeu com Moscou. Enquanto outras figuras literárias são forçadas a dar cores mais fortes a histórias opacas, Hellman foi beneficiária de uma ascendência tão colorida quanto a América pode oferecer: ancestrais judeus do Sul, alguns ricos e avaros, outros pobres e excêntricos. Enquanto criança, ia e vinha entre um pensão de Nova Orleans e o Upper West Side de Manhattan. (…) Alçou-se à proeminência aos 29 anos de idade com o brilhante sucesso de sua primeira peça. (…) Não era bonita (na verdade, era feia pacas, digo eu), mas seu estilo, inteligência e sexualidade aberta a levaram a ter mais do que envolvimentos casuais com dois produtores da Broadway, um gigante da área editorial, um diplomata, alguns homens de negócios milionários e, entre outros, um estivador desempregado – tudo durante sua ligação com Dashiell Hammett.”

         O segundo filme de Wyler e Lillian baseado na peça

childrendenovoAcabei me estendendo muito nas informações sobre a autora, porque são, como se pode ver, riquíssimas. Mas o filme baseado na sua primeira obra é o que mais importa aqui – e ele é igualmente rico.

O diretor Wyler era amigo de Lillian Hellman, e os dois trabalharam juntos diversas vezes. Lillian escreveu o roteiro de Beco Sem Saída/Dead End, de 1937, dirigido por Wyler, com Humphrey Bogart ainda como coadjuvante. Em 1941, ele filmou outra das grandes peças dela, The Little Foxes (aqui, Pérfida), com roteiro da própria autora, mais cenas adicionais e diálogos assinados por um trio que inclui outro grande nome da literatura americana, Dorothy Parker. O papel principal, da mulher ambiciosa que só pensa em dinheiro, numa família ambiciosa que só pensa em dinheiro no Sul profundo, foi de Bette Davis; o filme recebeu nove indicações ao Oscar. (Quarenta anos depois que o filme foi feito, em 1981, tive a sorte grande de ver a peça na Broadway, com o luxo de ter Elizabeth Taylor no papel que havia sido de Bette Davis – uma prova a mais daquilo que o biógrafo de Lillian fala, sobre as reencenações permanentes de suas peças.)

Mas o mais fascinante é que, ainda em 1936, apenas dois anos após a estréia de The Children’s Hour no teatro em Nova York, William Wyler dirigiu um filme baseado na história, These Three (no Brasil, esse filme também foi lançado com o título de Infâmia). O roteiro era da própria Lillian Hellman. Não vi o filme de 1936, mas sabe-se que os produtores e a roteirista tiveram que fazer tremendas concessões à censura da época (nos anos 30, o Código Hays, que estabelecia o que podia e não podia ser mostrado nos filmes, imperava, e era absolutamente rígido).

Como diz o livro The United Artists Story, “de acordo com Hollywood, homossexualismo não existia na América até os anos 60, e por isso These Three foi despojado de seu tema de lesbianismo”. No primeiro filme, então, a menina Mary conta para a avó que uma das professoras da escola está tendo um caso com o noivo da outra. O trio que, no filme de 1961, foi Audrey Hepburn-Shirley MacLaine-James Garner, no filme de 1936 era Merle Oberon-Miriam Hopkins-Joel McCrea.

E, como tudo em relação a Lillian Hellman é rico e cheio de histórias, Miriam Hopkins, que no filme de 1936 fez o papel de Martha, uma das jovens professoras, trabalhou também no filme de 1961, desta vez fazendo o papel da tia, aquela insuportável canalha.

         A História avança, mas avança aos sacolejos, indo e voltando

aloudestEssa coisa de censura, de haver época em que se pode falar abertamente dos assuntos e outras em que não se pode, é fascinante – e ao mesmo tempo estarrecedora. Fica parecendo que a história realmente avança, mas avança a sacolejos, como uma carroça em estrada esburacada do Velho Oeste ou de qualquer interiorzão bravo. Parece avançar, se conseguirmos observar a curva dos acontecimentos em um prazo longo, a uma distância maior. Porque, se virmos essa curva mais de perto, o que observamos é um movimento pendular – dois passos à frente, três atrás, depois mais dois à frente, um atrás, dois à frente. Avança-se, mas a duras penas.

