3.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Êxtase, feito em 1933, entrou para a história por causa do escândalo: foi o primeiro filme exibido no circuito comercial normal a mostrar um nu frontal. Um precursor, assim, dos filmes que muito mais tarde mostrariam cenas de sexo explícito, ou quase.
Mas, mesmo abstraindo esse fato, ainda hoje, 76 anos e tanta explicitude depois, o filme ainda impressiona pela força e pela beleza das imagens. Não é pouca coisa.
Não que se possa vê-lo como uma narrativa normal, como, por exemplo, podemos ver hoje, sem qualquer estranhamento após a passagem de sete décadas, Aconteceu Naquela Noite, que Frank Capra fez apenas um ano depois, 1934, ou Luzes da Cidade, de Chaplin, de 1931, ou Ricos e Estranhos, de Hitchcock, também de 1931. Não, de forma alguma. Êxtase não tem uma narrativa normal, padrão – e vê-lo hoje provoca, sim, muito estranhamento.
Embora o cinema tivesse aprendido a falar em 1927, e o filme seja já do período sonoro, tem pouquíssimos diálogos – raríssimos. O diretor optou por uma narrativa diferente, diferenciada, vanguardista, longe do realismo. Toda a ação é acompanhada por música; é de fato como se o diretor tivesse querido criar um poema sinfônico. No início da produção, o título do filme era Symphonie der Liebe, Sinfonia do Amor – depois é que se optou por Ekstase.
Então, o fato é que é preciso um certo distanciamento, ou bastante distanciamento, para ver Êxtase hoje. É preciso entender que estamos vendo um filme que em 1933 era vanguardista – e não é muito fácil ter essa perspectiva de entender que é algo que se pretendia muito avançado, futurista, num passado já um pouco distante.
A trama é um fiapinho mínimo, uma história de nada: jovem, bela e rica mulher, Eva, casa-se com homem bem mais velho; não há paixão entre eles, não há sexo, e por isso Eva retorna à casa do pai; perto dali vai conhecer outro homem e se apaixonar por ele.
A história não importa tanto. Importam as imagens, e a música que as acompanha, realça, sublinha. Reflexos e sombras – tudo é ponteado por reflexos e sombras. Planos gerais alternam-se com grandes close-ups. Há várias seqüências em que há uma montagem rápida de quadros estáticos, sem movimento de câmara: paisagens, detalhes de coisas da natureza, plantas, folhas, animais, estátuas, muitas pequenas estatuetas, óculos deixados sobre uma mesa, um colar. O visual é tremendamente impressionante, é de fato muito à frente de seu tempo.
Só não é mais impressionante do que a forma com que o diretor aborda o sexo, o desejo sexual, no ano da graça de 1933. Não há nada propriamente explícito, é claro. A própria seqüência famosérrima, histórica, em que Eva aparece nua seria hoje incapaz de ofender a velhinha mais beata da paróquia. Eva monta em seu cavalo, galopa até um lago, nada nua; sai do lago quando seu cavalo se distancia dela, e então durante alguns minutos anda nua pelo campo; não chegamos a ver pelos pubianos; vemos os seios dela, mas de longe; as únicas tomadas em que ela aparece mais próxima com os seios à mostra são bem rápidas.
A questão não é a explicitude. Explícito, assim, tipo Império dos Sentidos, ou Instinto Selvagem, que é um pornô pouco disfarçado, ou como Lady Chatterley da francesa Pascale Ferran, que é claro e às claras mas está longe do pornô, disso não há absolutamente nada, neste Êxtase.
A questão é a intensidade – ainda que implícita. Há seqüências intensamente sensuais, provavelmente mais intensamente sensuais que muitos filmes abertamente pornográficos. A própria seqüência histórica do banho no lago é assim: enquanto Eva está tomando banho nua no lago, sua égua se sente atraída por um cavalo que está também no campo; os dois animais se aproximam, e a câmara vai fazer grandes closes deles, as veias saltadas de excitação. E são magníficas as caras e bocas que Eva faz diante da aproximação do homem que em seu socorro leva-lhe a roupa que ela havia deixado sobre sua égua – de repúdio, repulsa, afasta-te, Satanás, misturadas às de venha, venha, venha.
