Lady Chatterley


3.5 out of 5.0 stars

Anotação em 2009: Um belíssimo filme, esta mais recente versão para o cinema da história criada pelo escritor inglês D.H.Lawrence num dos romances que provocaram maior polêmica no século XX . Em seu terceiro longa-metragem, a diretora francesa Pascale Ferran, nascida em 1960, conta o amor entre uma nobre inglesa e um de seus serviçais – que já chocou várias gerações – de uma forma delicada, terna, suave, doçamarga.

O filme tem um ritmo lento, um pouco como o próprio ritmo da vida no campo. O visual é primoroso, cuidadíssimo; intercalando-se às seqüências de ação, há diversas cenas da natureza, as árvores, um riacho, um detalhe de uma flor, um pequeno lagarto. O elenco é todo estupendo, em especial a jovem atriz que faz Constance, a Lady Chatterley, Marina Hands. Um nome para se guardar, uma atriz para se acompanhar – uma estrela que tem tudo para explodir.

Como o livro de Lawrence tem, ele próprio, uma longa e fascinante história, e chegou diversas vezes ao cinema, e há muito o que comentar sobre tudo isso, além de sobre o filme em si, vou me livrar da necessidade de dar uma sinopse usando a do site Unifrance.org, de divulgação do cinema francês, fazendo apenas um ou outro acréscimo:

No castelo dos Chatterley, no interior da Inglaterra, por volta de 1918, Constance passa seus dias monótonos aprisionada dentro de seu casamento com Sir Clifford – que voltou da Primeira Guerra paraplégico – e seu senso do dever. Na primavera, no bosque de Wragby, dentro dos domínios do casal, ela fica conhecendo Parkin, o guarda-caça da propriedade. O filme é a história deles. “O relato de um encontro, de uma difícil domesticação, de uma descoberta da sensualidade para ela, de um longo retorno à vida para ele.”

Nos créditos finais do filme, se diz que a diretora baseou o roteiro na segunda versão do romance O Amante de Lady Chatterley. Confesso que – santa inguinoranssia – eu não sabia que o livro tinha tido mais de uma versão. Fui tentar entender a história. Não chega propriamente a ser simples.

O Amante de Lady Chatterley foi o último romance de D.H.Lawrence, nascido em 1885 e morto em 1930, de tuberculose, com apenas 44 anos. Apesar da vida curtíssima, Lawrence deixou obra vasta – vários romances, vários volumes de poesia, diversos contos, peças, livros de viagem, livros de não-ficção, e dezenas de quadros. Diz a sempre confiável Encyclopaedia Britannica:

“Os últimos anos de Lawrence foram dedicados principalmente a pintar quadros e a escrever e reescrever sua última novela, O Amante de Lady Chatterly, para descarregar sua amargura acumulada contra a sociedade e para gravar sua crença em que a civilização poderia encontrar uma cura através de um novo relacionamento entre homens e mulheres. Publicado numa edição limitada em Florença (1928) e em Paris (1929), apareceu em uma versão expurgada em 1932. O texto completo só seria publicado em 1959 em Nova York e em 1960 em Londres, quando foi tema de um sensacional caso judicial (Regina x Penguin Books Limited, Regina significando a Coroa Britânica, imagino eu), que girou em boa parte em torno da justificativa do uso nessa novela de palavras ‘tabu’ relativos ao sexo.”

Quando o livro foi lançado, a imprensa inglesa usou expressões como “esgotos da pornografia francesa”; “o livro mais sujo da literatura inglesa”.

É preciso realçar as datas. Então temos que o livro foi escrito em 1928, apareceu na Inglaterra em uma versão expurgada – ou seja, censurada, cortada, mutilada – em 1932, e só foi publicado na íntegra em 1960! E mesmo assim ainda houve um caso judicial contra quem editou a íntegra em 1960! Apenas dois anos antes dos Beatles! E não estamos falando da Botsuana, ou do Quênia, ou do Afeganistão, mas da Inglaterra, o país mais livre e democrático do mundo!

“É por isso que muita gente diz que os anos 60, que mudaram tudo, só começaram com a liberação da Bovary de Lawrence”, notou, numa bela frase, o crítico Luiz Carlos Merten, em seu texto no Estadão sobre este filme de Pascale Ferran, quando ele estreou em São Paulo, em novembro de 2007.

         São três as versões do romance     

O verbete da Britannica não precisa exatamente quantas versões há do livro – diz que Lawrence ficou escrevendo e reescrevendo seu romance, fala de uma edição em Florença e Paris no final dos anos 20, uma versão expurgada em 1932, e uma edição com o texto completo em 1959 e 1960. Já Frieda Lawrence, a viúva do autor, usa um número preciso: ela fala de três versões. Antes de ser Frieda Lawrence, ela foi Frieda von Richthofen, uma alemã descendente de um barão que se casou com Ernest Weekley, que por sua vez foi professor de francês de Lawrence na Universidade de Nottinhgam. Lawrence roubou-a do ex-professor; viveram juntos até o final da curta e agitada vida dele.

