Foi Apenas um Sonho / Revolutionary Road


4.0 out of 5.0 stars

 Anotação em 2009: O filme que reuniu Leonardo DiCaprio e Kate Winslet, dois dos melhores atores de sua geração e possivelmente de todo o cinema, 11 anos depois de Titanic, é uma obra-prima. É também um destes filmes que são um soco na cara da gente, um chute no estômago.

É impossível falar deste Foi Apenas um Sonho/Revolutionary Road sem lembrar que o casal de atores esteve junto antes em Titanic, porque o filme de James Cameron é um marco, um fenômeno mundial, uma coisa ciclópica, titânica, com perdão pelo trocadalho. Titanic foi (até Avatar) o filme de maior bilheteria da história; segundo o site Box Office Mojo, ele rendeu, em todo o mundo, US$ 1,842 bilhão ; um grande fosso o separava do segundo colocado, O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei, que faturou US$ 1,119 bilhão. (A diferença entre Titanic e o segundo colocado, de US$ 723 milhões de dólares, seria suficiente, digamos, para fazer uns 2.400 filmes como O Cheiro do Ralo, que custou R$ 600 mil.)

Nos 11 anos entre Titanic e Foi Apenas um Sonho, Leonardo DiCaprio e Kate Winslet construíram carreiras sólidas, belíssimas. Cada um deles fez um punhado de filmes importantes, de grande qualidade, ao lado de ótimos diretores. Ele trabalhou com Martin Scorsese em três filmes (Gangues de Nova York, O Aviador, Os Infiltrados), com Steven Spielberg (Agarre-me Se Puder/Catch me if you can), com Woody Allen (Celebridades), com Ridley Scott (Rede de Mentiras/Body of Lies). Foi indicado três vezes ao Oscar, teve no total 20 prêmios e 46 indicações em festivais. Nenhum ator de língua inglesa poderia querer mais.

Ele é um dos maiores astros de seu tempo. Ela é uma das maiores atrizes em atuação – não chega a ser tão estrela quanto ele pelo próprio tipo de personalidade, mais contida, mais inglesa, pelas escolhas de papéis bons, importantes, mas em geral em filmes mais sérios, mais densos do que os que vão parar no topo das bilheterias. Fez dramas pesados, ótimos, como Iris, A Vida de David Gale, Pecados Íntimos, O Leitor; fez filmes avançados, para poucas platéias (Fogo Sagrado/Holly Smoke, Contos Proibidos do Marquês de Sade/Quills, Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças/Eternal Sunshine of the Spotless Mind), e também aventuras românticas (Em Busca da Terra do Nunca/Finding Neverland, O Amor não Tira Férias/The Holiday). Ganhou um Oscar e mais 37 prêmios ao longo da carreira, mais 59 indicações em festivais. Nenhuma atriz de língua inglesa poderia querer mais.

DiCaprio tinha apenas 34 anos quando se reuniu novamente com Kate para este filme aqui; ela estava com 33. Já com filmografias de babar, têm a vida toda pela frente.

         Um anti-Titanic, sem fogos de artifício

arevolution2O reencontro dos dois acontece em um filme que não poderia ser mais diferente do anterior. Em Titanic, tudo é épico, grandioso, espetacular, panorâmico. Foi Apenas um Sonho é intimista, voltado para dentro, quase sempre em tom menor. Apesar de ter como tema uma das grandes tragédias da humanidade, Titanic é vibrante, para cima. Foi Apenas um Sonho é duro, amargo, pesado, desesperançado, triste, profundamente triste.  

Frank e April se conhecem numa festa; o encontro é mostrado na abertura do filme, em seqüência que não dura três minutos. Corta, e estamos uns sete anos depois; é meados dos anos 50, e o casamento dos dois está uma merda. São jovens, belos, saudáveis, moram numa bela, ampla casa de subúrbio; não se precisa exatamente o local em que vivem, mas é Connecticut, lugar calmo, arborizado, só de casas, a confortável distância de trem de Nova York, a capital do mundo. Têm dois filhos sãos e bonitos. Têm as coisas básicas de uma forma mais confortável do que, sei lá, 98% da população do planeta – e são profundamente infelizes. E vão ficar muito, mas muito, mas muito mais infelizes ainda a partir dali. 

Se não tem problema, nóis inventa? É, pode ser essa a explicação mais chã, mais preguiçosa. Na verdade, Frank e April concentram em suas vidas toda a amargura, todas as frustrações, todas as desilusões que boa parte de nós – gente que não teve privações das coisas básicas, freqüentou escola, tem emprego, casa, comida, roupa lavada, todo o  conforto material fundamental – já experimentou em um ou outro momento da vida. Amargura, frustração, desilusão, inadequação com o mundo em que vive: é esse material que forma as crises todas, a da adolescência, a do início da profissão, a dos 30 anos, a dos 40 anos, a dos 50 anos. A imensa maioria das pessoas sacode a poeira, dá a volta nem que não seja muito por cima, vai em frente, segue, toca a vida.

Frank e April conseguem concentrar o suco de tudo o que há de desesperança na face da terra.

Tiveram expectativas muito grandes, tinham-se em muito alta conta; acharam que teriam um futuro brilhante, róseo, ideal; achavam – em suma – que seriam especiais, diferentes de todo o mundo. Não estavam preparados para a realidade, o emprego que até paga bem mas não satisfaz, não dá realização, o desencanto de não ter o sucesso com que se sonhava numa atividade artística, o dia-a-dia sem grandes encantos, as pequenas misérias do cotidiano, os pequenos compromissos sociais, os vizinhos do subúrbio de gramados bem cuidados e vidinhas caretas e conversas sem interesse ou profundidade, o mundinho acanhado, sem desafios e cheio de convenções, a convivência nem sempre encantadora com os filhos.

