Noites com Sol / Il Sole anche di Notte


Nota: ★★★★

Anotação em 2009: Noites com Sol, que os irmãos Taviani fizeram em 1990 com base em uma obra de Liev Tolstói, é um filme belíssimo, raro, extraordinário. O extraordinário, aqui, é absolutamente literal. É uma obra sobre espiritualidade, fé, religiosidade, a busca pela melhoria da mente, os grandes questionamentos metafísicos. Não é um tema que se vê toda hora por aí.

Claro que, exatamente por isso, não é um filme para todas as platéias, de forma alguma. Pessoas com preferência por filmes de ação, ou por puro divertimento, com toda certeza não vão suportar Noites com Sol.

Para quem gosta de filmes sérios (não chatos; muito longe disso), pesados, densos, é uma iguaria preciosa, da mais alta qualidade.

O filme tem um visual lindíssimo, requintado, apurado; fotografia, direção de arte, figurinos, enquadramentos, tudo é brilhante. É verdade que isso é uma marca registrada dos irmãos milaneses Paolo e Vittorio Taviani. Mas neste filme o capricho visual é especialmente acachapante.

E a trilha sonora – de Nicola Piovani – é soberba, espetacular. Ao contrário de muitas trilhas bastante boas, mas que contêm não mais que dois ou três temas principais, com variações em torno deles, esta aqui oferece diversas melodias, diversos temas, cada um se ajustando como uma luva a uma determinada situação do filme. Há belíssimos temas muito próximos da riqueza das sinfonias do período romântico, há peças mais suaves, como se fossem música de câmara – e há também sonoridades modernas, ritimadas, fortes, que se amoldariam perfeitamente aos trechos de maior suspense em bons thrillers.

Piovani, nascido em 1946 em Roma, musicou muitas produções B italianas, tipo Flavia, a Freira Muçulmana, de 1974, antes de se projetar como grande compositor, o que ocorreu exatamente nas trilhas que fez para vários filme dos Taviani, como A Noite de São Lourenço, de 1982, Kaos, de 1985, Bom Dia, Babilônia, de 1987, Aconteceu na Primavera/Fiorile. Para se ter idéia da dimensão do seu trabalho, é bom lembrar que Federico Fellini o chamou para compor a trilha de seus últimos filmes, após a morte do mestre Nino Rota. Para ocupar um lugar que havia sido de Nino Rota tem que ser danado de bom.

         Obstinação para fazer sempre o melhor, ser sempre o melhor

Há muitos bons filmes em que há poucos grandes acontecimentos. Neste aqui, nos 15 primeiros minutos já acontece tanta coisa que eu não gostaria de adiantar muito, para não ser spoiler, para não estragar o prazer e a surpresa de quem ainda não o viu.

A ação começa num lugarejo do interior da Itália, na primeira metade do século XIX. Vemos um garotinho sob uma árvore cheia de flores brancas, com a mão estendida, a palma para cima. Cai sobre a mão dela uma pétala de flor; o garoto sorri feliz, como se tivesse feito uma promessa e tivesse sido atendido pela natureza.

Corta, e estamos em um belíssimo e gigantesco palácio; o Rei Carlo (Rüdiger Vogler), de Nápoles, está recebendo de seus assessores a sugestão de um nome, entre os dos seus 50 cadetes, para ser seu secretário particular. O nome que apresentam ao rei, embora seja contra os princípios deles, é o de Sergio Giuramondo, um jovem que é o melhor dos cadetes em diversos itens – é o primeiro nos estudos, nas disciplinas militares, no jogo de cartas, na dança, até mesmo nos acessos de cólera. É um sujeito obstinado por fazer muito bem, melhor do que todos, tudo o que faz. E por que então é contra os princípios?, pergunta o rei. A explicação é que, embora barão, Sergio Giuramondo pertence à pequena nobreza de província, de Basilicata; nesse quesito, os demais cadetes são mais bem posicionados que ele.

O rei pede que lhe tragam um baralho, e mais Sergio Giuramondo. Jogam cartas, conversam um pouco; ao responder a uma pergunta que lhe é feita, o jovem barão (interpretado pelo inglesíssimo Julian Sands) conta ao rei que, quando criança, em sua província, fez um voto, uma promessa, de ser útil à Sua Majestade.