Uma seqüência de exemplos para tentar demonstrar o que estou tentando dizer: o romancista inglês Henry Fielding (1707-1754) escreveu Tom Jones, sua “comédia épica”, em 1749. Era cheio de safadeza, uma trepação danada. Jane Austen viveu um pouco mais tarde, entre 1775 e 1817, e a sociedade inglesa que ela retrata é absolutamente mais pudica, recatada. E ficou muito mais pudica e recatada ainda no período vitoriano (1837-1901), de tal maneira que Oscar Wilde (1854-1900) foi julgado por ofensa aos bons costumes e condenado a dois anos de prisão por ser homossexual. E o livro O Amante de Lady Chatterley, de D.H.Lawrence (1885-1930), que trata de infidelidade conjugal e relações sexuais entre uma patroa e um empregado, publicado originalmente em 1928 na Itália, só foi lançado na íntegra na Inglaterra em 1960, apenas dois anos antes dos Beatles – e mesmo assim os editores tiveram que enfrentar uma dura batalha judicial. Apenas oito anos depois, no entanto, em 1968, um dos Beatles, um dos quatro caras mais famosos que Jesus Cristo na época, apareceu pelado na capa de um disco, ao lado da sua japonesa feiosa. E em 1997, no serviço religioso em memória de Diana Spencer, a mais querida personalidade da família real dos últimos tempos, na Abadia de Westminster, a Basílica de São Pedro da Igreja Anglicana, o convidado para cantar foi um amigo da princesa, artista assumidissimamente homossexual, o bravo Elton John.  

Ou ainda outro exemplo rápido: em 1939, a expressão “I don’t give a damn”, algo tão pouco ofensivo quanto “não tô nem me lixando”, causou tremendo furor ao ser pronunciada no final da big mega hiper superprodução … E o Vento Levou, quebrando uma das proibições do Código Hays. Apenas 40 anos depois, ou seja, um período de tempo menor que poeirinha do cocô do cavalo do bandido, a palavra fuck, foder, aparecia em dezenas e dezenas de filmes 20 vezes a cada minuto.   

         Boa parte da história do filme aconteceu de verdade – em 1810

Este texto já está imenso, mas ainda é preciso enfatizar que as referências logo acima ao avanço sacolejante, gago, de idas e vindas, da História, e também à Grã-Bretanha, não são absolutamente gratuitas, e têm tudo a ver com The Children’s Hour. A base da história da peça de estréia de Lillian Hellman aconteceu de fato, na vida real, na Escócia, em 1810: duas mulheres fundaram uma escola, investindo nela tudo o que possuíam; a tia de uma delas, que havia trabalhado como atriz, dava aula na escola; as duas mulheres foram acusadas por uma estudante de ter relações sexuais; a acusação foi feita pela estudante à sua avó, pessoa proeminente na localidade. Tudo exatamente como na peça, e como no filme. 

larumeurEssa história real, chocante, foi contada em um capítulo, Closed Doors, or The Great Drumsheugh Case, de um livro chamado Bad Companions, de autoria do inglês William Roughhead, que reuniu nessa obra casos discutidos e julgados nos tribunais britânicos. Hammett leu o livro, se impressionou especialmente com essa história das duas mulheres, e sugeriu que Lillian usasse o caso como ponto de partida para a peça que ela desejava escrever. (Essas informações estão na biografia de Lillian Hellman escrita por William Wright.)

Então, recapitulando: houve uma história assim na vida real, em 1810, na Escócia. A peça de teatro inspirada nela fez grande sucesso no teatro em Nova York em 1934, mas em 1936 o cinema hollywoodiano não pôde contar a história, porque o tema homossexualismo era tabu; foi preciso disfarçar. Só em 1961 a peça pôde ser filmada tal como havia sido escrita décadas antes, e tal como a história tinha se passado na vida real um século e meio antes.

E aí, vendo o filme hoje, 48 anos depois que ele foi feito, certamente as pessoas mais jovens terão dificuldade para entender por que, afinal, houve tanta tragédia por causa de uma acusação de lesbianismo. Muitas poderiam se perguntar: como assim? Lesbianismo hoje é fichinha, café pequeno, coisa normal, está nas novelas da TV, pode passar na sessão da tarde que não tem problema nenhum. Por que tanto auê?

A História avança – ainda bem que avança. Aos solavancos, aos soluções, aos borbotões, de um jeito gago, com idas e vindas, mas avança. 

Não estou querendo dizer que está tudo resolvido, que já não há mais problemas. De forma nenhuma. Tive e tenho amigas gays (mais amigas que amigos, na verdade) que ainda enfrentam discriminação, preconceito – mas nada que se compare ao que era 50 anos atrás, e 50 anos, repito, é menos que poeirinha do cocô do cavalo do bandido, em termos de História. Minha sobrinha-neta Sarah é uma ativista da causa gay, uma orgulhosa militante; queixa-se de discriminação e preconceito, e discriminação e preconceito têm que ser combatidos sempre – mas, meu Deus do céu e também da terra, temos que convir que a discriminação e o preconceito hoje são poeirinha do cocô do cavalo do bandido, se compararmos com o que já foi antes – conforme mostram a peça de Lillian Hellman, o filme de William Wyler, a história da peça, a História.

