Até a Vista, Querida / Murder, My Sweet

Nota: ★★★☆

Quando Murder, My Sweet, no Brasil Até a Vista, Querida, de 1943, já passa da metade de seus 95 minutos, o detetive particular Philip Marlowe vai à casa da bela jovem Ann Grayle, a filha de um milionário que ele havia conhecido dias antes. Está um lixo, um caco: sua roupa está toda desgrenhada, suja, amarrotada. Despenteado, a barba de três dias por fazer, parece que foi atropelado por um caminhão.

Tinha levado uma paulada na cabeça e carregado para uma casa suspeita, em que tinha sido trancado em um quarto e apanhado para que  confessasse onde estava um valiosíssimo colar de jade que o pai de Ann havia dado de presente para a segunda esposa dele, Helen, uma mulher atraente, com toda pinta de vamp, de femme fatale. Marlowe não tinha a mínima idéia de onde estava o tal colar, e então os bandidos tinham injetado na sua veia algum tipo de droga que provocava visões terríveis, tenebrosas, apavorantes.

E então Ann fala para Marlowe as frases que o definem perfeitamente. E mais: definem com exatidão, me parece, a figura do detetive particular hard boiled dos romances de Raymond Chandler, Dashiell Hammett e James M. Cain, criados nos anos 30 e 40 e que se transformaram em alguns dos mais importantes filmes noir da História:

– “Acho que você é louco. Você sai por aí sem saber direito o que está fazendo. As pessoas te espancam, batem em sua cabeça, injetam coisas em você, e você continua no jogo. Acho que você nem sabe em que time está jogando.”

Na minha opinião, essa é a mais perfeita definição de como agem Philip Marlowe, o detetive criado por Raymond Chandler, e também Sam Spade, o detetive inventado por Dashiell Hammet. Eles saem por aí sem saber direito o que estão fazendo; são espancados, levam surras terríveis – e vão em frente.

Não têm absolutamente nada a ver com Sherlock Holmes, ou Hercule Poirot, ou Miss Marple, aqueles detetives cerebrais, que raciocinam, pensam, deduzem, inferem, até chegar às suas conclusões. Não, nada disso. Os detetives hard boiled são, como diz a expressão, duros. Investigam seguindo a primeira pista que aparece, e vão indo em frente. Nada é retilíneo, direto. Tudo é extremamente confuso. No meio de suas histórias, parece que eles estão absolutamente perdidos, andando em círculos, sem sair do lugar – e o leitor dos livros ou espectador dos filmes também pode perfeitamente se sentir perdido, sem entender direito o que está acontecendo.

Mas os detetives vão em frente, exatamente como diz Ann Grayle. Apanham, levam porrada, mas continuam indo em frente – e acabam descobrindo tudo, resolvendo o mistério.

Esta mesma história foi filmada três vezes

Raymond Chandler (1888-1959) escreveu sete romances e umas dezenas de contos. Dos sete romances, seis viraram filmes – alguns deles várias vezes. Este Até a Vista, Querida/Murder, My Sweet, foi o segundo filme baseado no romance Farewell, My Lovely. Dois anos antes, em 1942, apenas dois anos após o lançamento do romance em 1940, havia sido lançado Nas Garras do Falcão/The Falcon Takes Over, em que o personagem Philip Marlowe se chamava Gay Lawrence e era interpretado por George Sanders.

Em 1975 haveria uma terceira versão, que manteve o título original do livro, Farewell, My Lovely, e no Brasil se chamou O Último dos Valentões. Nesse, o detetive particular Philip Marlowe é interpretado por Robert Mitchum, e Helen, a vamp, a femme fatale, por Charlotte Rampling.

Neste Até a Vista, Querida/Murder, My Sweet, dirigido por Edward Dmytryk para a RKO Radio Pictures, Marlowe é interpretado por Dick Powell. Helen, a segunda mulher do milionário Leuwen Grayle, é o papel de Claire Trevor. Ann Grayle, a filha do milionário em seu primeiro casamento, é feita por Anne Shirley e o próprio ricaço por Douglas Walton.

