Um western produção classe A, com dois astros – Glenn Ford, já veterano, consagrado, e Jack Lemmon bem jovem, em ascensão -, direção de Delmer Daves, diretor experiente, autor de bons filmes do gênero, como Flechas de Fogo e A Árvore dos Enforcados. Mas é um filme bem fraquinho, achei agora, este Como Nasce um Bravo, no original Cowboy, lançado em 1958.
A ação começa longe do Far West: começa em um hotel de luxo em Chicago, e o ano da graça é 1872. O espectador mais atento sabe disso porque, nos créditos iniciais – brilhantes, excepcionais, criados pelo mago Saul Bass, o cara que fez, entre muitas outras pérolas, a apresentação de Psicose, do mestre Hitchcock –, aparece o cabeçalho do jornal The Chronicle, editado em Chicago naquele ano.
Um estafeta avisa às pessoas na recepção do hotel que Tom Reece está chegando. Tom Reece, o espectador percebe de imediato, é um dos melhores clientes do hotel, e sua chegada é uma festa.
O gerente do hotel sabe que Tom Reece sempre fica na mesma imensa suíte, a melhor e mais ampla da casa. Por isso ordena ao rapaz da recepção, Frank Harris – o papel de Jack Lemmon – que vá dizer aos ocupantes daquela suíte específica que eles terão de mudar de lugar.
Frank Harris acha aquilo um absurdo, mas, como tantos empregados em todo o vasto universo, não consegue dizer não a uma ordem do chefe, e então vai lá cumprir a ingrata tarefa. Bate à porta, e uma jovem a abre. Ela parece espantada, e diz a Frank que ele não deveria estar ali – e Frank tasca-lhe um beijo. Sabemos então que os dois estão apaixonados, o rapaz da recepção e a moça, Maria Vidal (Anna Kashfi, atriz sem qualquer brilho ou beleza, uma opção ruim de um filme com bom orçamento), filha de um fazendeiro rico, um terrateniente mexicano.
Frank diz à namorada que precisa falar com o pai dela. E entra na gigantesca suíte. Diz que a família precisará mudar de lugar, mas que o hotel tem uma suíte ainda melhor para acomodá-la. O Señor Vidal (Donald Randolph), um caballero, quase um gentleman, diz que não muda coisa nenhuma, e prefere pedir a conta – e aproveita para dizer que sabe que aquele funcionariozinho está dando em cima de sua filha, e que não há jeito algum de ela, moça da mais fina flor da sociedade mexicana, se casar com um tipo como ele.
Um latino rico fazendo pouco caso de um branco anglo-saxão protestante. Ô audácia do bofe!
O fazendeirão ricaço, na banheira da suíte do hotel chique, pega a arma e atira na barata
E então Tom Reece chega ao hotel chique. Chega na pessoa de Glenn Ford, um dos grandes astros do cinema americano de 1958. Tom Reece chega com uma dezena de empregados; é rico a dar com o pau, negociante de gado. Traz trocentas reses para vender em Chicago, então a segunda grande metrópole do país que daí a pouco, mas muito pouco mesmo, se tornaria a maior potência do planeta.
Tom Reece tem a certeza absoluta de ser um homem poderoso, a quem todos bajulam. Dá ordens a todos, manda em todo o mundo como se fosse o Lula. Quando finalmente consegue a quantidade de água quente suficiente para tomar um banho de banheira, saca do revólver e dá um tiro na parede do hotel de luxo, porque acreditou ter visto ali uma barata.
No momento em que Tom Reece dá um tiro na parede do hotel de luxo (em seguida dará mais dois tiros, um dos quais irá perfurar um cano de água), Frank Harris está dentro do banheiro da suíte. Frank Harris foi até lá para se oferecer a Tom Reece como um de seus vaqueiros.
E por que, meu Deus do céu e também da terra, Frank Harris, cidadão de Chicago, urbanóide até a medula, resolveu de repente virar cowboy? Elementar, meu caro Watson: está morrendo de amor pela garota mexicana (embora ela não seja especialmente bela nem charmosa), ficou sabendo que Tom Reece vai em seguida ao México comprar gado, e então quer ir lá provar para o rico latino que ele é fodinha.
Tudo ridículo, esquemático, tudo muito rápido demais, como se se gritasse Shazam!
Acabei me alongando na descrição das primeiras sequências do filme.
O que vem a seguir é tão grotesco, ridículo, quanto os tiros que Tom Reece dá nas paredes do hotel de luxo.
É tudo esquemático.