Frieda escreveu uma carta aberta, datada de Londres, 26 de janeiro de 1933: “D.H.Lawrence escreveu três versões do romance O Amante de Lady Chatterley, porém tão diversas entre si que na realidade constituem três diferentes livros”, diz ela na carta aberta. “Conheço o fundo da versão original e acompanhei o terremoto que sobreveio à publicação reservada dessa versão, e às várias edições seguintes, autorizadas ou não. Desesperado por não encontrar editor na Inglaterra, Lawrence autorizou uma edição na França, a qual saiu pouco antes de sua morte. (…) Por uns tantos motivos que não quero mencionar, autorizei uma edição expurgada, para introduzir esse livro na Inglaterra, na parte contra a qual não houvesse objeções. Mas Lawrence queria uma edição bem impressa, sem as falhas tipográficas da edição original, e a um preço ao alcance de todos. Queria penetrar no povo. Trabalhando de acordo com os seus desejos, promovo agora a presente edição, que deve ser considerada a forma definitiva de sua terceira versão, escoimada dos defeitos da primeira e sem corte ou atenuação nenhuma. Suponho que Lawrence aprovaria de coração a saída desta bela edição a preço popular; e, no caso de a tentativa ser bem sucedida, editaremos também a segunda e, se possível, ainda a terceira versão da sua obra – a que lhe custou o último esforço.”

A versão que foi editada no Brasil deve ser a terceira, embora isso não seja dito explicitamente. A edição que eu tenho é uma tradução de Rodrigo Richter feita para a Editora Civilização Brasileira, que diz que o copyright é de 1972, mas com toda a certeza havia sido publicada antes, nos anos 60. Essa edição trouxe a tal carta aberta de Frieda. Parece mesmo que é a terceira versão, pela comparada rápida que dei com o texto original no precioso site www.bibliomania.com. Devem também ser da terceira versão as demais edições que saíram no Brasil. Há disponível hoje (2009) uma edição da Best Bolso de 2007, com a tradução de Rodrigo Richter; há também uma edição de 2006 da Martin Claret.

Que me desculpe e casque fora deste site quem não gostar de texto de mais de 20 linhas, mas toda essa história é fascinante demais para ser muito resumida.

         Eles não comentam, eles experimentam

A diretora Pascale Ferran, então, escolheu como base do roteiro que escreveu em colaboração com Roger Bohbot a segunda versão do romance, e não a terceira, a que “custou a Lawrence o último esforço”. A própria Pascale Ferran escreveu um texto, reproduzido no site www.unifrance.org, explicando por que fez essa opção. Ali ela fala das diferenças entre uma versão e outra; não sei de onde ela tirou as informações, mas seguramente deve ter pesquisado a coisa a fundo. É fascinante: “A existência dessas três versões não tem nada de surpreendente em si mesma; é o método de Lawrence em escrevê-las que são uma exceção na história da literatura. Entre cada versão, Lawrence deixava repousar o manuscrito por vários meses, e passava a escrever outras coisas. Quando retomava seu projeto, ele não partia do manuscrito precedente para fazer modificações, e sim reescrevia integralmente uma segunda versão. Depois, mais tarde, uma terceira.”

Segundo a diretora, a trama e as situações básicas são comuns às três versões, mas elas não são estritamente similares, nem os diálogos são os mesmos. E os próprios personagens centrais do romance – Lady Chatterley e seu marido Sir Clifford, o guarda-caça que vira amante dela e a Sra. Bolton, a enfermeira que cuida de Clifford – “flutuam muito de uma versão para outra”. Até o nome do amante varia; é Mellors numa, e Parkin noutra.

Pascale Ferran acha que a terceira versão é muito palavrosa e que, ao menos nesse ponto, o livro ficou envelhecido. “Como se Lawrence, diante do caráter eminentemente subversivo de seu tema e da censura que ele antecipava, se tivesse sentido obrigado a teorizar, pela voz de seus personagens, a tese de seu romance: o amor é mais forte que todas as barreiras sociais.”

E então ela leu a segunda versão, que foi editada na França pela Gallimard com o título de Lady Chatterley et l’homme des bois (o homem do bosque). A segunda versão pareceu a ela mais simples, mais direta no trato de seu tema, menos atormentada. Parkin, o guarda-caça, aqui é um homem simples, do povo, das classes trabalhadoras, que deveria ter sido mineiro (a região é de mineração, e Sir Clifford é o dono de uma mina), que escolheu trabalhar no campo, ser guarda-caça, para escapar da vida em grupo, em sociedade. Na terceira versão, o guarda-caça Mellors é um ex-oficial do exército na Índia que escolhe uma vida de ermitão. “Mas sua cultura e suas origens tornam menos escandalosa sua relação com Lady Chatterley. De uma certa maneira, intelectualmente, eles são quase do mesmo mundo, o que explica que eles podem comentar juntos o que se passa entre eles. Em Lady Chatterley et l’homme des bois, eles não comentam, eles experimentam.”