Quando a ação começa, Marlowe, com um pano amarrado na cabeça cobrindo os olhos, está sendo interrogado por um grupo de policiais chefiado pelo tenente Randall (Donald Douglas). O motivo da venda nos olhos – Marlowe estava perto demais de um revólver no momento em que ele disparou – só será explicado bem perto do final da narrativa. Mas o motivo pelo qual o detetive particular está sendo interrogado é exposto de cara: suspeita-se que ele tenha sido o autor das mortes de algumas pessoas. O espectador não fica sabendo logo quantas e quem são as vítimas – mas é dito que houve mortes, no plural.

Randall pede que Marlowe conte a sua versão dos fatos detalhadamente, começando pelo começo – um escrivão está à frente de uma máquina de escrever para registrar o depoimento.

O início do depoimento de Marlowe é um brilho. Coisa de grande escritor. Ele conta que estava em seu escritório, já de noite, e o tenente Randall pergunta o que ele fazia lá tão tarde.

– “Sou como um pombo-correio. Eu sempre volto à gaiola fedorenta, não importa a hora. Estava procurando em velhas seções de domingo por um barbeiro chamado Dominic, cuja esposa o queria de volta. Nem me lembro por que fazia isso. Aceitei o serviço só porque minha conta no banco estava no vermelho. E eu não consegui encontrar o cara. Acabei constatando mais uma vez como essa cidade é grande.”

A cidade de Marlowe é Los Angeles.

O cinema noir tem fascinação pelas coxas das femmes fatales

Vamos vendo uma rua importante de centro de cidade, com grandes anúncios luminosos, nomes de hotéis, bares.

– “Meus pés doíam, e minha cabeça parecia um lenço de encanador. A garrafa do escritório não tinha me animado, e então, com minha caderneta, decidi sair à caça. Nada como ombros macios para melhorar meu ânimo.”

Vemos Philip Marlowe em seu escritório, sentado, ao telefone.

– “Ombros macios tinham um compromisso, mas disse que iria ver se poderia dar um jeito e me ligaria de volta. Há algo de irreal no profundo silêncio em um prédio de escritório à noite. O trânsito lá embaixo era algo que não me interessava.”

E neste momento Edward Dmytryk e seu diretor de fotografia Harry J. Wild produzem uma tomada maravilhosa, engenhosa, impressionante.

Estamos vendo Philip Marlowe-Dick Powell pelas costas. Ele está sentado olhando para a janela de sua sala, a janela que dá para a rua escura. Vidros, à noite, no escuro, se transformam em quase espelhos – e então vemos, na janela, a cara de um homem. A cara bem feia de um homem bem feio e bem alto.

Marlowe gira 180 graus na sua cadeira e olha o homem feio e grande que está diante dele.

– “Eu vi seu nome no quadro lá embaixo. Você é um detetive particular, não é?”

Marlowe havia colocado seu revólver em cima da mesa. O sujeito feio e grande empurra o revólver e se senta na mesa diante do detetive: – “Eu quero que você procure por uma pessoa.”

O cara se chama Joe Malloy, mas ele mesmo se chama pelo apelido, Moose, alce. Alce é um bicho grande; o apelido é apropriado para um cara grandão.

Moose Malloy tinha estado fora de circulação nos últimos oito anos. Não por vontade própria – ninguém vai para um presídio por vontade própria. Agora que tinha saído, em condicional, em parole (adoro parole pronunciada em inglês, parôu), e queria reencontrar Velma, o amor de sua vida.

E ele leva Marlowe até o bar em que ela trabalhava como cantora, oito anos antes – uma espelunca chamada Florian. Florian, o antigo dono, já havia morrido, e o novo dono do bar não tinha nenhuma pista a respeito de Velma.

Marlowe começará a procura de Velma pela viúva do tal Florian, uma mulher horrorosa, bêbada – que, assim que o detetive sai da casa (e observa a viúva pela janela), dá um telefonema para informar a alguém que andam agora atrás da moça.

A busca por Velma levará o detetive à mansão do milionário Leuwen Grayle, de sua mulher Helen, a vamp, a femme fatale, e da filha, a bela Ann.

