Beije-me, Idiota / Kiss Me, Stupid


3.5 out of 5.0 stars

Anotação em 2009: Beije-me, Idiota, de 1964, parte de uma premissa polêmica, perigosa, para dizer o mínimo: dona-de-casa gostaria de ter seu dia de puta, e vice-versa. Nelson Rodrigues talvez assinasse embaixo – ele detestava unanimidade e gostava mesmo era de uma polêmica. O vienense Billy Wilder tem a ver com essa faceta do escritor carioca.

Quando escrevi sobre Avanti! Amantes à Italiana, de 1972, disse que o filme tinha os elementos básicos do cinema de Wilder: um sarcasmo forte contra a moralidade burguesa, uma elegia à quebra das regras comportamentais dos caretas. Sobre A Incrível Suzana/The Major and the Minor, de 1942, sua estréia na direção, disse que o cinema de Billy Wilder é feito de pessoas que fingem ser o que não são: em A Incrível Suzana, o personagem de Ginger Rogers, uma mulher bem adulta, finge ser criança; em Quanto Mais Quente Melhor, os personagens de Tony Curtis e Jack Lemmon fingem ser mulheres; em Irma La Douce, o policial finge ser cafetão, que por sua vez finge ser um inglês milionário; em Testemunha de Acusação, o personagem de Marlene Dietrich finge… (Não tem sentido revelar o que ela finge.) Em Uma Loura por um Milhão/The Fortune Cookie, o personagem de Jack Lemmon finge estar paraplégico. Em Beije-me, Idiota, temos a dona-de-casa e a puta fingindo ser o que não são.

 As duas observações ainda me parecem corretas. Os personagens de Billy Wilder fingem ser o que não são, em filmes que foram, no passado, no mínimo provocativos – ou, para muitos, abertamente chocantes.

         O gordo, o magro e o cantor

abeije2A trama deste filme aqui é uma total delícia. A ação se passa em uma pequenina (e fictícia) cidadezinha entre Las Vegas e Los Angeles, que tem o sugestivo nome de Climax. Ali vivem Orville e Barney, uma espécie de O Gordo e o Magro (Wilder era absoluto fã de Laurel & Hardy), dois amigos que, nas horas vagas – e são muitas as horas vagas em Climax -, compõem canções pop, melodias fáceis de pegar, de assobiar, e letrinhas com rimas igualmente fáceis. Barney, o gordo, trabalha no posto de gasolina-oficina da cidade, e faz as letras; Orville, o magro, faz as melodias, e sobrevive das aulas de piano que dá em casa. Barney é solteiro e do tipo alegre, cuca fresca; Orville é casado com Zelda, uma gracinha de mulher e de pessoa – tão gracinha que Orville morre de ciúme de todo mundo que chega perto dela, do entregador de leite até seus alunos adolescentes.

Assim que a ação começa, o absolutamente inesperado acontece: por um grande acaso, um problema na estrada principal, e precisando de gasolina, entra na cidade, vindo de Vegas em direção a Hollywood, o famosíssimo Dino, cantor de canções pop fáceis de pegar e assobiar, muitas delas com um pezão na Itália natal de seus pais, e um mulherengo absoluto em período integral. O gordo Barney logo desenvolve o plano: mexe numa válvula do carrão de Dino, diz que precisa de um tempinho para consertar o bólido, e leva o astro para, enquanto isso, descansar na casa do parceiro Orville. O plano inclui ainda que Zelda vá passar uma noite na casa dos pais, enquanto Barney vai à única boate do lugar para contratar Polly, a Pistoleira, para se passar pela mulher de Orville; enquanto espera pelo conserto do carro, Dino poderá ouvir as canções da dupla, na companhia de uma “esposa” extremamente atraente e muito dada.

abeije1O ator que faz o magro Orville, Ray Walston, é fraquinho; o que  faz o gordo Barney, Cliff Osmond, é muito engraçado (ele trabalharia de novo com Wilder no filme seguinte do diretor, Uma Loura por um Milhão/The Fortune Cookie). Nenhum dos dois era astro, nem de longe. A atriz que faz Zelda, a mulher de Orville, competente e muito bonita, também nunca foi uma estrela: é Felicia Farr, não por coincidência a senhora Jack Lemmon, com quem foi casada de 1962 até a morte dele, em 2001; o casal era muito amigo de Wilder, e Lemmon trabalhou em diversos filmes do diretor.