Ainda há discriminação e preconceito – mas, cacilda, já se avançou, e muito.

Infâmia/The Children’a Hour

De William Wyler, EUA, 1961

Com Audrey Hepburn, Shirley MacLaine, James Garner, Fay Bainter, Miriam Hopkins, Karen Balkin, Veronica Cartwright

Roteiro John Michael Hayes

Baseado na peça de Lillian Hellman, com adaptação da autora

Fotografia Franz Planer

Música Alex North

Produção United Artists, The Mirisch Corporation

P&B, 107 min

R, ****

Título na Inglaterra: The Loudest Whisper. Título na França: La Rumeur

21 Comentários para “Infâmia / The Children’s Hour”

  1. Comprei “Infâmia”, seduzida pela “provocação” oferecida por prestigiada empesa que me manda coisas muito boas. A mesma que me ofereceu, do mesmo diretor, “The Heiress”. Nesta época, passa ao largo o tema, então escabroso do homossexualismo, mas permanece a maldade difundida de tal maneira a desgraçar a vida das pessoas. Sergio não comparou de imediato a “Desejo e Reparação” e “Dúvida”. Eu, sim. Fantástico em “Infâmia” é que a dúvida atingiu até mesmo personagens centrais como Martha e Joe. Forte mesmo era Karen, o que lhe proporociona a saída triunfal do sepultamento de Martha e do próprio filme. Magnífico!!!!

  2. Existe uma frase que diz “FALEM MAL MAS FALEM DE MIM” , outra, diz assim “O QUE OS OUTROS DIZEM DE MIM,NÃO É DA MINHA CONTA” e, uma outra, acho que foi Lair Ribeiro quem disse, “O QUE PENSAM DE VOCE NÃO É PROBLEMA SEU,É PROBLEMA DELES, DOS OUTROS”.
    São frases bonitas,de efeito, mas que muitas pessoas não conseguem segui-las, como se costuma dizer, “ao pe da letra”.
    O que estou querendo dizer, é com relação a esse maldito preconceito geral que existe até hoje.É isto, a pessôa leva dias, meses, anos, uma vida, para constuir algo e, aí, vem uma única pessôa e,com uma única palavra destrói tudo isso.
    Aquela menina, a Mary, tão criança e já era um poço de maldade. Disse para a avó o que não ouviu e nem viu e essa avó fez a maldade pior que foi espalhar isso para as outras pessôas.Como foi fácil destruir o que aquelas
    duas mulheres construíram. Depois, pensam que é só chegar e pedir desculpas, que estará
    tudo bem …
    Eu já fui vítima de preconceito por uma pessôa que tentou destruir meu casamento,
    minha moral, minha conduta pesoal mas, não conseguiu pois eu, consegui seguir “ao pé da letra”, como disse lá em cima,aquelas frases.
    Enfrentei tudo e todos com a cabeça erguida.
    Assim foi com a Karen, como diz a amiga,Maria
    Marques, aquela saída triunfal dela do cemitério, cabeça erguida, VITORIOSA acima de tudo.
    Um filmaço, cinema de qualidade, de brilho.
    A Audrey e a Shirley estavam maravilhosas.

  3. Eu fiquei estupefacto com este filme. Eu nunca tinha ouvido falar dele até ter visto recentemente um documentário sobre a homossexualidade no cinema. Fiquei interessado no filme e fui ver. Que grande história e que ótimas interpretações. Wyler é mesmo bom realizador. Nunca pensei que um filme da década de 60 falasse de homossexualidade tão abertamente. No que respeita à questão do rumor, já fiquei surpreendido, mas nunca esperei que a personagem Martha confessasse literalmente o seu amor pela personagem de Audrey. É certo que o filme não utiliza as expressões “homossexualidade” ou “lesbianismo” mas o tema está lá e bem claro. De certa forma, o filme é um pouco datado. Como tu dizes Sérgio, ninguém agora faria tal alvoroço, mas não deixa de ser um filme que se deva ver uma vez que é um documento histórico que mostra como vivia a sociedade conservadora da época e como a homossexualidade era vista como uma doença. As duas protagonistas estão muito bem. A cena do suicídio muito bem filmada e o close-up do rosto da Audrey poderoso. Eu não entendo como este filme é pouco conhecido, pois é muito forte. Ainda hoje é forte. Se antes era forte por tratar do lesbianismo, hoje é forte por mostrar o horror com que era encarada a homossexualidade.