Logo depois de dispensar o jovem, o rei diz a seus assessores que sua escolha foi feita: é mesmo aquele rapaz. A questão é arranjar um bom casamento para ele com alguma nobre bem nobre. Os assessores dizem que nenhuma família de duquesa aceitará um casamento com aquele nobre menor e pobre. O rei diz que pensa numa determinada duquesa – e a seqüência seguinte começa com um close de Nastassja Kinski, aquela deusa grega, embora alemã, embora no filme italiana. Nastassja é a duquesa Cristina, e estamos, com menos de dez minutos de filme, a poucos dias do casamento de Cristina e do pequeno barão Giuramundo. 

Mais cinco minutos, apenas, e teremos uma grande reviravolta, que não vou adiantar.

         Eles dizem “livremente adaptado”, mas é tudo fiel a Tolstói

Ao som de uma melodia belíssima de Nicola Piovani, vemos, nos créditos iniciais do filme, que o roteiro é de autoria de Paolo e Vittorio Taviani, “livremente tirado do conto Padre Sergio, de L. Tolstoi”. Em seguida, é dito que os irmãos tiveram a colaboração, na redação do roteiro, de Tonino Guerra – um nome que é uma lenda do cinema italiano e europeu, um mestre, que trabalhou com Michelangelo Antonioni, Federico Fellini, Francesco Rosi, Andrei Tarkóvski, Theo Angelopoulos.

“Livremente adaptado” é uma expressão que pode ter muitos significados. Em geral, indica que no roteiro final ficou pouca coisa da obra original, a não ser uma ou outra idéia ou acontecimento básico. Como o original é um conto russo, e a história mostrada no filme se passa na Itália, seria de se esperar mesmo que tenha havido muita mudança, na criação do roteiro.

Sim, seria de se esperar. Os irmãos Taviani, no entanto, criaram uma obra-prima, As Afinidades Eletivas, de 1996, baseado no terceiro romance do alemão Johann Wolfgang Von Goethe, publicado em 1809, que aparentemente, ou pelo que pude perceber, é a mais fiel possível ao espírito do livro. Claro, o livro retrata um quadrado amoroso na cidade alemã de Weimar e seus arredores, enquanto o filme transporta o mesmo quadrado para a região da Toscana. Mas, fora isso, de fato as indicações são de que o roteiro foi bastante fiel à obra de Goethe.

E muito, mas muito do que mostra Noites com Sol tem a ver com o universo de Liev Tolstói (1828-1910) – com suas obras e com sua vida real. O conde Piotr Bezukov e o príncipe Andrei Bolkonski, dois dos três personagens centrais de Guerra e Paz, são homens que estão eternamente se questionando a respeito do valor de suas próprias existências, procurando, tentando de alguma forma ser úteis à humanidade, aos outros, embora em geral tropeçando em suas angústias e fraquezas. Na maturidade, Tolstói, já famosíssimo, unanimemente considerado o maior escritor russo, ele mesmo conde, de família riquíssima, iria tentar de todas as formas se ver livre de sua fortuna e viver uma vida simples, perto da natureza e dos pobres. Exatamente como o protagonista de Noites com Sol. Também como o antigo barão Sergio Giuramundo, Tolstói foi, na juventude, apegado aos prazeres mundanos, da cama e da mesa – para, no final da vida, extremamente religioso, impor a castidade para si próprio e seu imenso e sempre crescente número de seguidores.

“A tendência a exaltar a superioridade da vida simples e natural sobre o artificialismo da sociedade, cada vez mais acentuada na evolução da obra e da vida de Tolstói, patenteia-se na evidente subjetividade de muitas destas novelas e contos, nos quais o personagem é o próprio Tolstói, quer se chame Kekliudov ou Olenine”, escreveu Oscar Mendes, um dos tradutores das obras do gênio russo para o português, na nota introdutória às novelas e contos. “Neles procura ressaltar os processos da consciênciza e revela a luta íntima travada durante toda a existência e que o conduziu, afinal, à conversão pelo amor aos simples, aos humildes, aos que viam na recusa à violência e na solidariedade para com todos a melhor forma de fazer a vontade de Deus.”