         Infelizes da maneira mais trágica que pode haver

Quando eu tinha uns 20 e muitos anos, e estava no meu segundo casamento, uma relação tão profundamente apaixonada quanto tumultuada, tempestuosa, intranqüila, me acostumei com a idéia de que há casais em que um torna o outro sempre melhor, formam uma bola de neve morro acima, um círculo virtuoso, enquanto outros são o inverso. Frank e April são a representação mais trágica do casal que forma uma bola de neve morro abaixo, o círculo viciado do princípio ao fim.

Ainda acho que aquela noção que tive dos casais, quando era jovem como Frank e April, funciona, é bem verdadeira. Alguns casais se somam, se melhoram; mas há casais em que um seca o outro, apequena o outro. É uma imagem talvez pobre, mas me parece correta. A imagem mais bela de todas sobre casais é aquela enxuta, exata, definitiva, com que Tolstói abre seu Ana Karênina, provavelmente o melhor lead da literatura mundial:

“Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira.”

Frank e April são infelizes da maneira mais trágica que pode haver.

arevolution3Leonardo DiCaprio e Kate Winslet estão esplêndidos, brilhantes, extraordinários como esse casal que tem tudo, menos a capacidade de ser feliz. Dão um show, são um brilho, sob a direção competente de Sam Mendes – o marido de Kate na vida real. Formado e amadurecido no teatro, Sam Mendes já mostrou, em sua filmografia curtíssima mas excelente, que é um dos grandes diretores de atores em atuação.

Como os personagens criados pelo escritor Richard Yates no livro publicado em 1961, Sam Mendes não é chegado a uma história feliz. Sua estréia no cinema foi em Beleza Americana/American Beauty, de 1999, em que os personagens de Kevin Spacey e Annette Benning se odeiam e se machucam muito pior que gato e rato; e depois fez Estrada para Perdição/Road to Perdition, de 2002, com Tom Hanks e Paul Newman, um filme lúgubre, sombrio, sobre o submundo de um matador a serviço de um gângster.

Desta vez, seu filme foi indicado para três Oscars (ator coadjuvante para Michael Shannon, direção de arte e figurinos), venceu seis outros prêmios e teve 20 indicações em festivais. Kate Winslet ganhou os prêmios de melhor atriz no Bafta, o Oscar britânico, e o Globo de Ouro por drama. No mesmo ano, ganhou o Oscar, mas não por este filme aqui, e sim por O Leitor/The Reader

         Coincidências, semelhanças

Neste Foi Apenas um Sonho, Sam Mendes volta a trabalhar com o compositor Thomas Newman, que tinha escrito a belíssima trilha sonora de Beleza Americana. Por uma interessante coincidência, Thomas Newman escreveu também a trilha de outro filme triste, pesado, desencantado sobre a vida de jovens casais de classe média americanos em meados do século XX, Pecados Íntimos/Little Children, também com Kate Winslet. A trilha deste filme aqui é do mesmo nível da que Thomas Newman compôs para aqueles dois outros dramas familiares; aqui, são melodias suaves, tristes, soladas ao piano, com, ao fundo, ora uma orquestra de cordas, ora um som metálico, dolorido, de percussão e sintetizadores.

Pela ambientação no subúrbio bem cuidado, pelo tom triste e desesperançado, pela época em que se passa a ação, cheia de preconceitos, regras rígidas, caretice, hipocrisia, o filme me fez lembrar Tudo o que o Céu Permite/All that Heaven Allows, de 1955, a pérola do mestre do dramalhão Douglas Sirk, e também Longe do Paraíso/Far From Heaven, de 2002, em que Todd Haynes faz uma homenagem ao mestre Sirk e nos mostra um casal que rola montanha abaixo. 

Me lembrei também de outra pérola de outro mestre, Um Estranho no Ninho/One Flew Over the Cuckoo’s Nest, de 1975, de Milos Forman. Tão diferentes em quase tudo, os dois filmes têm em comum o retrato de uma sociedade repressora, em que a conformidade é a lei máxima e qualquer gesto de rebeldia deve ser punido, e a noção de que, naquele mundo, o louco, o mentalmente insano, é quem é capaz de enxergar melhor o que ocorre à sua volta.

Tristes histórias, tristes vidas, belos filmes, todos eles. Este aqui é, já que sou dado a uma repetição, uma obra-prima.

Foi Apenas um Sonho/Revolutionary Road

De Sam Mendes, EUA, 2008

Com Leonardo DiCaprio, Kate Winslet, Kathy Bates, Michael Shannon, Ryan Simpkins, David Harbour

Roteiro Justin Haythe

Baseado no livro de Richard Yates

Música Thomas Newman

Produção DreamWorks, BBC Films. Estreou em SP 30/1/2009.

Cor, 119 min.

****

Título em Portugal: Revolutionary Road. Título na França: Les Noces Rebelles

11 Comentários para “Foi Apenas um Sonho / Revolutionary Road”

  1. Uma das coisas que mais me chamaram a atenção nesse excelente filme foi a ironia escancarada do título. Não acontece nada de revolucionário para o casal: nem na rua onde moram, nem em suas vidas.

  2. Nao precisava copiar o “provavelmente o melhor lead da literatura mundial” da contracapa do livro…

  3. Comecei a ver mas não consegui suportar a miséria das personagens.
    Um dia talvez tenha coragem e consiga aguentar, mas é difícil, é muita infelicidade.
    Como tenho o DVD é possível.
    PS – Acho um disparate preferir o “Titanic” a “Revolutionary Road”, mas são gostos, nada a fazer.

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