A primeira vez que Marlowe bate os olhos em Helen Grayle-Claire Trevor, ela está sentada em uma poltrona, a saia levemente acima do joelho. O detetive fixa o olhar no início da coxa da mulher – a câmara do diretor de fotografia também.

O cinema noir tem fascinação pelas pernas das femmes fatales louras. As coxas de Barbara Stanwyck e as de Lana Turner têm grande importância em respectivamente Pacto de Sangue e O Destino Bate à Porta.

Dick Powell conseguiu se livrar dos musicais

Provavelmente não tão lembrada hoje quanto Barbara Stanwyck e em especial Lana Turner, Claire Trevor era, no entanto, uma grande estrela nos anos 40, uma atriz de imenso prestígio. Nascida em 1910, começou a carreira cedo em Nova York, e estreou no cinema em 1933, aparecendo em diversas produções B como vítima simpática ou namorada de bandido, como resume o Baseline. O reconhecimento veio a partir de sua interpretação como a dama de cabaré de No Tempo das Diligências/Stagecoach, o clássico de John Ford de 1939. Nos anos 40 e 50, firmou-se como grande estrela em diversos bons filmes. Teve três indicações ao Oscar, por Beco Sem Saída/Dead End (1937), Paixões em Fùria/Key Largo (1948) e Um Fio de Esperança/The High and the Mighty (1954); levou o prêmio por Paixões em Fúria. Morreria aos 90 anos, em 2000, depois de uma consagrada carreira na TV.

A atriz Anne Shirley (1918-1993) tinha apenas 26 anos quando fez a bela Ann Grayle – e, no entanto, este foi seu último papel. Ela havia começado a carreira cedíssimo, com apenas 5 anos de idade, com o nome de Dawn O’Day. Depois deste Murder, My Sweet, e de se casar, em 1945, com o produtor Adrian Scott, abandonou o cinema. Que figura!

Figura interessante é também o protagonista do filme, Dick Powell (1904-1963). Ficou famoso como ator, cantor e dançarino em musicais da Warner ao longo dos anos 30 – e se encheu disso. Num artigo que publicaria no Saturday Evening Post em 1946, contaria que seu papel como o detetive Philip Marlowe neste Murder, My Sweet foi o resultado de um esforço de dez anos para deixar de ser um ator de musicais.

Quando o chefão da RKO, Charles Koerner, o contratou, tinha a firme intenção de ganhar dinheiro com musicais estrelados por Dick Powell. Mas o ator pediu a oportunidade de primeiro fazer um papel dramático – e Koerner ofereceu a ele o de Philip Marlowe. Consta que o diretor Edward Dmytryk ficou estupefato, de início, com a escolha.

O ator, no entanto, se saiu muito bem. O próprio Raymond Chandler aprovou sua interpretação.

O filme chegou a ser lançado com o título do romance de Chandler, Farewell, My Lovely. Charles Koerner e os produtores da RKO, no entanto, ficaram com medo de as audiências imaginarem, pelo título, que esse seria mais um musical romântico com Dick Powell – e foi aí que mudaram o título para o muito mais dramático Murder, My Sweet. Assassinato, minha doçura.

Foi um sucesso bastante razoável para um estúdio menor que os gigantes como a RKO. Rendeu US$ 597 mil – o que seria o equivalente a uns US$ 8,3 milhões em 2017, segundo o IMDb.

A partir daí, Dick Powell se despediu dos musicais – e iniciou uma sólida carreira como ator dramático.

Hoje, só quem sabe dessas histórias presta atenção a um detalhezinho que acontece na primeira visita de Philip Marlowe à gigantesca mansão do milionário Grayle – que, aliás, o detetive chama de Palácio de Buckingham: num momento em que está sozinho num imenso hall de chão de mármore lustradíssimo, Marlowe-Powell dá uma dançadinha. É uma coisa bem rápida, uma brincadeira, uma gozação, uma piada interna – um pulinho, os pés se juntando no ar.

Na época, deve ter sido motivo de muita conversa.