 Não poderia haver papel mais perfeito para Dean Martin que o de Dino, o cantor famoso – mas que a rigor já havia sido mais famoso algum tempo antes. Dean Martin também tinha o apelido de Dino; era um ótimo cantor e ótimo ator, mas em 1964, época em que o filme foi feito, já estava um tanto na curva descendente da estrada, com o rock eclipsando os cantores de sua geração. Na verdade, o papel parece ter sido criado de encomenda para Dean Martin. Ele está mais do que perfeito. 

abeije4(Há uma ótima gozação ao próprio Dean Martin. um perfeito exemplo do humor de Wilder. Lá pelas muitas, Zelda-Felicia Farr (foto) diz para Dino que Orville deveria ter mandado a música para Elvis.

Ele: – Que Elvis?

Ela: – Imagino que você também nunca tenha ouvido falar nos Beatles.

Ele: – Claro que ouvi. Eu canto melhor que todos os três.

Ela: – São quatro.

Ele: – Você não sabe da notícia? Um deles deixou o cabelo na guitarra e morreu eletrocutado.

Ela: – Pode fazer piada, mas eles são jovens e famosos, e você… você está descendo a montanha.)

         Kim Novak, linda e ótima

Em todo o elenco, no entanto, a maior estrela, na época do filme, era mesmo Kim Novak, a mulher absolutamente deslumbrante que nos anos 50 Harry Cohn, então chefão da Columbia, havia escolhido para ser a nova grande estrela do estúdio, em substituição a Rita Hayworth, e para rivalizar com a sex-symbol da 20th Century Fox, Marilyn Monroe.

E, da mesma forma como acontece com Dean Martin como Dino, não poderia haver melhor Polly, a Pistoleira, do que Kim Novak.

 Não se costuma muito reconhecer Kim Novak como uma boa atriz. Quando se fala dela, mesmo para cinéfilos nascidos nos anos 40 e início dos 50, costuma-se lembrar da sua beleza, não de seu talento. Apesar disso, sua atuação dupla em Um Corpo Que Cai/Vertigo, para muita gente o melhor filme do mestre Hitchcock, é extraordinária. Fez dramas importantes ou no mínimo de sucesso, como Férias de Amor/Picnic, O Homem do Braço de Ouro, O Nono Mandamento/Strangers when we Meet e Servidão Humana/Of Human Bondage. E é uma comediante competente ao extremo neste Beije-me, Idiota.

 “O timing cômico de Novak é extraordinário em Kiss Me, Stupid, de Wilder. A um típico papel de Marilyn Monroe dos anos 50 ela adiciona uma auto-consciência mais forte e tocante do que Monroe poderia obter”, diz, talvez com algum exagero contra Marilyn, o livro The International Dictionary of Films and Filmakers – Actors & Actresses. Mas, comparação com Marilyn à parte, o fato é que a Polly, a Pistoleira de Kim Novak é uma delícia, uma bem balanceada mistura de inocência e safadeza, determinação e insegurança, graça e malícia, e uma grande nostalgia por uma vida que nunca tinha tido.  

E Dean Martin-Dino sentado no chão aos pés de Polly, a Pistoleira no papel de Zelda a dona-de-casa, bebendo vinho no sapato branco de salto alto dela, é hilariante – e é só mais uma das provocações de Billy Wilder, o provocador-mor.

         Moralismo, censura e fracasso

abeije5O filme foi um fracasso de bilheteria. Concorreu para isso, seguramente, o fato de ter sido estigmatizado pela Liga Católica de Decência com a classificação C, de condamned, condenado, a pior possível. Essa tal Legion of Decency havia sido fundada por um comitê de bispos católicos provavelmente insatisfeitos com o trabalho do Hays Office, a censura oficial dos produtores de cinema americanos, seguindo os preceitos do Código Hays, criado nos anos 30, e que funcionaria até 1966.  (Há mais informações sobre o Código Hays no Glossário.) A Liga Católica de Decência classificava os filmes entre o máximo de A1 e o mínimo de C, a nota dada a Beije-me, Idiota – era a primeira vez que um filme dos grandes estúdios levava a pior classificação desde Boneca de Carne/Baby Doll, de Elia Kazan, de 1956.