A frase é sensacional: eles não comentam, eles experimentam. E a diretora conseguiu passar perfeitamente isso no seu filme.

         Emmanuelle Chatterley

Bem. Ninguém lê um texto deste tamanho, mas dane-se. Ainda quero registrar que, antes deste filme de 2006, houve pelo menos quatro outras versões cinematográficas baseadas na obra de D.H.Lawrence – fora dois filmes que inventaram uma filha de Lady Chatterley, e fora também um filme específico que tem como pano de fundo o julgamento de obscenidade da publicação da versão integral, a terceira, pela Penguin Books, em 1960.

A primeira versão para o cinema foi feita na França, em 1955, L’Amant de Lady Chatterley, dirigida por Marc Allégret; Lady Chatterley era interpretada pela extraordinária Danielle Darrieux, a maior atriz francesa dos anos 40 e início dos 50. Houve em 1989 uma versão italiana, La Storia de Lady Chatterlay, e em 1993 Ken Russell, que já havia feito um filme com base em D.H.Lawrence, Mulheres Apaixonadas/Women in Love, de 1969, fez uma versão do romance para a TV.

A versão que ficou mais conhecida – antes deste filme aqui de 2006 – foi a de 1981, Lady Chatterley’s Lover, uma co-produção inglesa-francesa-alemã, dirigida pelo francês Just Jaeckin e estrelada pela holandesa Sylvia Kristel. Eles mesmos, Just Jaeckin e Sylvia Kristel, os inventores de Emmanuelle, o pornô de 1974, que hoje parece muito soft, mas na época era um pornô hard, pornografia pura e simples, que deu origem a uma série de pornôs com a marca Emmanuelle que continuam em cartaz até hoje nas TVs a cabo, madrugada adentro. Sobre esse filme, Leonard Maltin disse: “Monótona, barata versão do clássico de D.H. Lawrence. Kristel é linda, mas não consegue atuar.”

         Às claras – sem ser pornô

Muito bem. E o que fez a diretora francesa Pascale Ferran do “livro mais sujo da literatura inglesa”, no annus domini de 2006, muito depois de toda a explicitude de que até o cinemão americano abusou com as Sharon Stone, os instintos básicos e fatais, os Joe Eszterhas, os filmes que abusam da pornografia fingindo que não estão abusando de coisa alguma (e que eu chamo aqui de QuasePornô)?

Pascale Ferran fez, voltando ao começo e concluindo, um filme delicado, terno, suave.

As cenas de sexo – e são longas, e várias (cinco, contabilizou o Merten) – são claras, como permite a moralidade do anos 2000. São sensuais, extremamente sensuais, e às claras, às abertas, às escancaras. Mas não são apelativas, não são pornográficas, não são Just Jaeckin, não são Joe Eszterhas. Nada disso. São belas, belíssimas.

D.H.Lawrence, que namorou o socialismo numa época em que quem não fizesse isso seria louco, que condenava o abismo entre os milionários e os miseráveis, que pedia um novo tipo de relação entre homens e mulheres, que abominava a sociedade reprimida e hipócrita que a era vitoriana havia legado a seu país, defendeu uma reaproximação das pessoas com a natureza, com as coisas mais naturais. Certamente aplaudiria de pé a seqüência em que Constance e Parkin riem e brincam como crianças, nus feito vieram ao mundo, sob a chuva forte, em meio às árvores e às folhagens e ao barro. Certamente aplaudiria de pé este filme extraordinário.

Lady Chatterley

De Pascale Ferran, França-Bélgica-Inglaterra, 2006.

Com Marina Hands, Jean-Louis Coullo’ch, Hippolyte Girardot, Hélène Alexandridis, Hélène Fillièrres,

Roteiro Roger Bohbot e Pascale Ferran

Baseado no romance de D.H.Lawrence

Fotografia Julien Hirsch

Música Béatrice Thiriet

Produção Maïa Films. Estreou na França 1/11/2006, em São Paulo 23/11/2007.

Cor, 158 min (segundo o site Unifrance); teve versão de 220 minutos para a TV (segundo o iMDB)

***1/2

10 Comentários para “Lady Chatterley”

  1. Eu li até o fim e ainda gostaria de saber mais. Acabei de ler o livro pela bestbolso, e embora tenha adorado a leitura, fiquei decepcionado com os últimos capítulos, em que o escritor abandona a história para fazer discurso. Pelos comentários da diretora do filme, a segunda versão deve ser bem melhor. E até mais efetiva como crítica, se o casal de amantes for massacrado pela sociedade, o que não acontece na versão que li.

  2. Li o livro pela edição da editora Abril de 1972, li duas vezes e considero uma obra. Esta equivocado e não entendeu o livro quem diz que o “Escritor abandonou a história nos últimos capítulos” pois o epílogo é muito bom.
    Vai na contra mãe de livros como Madame Bovary e Vermelhoe o Negro onde tudo termina mal, em Amante de Lady Chatterley o autor soube conduzir muito bem a obra. Recomendo a leitura a todos,

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