“Sintetiza com perfeição as delícias do gênero noir”

Leonard Maltin dá ao filme 3.5 estrelas em 4: “A adaptação do livro de Raymond Chandler Farewell, My Lovely deu a Powell uma nova imagem como detetive hardboiled Philip Marlowe, envolvido em homicídio e chantagem.”

O CineBooks’ Motion Picture Guide dá a cotação máxima de 5 estrelas, e começa assim seu longo texto: “Este filme duro, sarcástico e muito inteligente trouxe Dick Powell de volta depois sua carreira chegar perto da catástrofe e o transformou em um superstar; também o estabeleceu como um ator de imensa habilidade. Além do retrato que Humphrey Bogart fez de Philip Marlowe no clássico filme noir The Big Sleep (1946), ninguém mais conseguiu igualar a personificação de Powell do detetive.”

Depois de fazer um relato bem detalhado de toda a trama, o Cinebook’s Guide avalia: “Murder, My Sweet é sem qualquer dúvida um dos grandes filmes noir, fiel à visão do autor Raymond Chandler do hardboiled Marlowe e seu submundo cheio de criaturas motivadas por sentimentos sombrios, sinistros. Ninguém, nem mesmo Marlowe, tão espancado, tão respeitador de seu estranho código de ética, é isento de mácula; até mesmo Anne Shirley é contaminada por amargura e ressentimento. A cada passo há um elemento que é ilegal, imoral – assassinato, chantagem, fraude, drogas, assalto, sadismo, masoquismo, violência, conduta sexual desviante.”

Pauline Kael, é claro, torce seu narizinho para o filme. “Duas belas mulheres (Claire Trevor e Anne Shirley) abraçam de vez em quando Marlowe – um detetive não especialmente perspicaz – para tirar-lhe o revólver”, ironiza ela. ‘Houve uma época em que Raymond Chandler encarava o filme, baseado em seu Farewell, My Lovely, como a mais bem sucedida adaptação cinematográfica de um de seus romances, e achava que Dick Powell era quem chegava mais perto de seu conceito de Marlowe. O julgamento do autor parece duvidoso: o filme é bastante vigoroso, mas sua pobreza não pode ser inteiramente explicada como fidelidade ao material. Edward Dmytryk dirigiu, no estilo brutal e rápido dos anos de guerra.”

Diz o livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer, com muita propriedade: ‘Nenhum outro filme sintetiza com tanta perfeição as delícias do gênero noir, com o diretor Edward Dmytryk desfilando sombras, chuva, alucinações induzidas por drogas (“um lago negro surgiu”) e explosões repentinas de violência dentro de um emaranhado de armadilhas na trama, bandidos que são mestres na vigarice, femmes fatales que não valem nada, capangas com cérebro de gorila, policiais exaustos e médicos charlatões.”

É isso aí. Um bom filme. Para quem gosta de noir, então, um prato cheio, um banquete.

Anotação em fevereiro de 2020       

Até a Vista, Querida/Murder, My Sweet

De Edward Dmytryk, EUA, 1944

Com Dick Powell (Philip Marlowe)

e Claire Trevor (Helen Grayle), Anne Shirley (Ann Grayle), Otto Kruger (Jules Amthor), Mike Mazurki (Joe ‘Moose’ Malloy), Miles Mander (Leuwen Grayle), Douglas Walton (Lindsay Marriott), Donald Douglas (tenente Randall), Ralf Harolde (Dr. Sonderborg), Esther Howard (Jessie Florian), Paul Phillips (detetive Nulty), Ernie Adams (garçom do Florian), Dewey Robinson (o dono do Florian)

Roteiro John Paxton

Baseado no livro de Raymond Chandler

Fotografia Harry J. Wild

Música Roy Webb

Montagem Joseph Noriega

Produção RKO Radio Pictures. DVD Versátil.

P&B, 95 min (1h35).

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3 Comentários para “Até a Vista, Querida / Murder, My Sweet”

  1. Para mim, um noir for excellence. Coloco-o tranquilamente na minha lista dos dez melhores filmes de todos os tempos. Tenho-o como um de meus favoritos, e foi talvez o filme que mais vezes assisti.

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