Isso tudo está claro no filme “livremente tirado do conto Padre Sérgio”. Quando vi o filme e escrevi quase toda esta anotação, ainda não tinha lido o conto – e “conto”, aqui, tem que ser entendido como uma história curta na acepção tolstoiana: Padre Sérgio, que segundo a Wikipidia foi escrito em 1898, 12 anos apenas antes da morte do autor, tem oito capítulos e ocupa 33 páginas daquelas com letrinha mínima, no papel bíblia das edições de obras completas da Editora Nova Aguilar. Li logo depois de ver o filme, e faço agora um remendo na minha anotação original: sim, de fato, como eu pressenti, o filme é extremamente fiel ao texto de Tolstói. Já o primeiro parágrafo – brilhante, brilhante; como ele era bom de lead, o conde Liev Tolstói – conta o que acontece nos 15 primeiros minutos do filme, inclusive antecipando fatos que preferi não antecipar aí em cima para não estragar.

Praticamente todos os acontecimentos que aparecem no filme estão no conto de Tolstói. Há diálogos que foram mantidos praticamente idênticos. A ação do filme, como já foi dito, se passa na Itália do século XIX; o conto se passa na Rússia, em meados do século XIX, entre 1840 e 1850. O filme introduziu um personagem que não aparece no conto, o príncipe Santobuono, e transformou o que no conto é uma mulher, Pachenka, num casal de humildes trabalhadores que tem o desejo de morrer ao mesmo tempo, porque um não suportaria a vida sem a existência do outro.

Tirando isso, o que está no filme está no conto, e o espírito da coisa é exatamente o mesmo: a busca por Deus, a busca pela melhoria espiritual, em meio a vacilos, temores, tentações, a sensação de imperfeição.

“I still haven’t found what I’m looking for”

Há diálogos maravilhosos. Ainda perto do início do filme, Giuseppina (Pamela Villoresi) recebe uma carta do irmão, então num convento, estudando para ser padre, em que ele diz:

– “Não estou muito contente. Nem aqui, nestes três anos, consegui achar o que busco – a mais alta perfeição, seja interna ou externa.”

Piotr Bezukov poderia ter dito exatamente a mesma coisa. Bono, o astro irlandês de formação religiosa sempre devotado a grandes causas, faria uma canção dizendo mais ou menos o mesmo.

Por vaidade, por soberba, para ser melhor que os outros, e também por um verdadeiro amor a Deus, por tudo isso junto, o personagem Sérgio luta para se aperfeiçoar. Não é santo, nem semideus; sofre, tem dúvidas e tropeça, patina, mas se esforça.  

Bem mais adiante, o Padre Sérgio, que havia optado por uma vida isolada no meio de montanhas mas, contra toda sua vontade, havia sido transformado numa atração de romeiros (um tanto como o próprio Tolstói no final da vida, observo), se reencontra com um conhecido dos tempos da juventude, o príncipe Santobuono (Massimo Bonetti). Dá-se este diálogo:

O padre: – “Quem diria que acabaríamos assim – eu eremita, você refém.”

O príncipe: – “Faz parte da profissão que escolhi, e da qual eu gosto.”

O padre: – “A minha não é uma profissão. É uma missão. (Faz uma pausa.) Só que agora está se tornando uma profissão.”

O príncipe olha para a frente, para o lugar onde antes havia um barraco de eremita e hoje há quase um santuário: – “Aqui deveria ser menos difícil procurar Deus.”

E o padre: – “Temo que quem procure Deus não O encontre. Quem procura a verdade talvez encontre Deus.”

         A bela voz de Giancarlo Giannini – e mulheres maravilhosas

Como nos outros filmes dos irmãos Taviani, todo o elenco está brilhante, uniformemente brilhante. O inglês Julian Sands se encaixou como uma luva na figura do italiano (que no original era russo) que passa a vida à procura de Deus, da verdade e de uma forma de ser útil aos homens. Foi dublado por uma belíssima voz de ator italiano, que não reconheci; nos créditos finais é dito que a voz de Giancarlo Giannini. Seis anos mais tarde, Giannini faria o narrador de As Afinidades Eletivas.

Os diretores de elenco dos Taviani descobrem mulheres lindas para todos os papéis, mesmo os menores, como a da mulher pobre, camponesa, da seqüência final. A atriz que faz Giuseppina madura, Pamela Villoresi, também é bela – e a que faz a Giuseppina adolescente, Morena Turchi, é estonteante.