Ainda não será desta vez. Será um pouco mais tarde – e a seqüência em que Eva reencontra o homem, na casa dele, é extraordinária. Nenhuma explicitude, de forma alguma – nenhuma nudez, inclusive. Mas são magníficas, colossais, a força, a intensidade que o diretor consegue imprimir às tomadas, super-big-close-ups do rosto de Eva. Há dois ou três closes do pescoço e do colo dela – arfante, ofegante. Vem o beijo, aproximam-se, estão deitados. Cai ao chão o colar de pérolas – o casal está vestido, comportadíssimo, mas é uma das mais gloriosas cenas de trepada da história do cinema.
Um monstro mais horrendo
1933. “Enquanto King Kong, o grande macaco apaixonado, cai do topo do Empire States Building (“é a Bela que matou a Fera”), um outro monstro, muito mais medonho, porque é própria encarnação do ódio, chega ao poder na Alemanha: Hitler é o chanceler do Reich. (…) Vários países da Europa usam camisas escuras. Dollfuss assume o poder na Áustria, Salazar introduz o Estado Novo em Portugal, Primo de Rivera funda a Falange na Espanha.”
O texto acima, admirável, babável (gostaria um dia de escrever assim), é do livro Le Siècle du Cinema, de Vincent Pinel.
A primeira mulher a aparecer nua em um filme
Chamava-se Hedy Kiesler, a atriz que faz essa Eva, a grande precursora das cenas de sexo do cinema. Hedy Kiesler era o nome artístico; chamava-se mesmo Hedwig Eva Maria Kiesler. Estava na flor dos 19 aninhos de idade – nasceu em 1913, em Viena, então capital do Império Áustro-Húngaro, se não me falham a memória e os parquíssimos conhecimentos de História. Tinha largado a escola para começar a carreira de atriz em 1930, e, antes de Êxtase, tinha feito filmes checos e alemães. Neste filme aqui, demonstra aquela capacidade rara que algumas atrizes têm de mostrar várias caras diferentes. Tem pelo menos umas dez caras, ao longo do filme.
Conta-se que seu primeiro marido (foram seis), um industrial milionário do ramo de munições, Fritz Mandl (deve ter fornecido munições para o regime nazista, o filho da puta), tentou comprar, para destruir, todas as cópias do filme.
Hedwig Eva Maria Kiesler fugiu dele. Iria virar Hedy Lamarr, a partir de 1938, ano de seu primeiro filme em Hollywood, Algiers, ao lado de outro produto importado da Europa, Charles Boyer. O puritanismo e a censura americanos cortaram cenas de Êxtase para a exibição nos cinemas, mas o sucesso do filme na Europa tinha sido impressionante demais para que os grandes estúdios não quisessem comprar o passe da moça, como compravam de todo o mundo. “Foi pela sua beleza morena que ela ganhou o contrato com a MGM, não por seu talento como atriz”, diz o livro Actors & Actresses. Outro livro, Leading Ladies, conta uma boa história: Louis B. Mayer, o chefão da MGM, encontrou-se com ela em Londres e ofereceu-lhe um contrato de seis meses por US$ 125 por semana. A atriz não assinou, mas mexeu pauzinhos para fazer a viagem Londres-Nova York ao lado de Mayer; quando chegou a Nova York, assinou um contrato de seis anos começando com US$ 500 por semana. Garota esperta.
Não teve, no entanto, carreira brilhante, nem em termos artísticos nem comerciais, como outras estrelas importados da Europa pelo ouro da Califórnia – Greta Garbo, Greer Garson, Marlene Dietrich, Ingrid Bergman. “Ela foi sempre escolhida para papéis sensuais e provocativos, e seu desenvolvimento como atriz foi severamente restringido pela reputação que tinha por causa das cenas de nudez de Êxtase”, diz o livro Actors & Actresses. “Paradoxalmente, sua pura beleza tornou-se um impedimento para que ela chegasse a ser considerada para papéis mais difíceis.”
É o que diz esse livro aí. Já o outro, Leading Ladies, diz que ela recusou os papéis principais de Laura e À Meia Luz – no primeiro brilhou Gene Tierney, no segundo, Ingrid Bergman. Se isso for verdade, a moça, morena bonita, tinha o cérebro das louras das piadas.