 A Liga não dava folga a Wilder: Irma La Douce levou B, Amor na Tarde/Love in the Afternoon, com os gloriosos e acima de qualquer suspeita Gary Cooper e Audrey Hepburn, tinha sido ameaçado com um C e acabou com um B. Mas o C acabou sendo um tiro de misericórdia em Beije-me, Idiota, segundo avalia o professor e crítico alemão Hellmuth Karasek no seu livro Billy Wilder – e o resto é loucura, misto de biografia e depoimentos pessoais do diretor. 

 Em sua resenha, Pauline Kael diz que o filme foi um fracasso de bilheteria, mas “não mais irritante que alguns dos sucessos (de Wilder)”. “No fundo”, diz ela, “é uma velha farsa de boulevard, mas foi geralmente rotulado de ‘grosseiro e obsceno’, ‘repelente’. Ela conta a história da condenação pela Liga Católica de Decência e informa que a United Artists, “nervosa com a reação do público, lançou-o sob o selo Lopert Pictures, uma subsidiária que em geral distribuía filmes estrangeiros”.

Assim como o biógrafo de Wilder, Pauline Kael também informa que o papel central, de Orville, o professor de piano casado com a gracinha de Zelda, deveria ter sido de Peter Sellers, mas ele teve um ataque cardíaco no começo das filmagens e foi substituído por Ray Walston, que, segundo a grande crítica, está “singularmente sem graça no papel”. (Billy Wilder, diz seu biógrafo, acabaria concordando com essa opinião dela.) Apesar de todo o seu veneno, Pauline Kael poupa exatamente Kim Novak: “Talvez por causa dos risinhos idiotas, Kim Novak está comovente em seu papel de prostituta sonhadora, tipo Marilyn Monroe. Suas roupas são tão justas que ela parece usá-las por debaixo da pele; parece exposta, humilhada. Seu desempenho mantém a unidade do filme”. 

É preciso lembrar sempre: o filme é de 1964. Os tempos estão mudando, Bob Dylan tinha avisado no seu LP do ano anterior – e, cacilda, estavam mesmo. O Hays Office, o código oficial de censura, liberou o filme, e foi por isso duramente criticado pela Igreja Católica, “um caso único na história”, como diz Karasek no seu livro sobre Billy Wilder.  

Vale a pena repetir trechos de críticas que Karasek transcreve no livro:

“Gigantesca piada suja”, disse a Life; “insignificância repulsiva, presunçosa”, disse a New Yorker; “sórdido”, “grosseiro”, disse o New York Daily News; nunca se mexeu num caldo tão sujo num filme classe A, disse o Hollywood Citizen News; é uma das mais longas obscenidades de mesa de bar já levadas às telas, disse a Time.

  Uma exceção: a revista Newsweek. Ela disse: “Se tivessem deixado o filme de Wilder em paz, ele teria permanecido o que era – uma condenação sábia e charmosa da imoralidade”.

 Aí o filme foi para o Festival de Veneza e ganhou o Leão de Ouro.

“Como os tempos mudam!”, diz o professor alemão Karasek. “Já em 1970 o filme recebia como classificação um brando PG” (parental guidance, o que significa liberado para todas as idades, com a sugestão de que menores devem estar acompanhados dos pais).

 Se o filme passar hoje numa sessão da tarde, as crianças talvez saiam da sala entediadas, achando que faltam tiros e sangue e sexo.

Beije-me, Idiota/Kiss me, Stupid

De Billy Wilder, EUA, 1964

Com Ray Walston, Cliff Osmond, Kim Novak, Dean Martin, Felicia Farr

Roteiro Billy Wilder e I.A.L. Diamond

Baseado na peça de Anna Bonacci

Produção The Mirisch Corporation, United Artists.

P&B, 125 min

R, ***1/2