  4. Em termos do que se é moral e ética, só se torna polêmico e desejoso pela nossa ignorância, aquilo que pela nossa consciência não nos é permitido. O Homossexualismo será sempre uma questão infame por não nos ser permitido e assim se tornando num falso desejo.
    Analisando o filme, nota-se que de forma inconsciente a nossa inteligência primitiva é realmente algo chocante. Para nos levar ao erro e tentar nos convencer apenas a nós mesmo do quanto a nossa ignominia está correta, a inteligência age da seguinte forma:
    No enredo do filme em questão, através das possibilidades dos fatos, primeiro questionasse o mal (Homossexualismo) como um mal menor o relacionando com um suposto mal maior(Julgamento sem provas, fofocas culminando na desgraça das pessoas que praticaram o mal) se sobrepondo ao mal em questão que seria o homossexualismo. E assim, de grão em grão a galinha enche o papo. Quando deveríamos expulsar de nossas vontades, tanto o homossexualismo como a prática da injúria e difamação, daqui a pouco estamos aceitando a prática do homossexualismo como algo normal apenas porque ficamos penalizados pelo fato de que os homossexuais são estigmatizados pelas sua práticas imorais.
    Em termos do que se É mal, quando se discute um mal como um suposto bem, estamos dando em totalidade a este mal, uma certa máscara para que se fantasie de bem. Ora, o mal não se discute, pode se discutir uma coisa que É mal?
    É o coitadismo agindo em nome da ignorância. Vão com o relativismo de vocês para outro lugar!!!!

    Bonito e perfeito e se ter uma vida pregressa, infame e desrespeitosa. É só subverter a nossa própria consciência que para os outros somos visto como “perfeitos”.
    Lesbianismo não tem nada de natural, e se passa na TV, é somente após as 9 horas, e se esta prática é normal, que esta verdade fique apenas no imaginário do autor deste texto se assim ele desejar, meu desejo sincero é que um dia o autor deste texto encontra a lógica por trás do veu da ignorância.

  5. Será que McCarthy estava errado?

    Eles eram comunistas, se é assim, eram relativistas e imorais e faziam apologia ao lesbianismo.

    é, McCarthy estava certo, e eles deveriam reclamar de que?

  6. Espiritos, Espiritos, vocês não são nem masculinos e nem femininos e tanto mais por isso deviam viver sua natureza sexual sem terem que apelar para o imoral.
    O prazer sexual entre um homem e uma mulher não é diferente do mesmo prazer sexual entre duas mulheres, então, porque não vivermos nossa natureza sexual? Se sou mulher, devo procurar um homem, se sou homem devo procura uma mulher, pronto. Porque complicar tanto, será que a curiosidade tem tanto poder assim sobre nossa ignorância.
    A vida não é só isso, há coisas muito mais além do que os nossos sentidos podem alcançar.
    O inferno como um lugar é uma mentira, concordo, mas o inferno pessoal de cada um de nós, está nos parecendo mais real do que nunca, e este é o grande motivo que faz com que pessoas se suicidem, se envolvam com o crime, com as drogas, sejam acometidas por doenças degenerativas, e etc e esta realidade não está confinado apenas a esta dimensão, o pior é

  7. Enquanto o ser humano viver sobre o julgo da simetria, definindo uma falsa realidade baseada num belo que para nós se torna prazeroso e agradável, o mundo não sairá desta ignorância infame e do julgo da escravidão dos falsos desejos.
    Tudo que nos é agradável é efêmero e estamos buscando sempre mais, até que cheguemos a nossa ruína moral, corporal e espiritual.
    A ausência de Deus é a presença da Ignorância.

  8. O grande diretor francês Alain Resnais considerava “Infâmia” (de 1961) um dos filmes americanos mais subestimados. Além de tê-lo incluído numa lista de dez melhores filmes do ano em que foi lançado na França.
    Pena que a atriz Shirley MacLaine tenha criticado o diretor W.Wyler por não permitido que ela enfatizasse traços pouco femininos na composição da personagem. Ela não entendeu nada: como dizia a própria Lillian Hellmann, sua peça não é sobre lesbianismo, mas sobre “O poder destruidor da mentira”. No caso até mesmo o poder destruidor da verdade quando ela não é aceita pelo meio social e nem pela personagem Martha que não suporta ter alguma atração mais intensa pela amiga.
    O filme é extraordinário, um dos melhores entre tantos ótimos filmes que Wyler dirigiu.

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