Seu maior sucesso em Hollywood foi Sansão e Dalila, um dos épicos bíblicos de Cecil B. DeMille, feito em 1949; Sansão era Victor Mature, tadinho, danado de canastrão. Hedy Lamarr acabou ficando mais conhecida pelos divórcios e pelas fofocas do que como atriz, segundo se diz em Leading Ladies; foi presa duas vezes acusada de roubar em lojas (como aconteceria décadas mais tarde com Winona Ryder, aquela gracinha); em 1966, processou os editores de sua autobiografia Ecstasy and Me, alegando que os ghostwriters acrescentaram detalhes íntimos que ela não havia autorizado; depois processaria Mel Brooks, por ele ter criado, em Banzé no Oeste, um personagem chamado Hedley Lamarr, e iria à Justiça também contra uma empresa de computadores, por ter usado fotos suas sem a devida autorização. Morreria em Orlando, Flórida, em 2000, aos 87 anos.
Metáforas, pudicícias, e a História anda
Êxtase foi uma co-produção checo-austríaca. O diretor Gustav Machatý nasceu em 1901, em Praga, na época uma cidade do Império Áustro-Húngaro, mais tarde capital da Checoslováquia, hoje capital da República Checa. Em 1929, já havia feito um filme tido como cheio de erotismo, Erotikon, que em inglês se chamou Seduction. Ah, tá – então o cara era mesmo useiro e vezeiro. Os poucos diálogos de Ekstase foram gravados em três línguas diferentes, para melhor distribuição internacional – em checo, francês e alemão.
Machatý “multiplica em Êxtase as metáforas simbólicas: amores de puro-sangues nos prados, árvores inchadas de seiva fazendo eco ao despertar do desejo na mulher, picareta furando o solo com sugestiva insistência, ‘sinfonia das máquinas’ respondendo ao coito humano, etc”, analisa o crítico francês Claude Beylie em seu livro As Obras-Primas do Cinema. “Tudo isso sem dúvida envelheceu; não obstante, esses extravasamentos líricos fecundaram duradouramente uma arte que, no fim das contas, permaneceu demasiado pudibunda.”
Putaqueopariu, pudibunda é ótimo.
Por falar em pudibunda (*), é fascinante lembrar que o Código Hays, o código de autocensura, havia sido aprovado em março de 1930; em março de 1933, o mesmo ano em que Êxtase estava sendo lançado na Europa, os estúdios de Hollywood tiveram uma nova reunião e decidiram aplicar com maior rigidez as normas já estabelecidas. E, de fato, haveria um recrudescimento da autocensura a partir daquele ano.
Há muitas décadas tenho para mim que a História, em muitos aspectos, age como um pêndulo – ora vai para lá, ora volta cá, ora vai muito para lá, ora volta muito para cá, depois de um Covas na Prefeitura de São Paulo vem um Jânio, e depois uma Erundina, e depois um Maluf, e depois uma Marta, e depois de um Bush vem um Obama. Algumas coisas, no entanto, apesar do pêndulo, apesar dos vacilos, vão avançando, firme e solenemente. Em 1939 o Código Hays teve que agüentar um damn na última frase de … E o Vento Levou; era um palavrãozinho bem tolinho, bem chinfrim, mas era proibido, e no entanto passou. Em 1959, Otto Preminger botou uma calcinha em primeiro plano em Anatomia de um Crime, coisa absolutamente impensável na época. Só para ficar nos anos com final 9, em 1989, numa comédia romântica, Meg Ryan fez todas as caras, bocas e ruídos de um orgasmo, no meio de uma lanchonete, em Harry e Sally, Feitos um para o Outro, para provar que os machões são uns babacas. Hoje, damn é palavra doce, num mundo em que a palavra fuck é pronunciada dez vezes por segundo mesmo nos filmes que passam na Sessão da Tarde.
O avanço acaba incluindo coisas ruins, como as apelações à la os Instinto Fatal, o 1 e o 2, os filmes que chamo de QuasePornô. (Aliás, vou colocar Êxtase na tag de QuasePornô não pelo que ele mostra, é claro, mas pelo que ela avançava rumo ao que depois seria feito no cinema.) Mas a verdade é que o mundo fica melhor sem censura – pena que um terço do mundo, pelo menos, não saiba disso.
(*) “Pudibundo (adj): pudico, envergonhado.” Maputaqueopariu!
Êxtase/Ekstase
De Gustav Machatý, Checoslováquia-Áustria, 1933.
Com Hedy Kiesler (mais tarde Hedy Lamarr), Aribert Mog, Zvonimir Rogoz
Roteiro Frantisek Horký, Gustav Machatyú, Jacques A. Koerpel
Baseado no livro de Robert Horky
Fotografia Hans Androschin e Jan Stallich
Música Giuseppe Becce
Produção Elektafilm.
P&B, sabe-se lá que duração (o iMDB fala em versões de 82, 87, 95 min)
***
Ekstase ( 1933 ), de Gustav Machatý, é um clássico do cinema erótico e deve toda a sua beleza e permanência na História à nudez de Hedy Lamarr ( então,Hedy Kiesler ). Ela realmente foi uma das mais belas atrizes da Sétima Arte e, desfilando nua em pêlo no filme, causou comoção mundial e abriu caminho para que outras divas se despissem nas telas. O problema é qua censura sempre reprimiu o sexo e filmes como “Ekstase” tornaram-se obras malditas, vistas apenas em cópias reduzidas. Hoje ele está disponível na íntegra e podemos imaginar o impacto causado nos primórdios do cinema falado. Hedy Lamarr está simplesmente divina!
( Adriano Miranda-Franca-SP )
Vi a capinha lá em cima… o filme foi lançado em DVD pela Lume? É seu estilo de capa.
Acabo de assistir Extase.
Eu o tenho e, qualquer leitor que o deseje o copiarei e o enviarei com o maior prazer.
Para isto basta o editor não excluir meu email do rodapé, conforme reza a lei e a ordem deste site que, juro, não entendo tal razão para isto.
É Extase um filme forte para a época. Hoje ele passaria livre em qualquer cinema e muito mais vemos nas novelas da Globo, mesmo as da parte vespertina.
Éle é um filme limpo, de uma boa pasticidade, com uma boa fotografia e pode até ser que o editor tenha razão quando lhe põe tanto elogio. Claro que isso, segundo imagino sua ideia, para a época, claro.
Mas visto hoje é um filme morto, sem qualidade alguma, mas que interessa muito mais por quem foi quem fez o papel feminino.
Lamar era muito linda. E não podemos negar este fato (basta ver Sansão e Dalila), pois ali ela dá um show de beleza, sensualidade e até põe na pelicula de Cecil B DeMille algum talento.
Porém o filme de Gustav pode ter impressionado no seu tempo.
Ele tem algumas insinuações do crivo erótico, fotografias estranhas que, se não muito bem prestadas a atenção nada dizem.
Porém, se imaginadas pelo lado erótico elas têm sentidos sim.
O diretor tentou fazer uma fita diferente, despadronizado do cinema linear, do cinema natural e não vou aqui afirmar que ele se deu tão bem assim, a naaão ser pelas propagandas que devem ter se alastrado à época sobre a Lamar.
E aquele marido de Lamar que fez as asneiras que fez com as copias do filme, era um perfeito idiota, um portentoso criminoso que, ele sim era quem deveria ir preso e até exaurido da face da terra.
Indiretamente o panaca levou muitos irmãos nossos para debaixo da terra. E isso sim deveria ser mais observado que esta bobagem que é o filme de sua esposa.
Ademais Extase vale como curiosidade afim de se conhecer o cinema do passado, o cinema de praças outras senão o americano, frances, italiano ou mexicano.
jurandir@lima@bol.com.br
Belíssimo filme, mostra que para ser sensual não precisa ser pornográfico, apenas dotado de sensibilidade e simplicidade e isto Êxtase soube como colocar.
À frente de seu tempo, o filme é a relação homem-mulher-natureza; instinto e paixão; delírio e o êxtase que nos atrai e nos sublime. Tudo isso sem diálogos, apenas com olhares, toques e uma respiração ofegante que nos leva a sentir o mesmo prazer de ver um filme interessantíssimo com uma atriz maravilhosamente bela.