O urbanóide Frank Harris apanha pra cacete no mundo duro dos cowboys. Mas – shazam! – aprende depressa. Muito rapidamente, como só nos contos de fada ou nos filmes de péssimo roteiro, num átimo passa a dominar tudo aquilo que desconhecia: como cavalgar, como tocar uma boiada, como enfrentar índios bravios.
O rude, rudérrimo Tom Reece, sujeito durão a não mais poder, afeiçoa-se por aquele ex-urbanóide.
O ex-urbanóide Frank Harris assimila do rude, rudérrimo Tom Reece a dureza dos cowboys.
O rude, rudérrimo Tom Reece assimila do jovem suas boas intenções, sua doçura.
Haverá conflitos brabos entre Tom Reece e Frank Harris. Verbais e físicas.
Tudo esquemático, e tudo muito rápido, tudo muito depressa demais. Como se se gritasse shazam!, e tudo acontecesse na vida rapidamente demais, como só nos contos de fada ou nos filmes de péssimo roteiro.
Como mandam os mandamentos dos roteiros péssimos, há um grande ódio entre os dois, para depois tudo serenar e ficarem todos felizes para sempre.
Na tomada final, fiquei seriamente achando que esse Tom Reece e esse Frank Harris, sacumé, eram os antecessores dos personagens interpretados por Heath Ledger e Jake Gyllenhaal em O Segredo de Brokeback Mountain – cowboyzões veados. Boiolas. Epa! Não, não, essas expressões são politicamente incorretas, não pode, de jeito nenhum. Ham… Cowboyzões de inclinação sexual não ortodoxa. Vixe, será que assim pode? Tento de novo: cowboyzões alegremente alegres. Gays.
Aí me lembro que Maverick, a grande brincadeira que Richard Donner realizou em 1994, termina de forma semelhante, dois homenzarrões tomando banho de banheira lado a lado. Mas ali são pai e filho, sem qualquer insinuação de boiolice.
Esses Tom Reece e Frank Harris… Hum… Sei lá, sei lá. Aquela coisa de Tom Reece trocar a mais bela puta de Chicago por um bom pôquer com um monte de machos… Hum… Tem boiolice aí.
Opa. Perdão. Tem opção sexualmente melhor, segundo o Guia do Politicamente Correto da Atualidade.
Há quem admire o filme, que se baseia nas memórias de um personagem real
Será que fui rigoroso demais? Será que estou vendo filmes demais, e começando a ver os filmes com má vontade, como o Ezequiel Neves dizia que era um saco, meu santo, ter a obrigação de ouvir tantos discos? Será que estou, como se disse em algum filme de que não me lembro mais, virando um ginecologista, o camarada que trabalha no lugar onde todo mundo se diverte?
Leonard Maltin, o sujeito que mais vende guias de filme no mundo, deu 3 estrelas em 4: “Western inteligente, cheio de clima, baseado nas reminiscências de Frank Harris como um novato inexperiente. Lemmon interpreta Harris, com Ford como seu patrão severo numa caminhada de gado cheia de eventos.”
Sim, sim: os créditos iniciais, no fabuloso design do mestre Saul Bass, dizem isso: “Baseado no livro My Reminiscences as a Cowboy, de Frank Harris”.
Bem. Se o roteiro do filme se baseou nas memórias do Frank Harris real, das duas, uma: ou bem o roteirista Edmund North comprimiu artificialmente demais, acelerou, resumiu as experiências reais da figura, ou então Frank Harris fantasiou sua própria história. Não seria a primeira nem a última vez. Como o mestre Akira Kurosawa nos mostrou, com brilho absurdo, em seu Rashomon, os seres humanos têm uma tendência irreprimível de se pintarem a si mesmos como melhores do que na verdade são.
Anotação em junho de 2012
Como Nasce um Bravo/Cowboy
De Delmer Daves, EUA, 1958
Com Glenn Ford (Tom Reece), Jack Lemmon (Frank Harris),
Anna Kashfi (Maria Vidal), Brian Donlevy (Doc Bender), Dick York (Charlie), Victor Manuel Mendoza (Mendoza), Richard Jaeckel (Paul Curtis), King Donovan (Joe Capper), Vaughn Taylor (Mr. Fowler), Donald Randolph (Señor Vidal)
Roteiro Edmund North
Baseado no livro My Reminiscences as a Cowboy, de Frank Harris
Fotografia Charles Lawton Jr.
Música George Duning
Créditos iniciais de Saul Bass
Produção Columbia Pictures. DVD Sony.
Cor, 92 min
R, *
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