São também belas, e atuam maravilhosamente, as três outras mulheres que passarão pela vida do protagonista. Nenhuma deles tem papel longo; ao contrário – são quase participações especiais. A primeira delas é a duquesa Cristina, interpretada pela esplendorosa Nastassja (foto abaixo), filha do feíssimo Klaus Kinski. A segunda, Aurelia, é interpretada por Patricia Millardet (foto acima); não me lembro dela em outros filmes, mas sua atuação é impressionante. E a francesa Charlotte Gainsbourg também está ótima como Matilda. Não é loura como a Maria do conto, mas isso o que importa? Matilda é exatamente como Maria.

         Um grande esmero nos pequenos detalhes

O filme tem um esmero em pequenos detalhes que são de fazer babar quem gosta de cinema. Durante uma missa, na primeira metade do filme, há um grande close-up da mão enluvada da duquesa Cristina, crispada, segurando o encosto do banco da frente – e uma mão de homem, de seu acompanhante, pousa sobre a dela, e, com o polegar, ela reage ao gesto de carinho. É um esplendor de tomada. Nessa mesma seqüência, o uso do som é genial: a soma dos pequenos sussurros dentro da igreja vai se tornando um som estupidamente alto, como de um Pacaembu lotado no momento do gol do Corinthians. Mais tarde, na seqüência em que aparece Aurelia no retiro do padre Sérgio, ele pede ao espírito de seu antecessor na cabana de heremita para ouvir apenas os pingos da chuva que cai lá fora, e não o ruído das roupas encharcadas de Aurelia sendo retiradas do corpo dela – e o som da chuva cresce, fica altíssimo, para depois sumir por completo. O resultado do silêncio é brutal, assustador.  

Beleza de filme.

A anotação já está imensa, e eu já a havia concluído e remexido nela após ler o conto de Tolstói, mas agora vi informações interessantes no AllMovie e é preciso acrescentá-las aqui. A história do escritor deu origem ao filme russo Otets Sergyi, feito em 1917, ainda sob o regime czarista que naquele ano seria derrubado, abrindo espaço logo em seguida para a revolução comunista. Segundo o AllMovie, é um dos poucos longa-metragens russos pré-comunismo cujas cópias se salvaram e chegaram até nossos dias. Ainda segundo o belo site, a cena sobre a qual falei logo aí acima – o que vem quase ao final da visita de Aurelia à cabana do padre Sérgio – no filme dos irmãos Taviani é a cópia exata da mostrada em Otets Sergyi de 1917, de Yakov Protazanov. Em 1978, ano do sesquicentenário do nascimento de Tolstói, os soviéticos fizeram uma nova versão da história, Otets Sergyi, dirigida por Igor Talankin.  

Vivendo e aprendendo.

Noites com Sol / Il Sole anche di Notte

De Paolo e Vittorio Taviani, Itália-França-Alemanha, 1990

Com Julian Sands (Sergio Giuramondo), Nastassja Kinski (Cristina), Patricia Millardet (Aurelia), Charlotte Gainsbourg (Matilda), Massimo Bonetti (Príncipe Santobuono), Margarita Lozano (a mãe de Sergio), Pamela Villoresi (Giuseppina Giuramondo), Rüdiger Vogler (Rei Carlo)

Roteiro Paolo e Vittorio Taviani e Tonino Guerra

Baseado no conto Padre Sergio, de Liev Tolstói

Fotografia Giuseppe Lanci

Música Nicola Piovani

Produção RAI, Capoul, Direkt-Film

Cor, 112 min

****

Título em inglês: Night Sun. Título na França: Le Soleil même la Nuit

10 Comentários para “Noites com Sol / Il Sole anche di Notte”

  1. Gostaria muito de rever este filme…Mas, já o procurei em toda parte e não encontro. Você poderia me ajudar?

  2. Gostaria Que Disponibilizassem um Link Para download do Filme: Noites Com Sol. Agradeço Desde Já.

  3. O filme está fora de catálogo. Quem tem, tem. Quem não tem pode assisti-lo e baixa-lo no you tube, no original, em italiano. Aqui:

    https://www.youtube.com/watch?v=ncWkZnrC4qA

    Diversos sites, como o open subtitles, disponibilizam, gratuitamente, legendas em inglês (todas as legendas existentes na internet são o mesmo arquivo).

    Abs!

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *