A Vida Íntima de uma Mulher / A Woman’s Secret


Nota: ★★½☆

Anotação em 2010: Tem um monte de coisas interessantes, este filme dirigido por Nicholas Ray, um cineasta que fascinou gerações e encantou críticos do mundo todo, em especial os franceses dos Cahiers du Cinéma. Wim Wenders fez um belo filme em homenagem a ele, Nick’s Film, de 1980.

A Vida Íntima de uma Mulher, o quarto longa dirigido por Nicholas Ray, é de 1949, poucos anos antes de Johnny Guitar, de 1954, um dos westerns mais loucos que já foram feitos, e de Juventude Transviada/Rebel Without a Cause, de 1955, um imenso mito que, mais do que espelhar um tipo de comportamento, disseminou-o pelo mundo inteiro.

Não é um grande filme. Tem defeitos sérios – o primeiro deles é o tipo de interpretação que Ray extraiu de seus atores. Estão, todos eles, os protagonistas e os coadjuvantes, uma oitava acima do tom, overacting, enfáticos demais, falando diálogos caprichados demais – como se estivessem num teatro muito grande, exagerando um tanto nos gestos e nas expressões para serem percebidos pelos espectadores nas últimas fileiras.

E são bons atores – Melvyn Douglas era um veterano testadíssimo; Maureen O’Hara, a heroína de John Ford, além de talentosa tem aquela beleza radiante; a jovem Gloria Grahame era uma boa revelação, e Jay C. Flippen, coadjuvante em dezenas de filmes a partir de 1934, é tão bom ator quanto feio.

Uma bela história, um bom começo de filme

A história – baseada num romance de Vicki Baum – é muito boa, e fisga o espectador de imediato. Quando a ação começa, vemos uma moça cantando uma música num estúdio de rádio, a orquestra atrás dela, ao vivo – era assim, no rádio de então, e mostrar esse mundo do rádio na Nova York do final dos anos 40 é uma das várias coisas fascinantes do filme. As belas canções – a trilha sonora é de Frederick Hollander, compositor de muitos clássicos da Grande Música Americana – são outro ponto alto. São canções que não ficaram na história – “Estrellita”, “Paradise”, mas valem a pena.

A jovem que encerra um programa, ao vivo, no estúdio da rádio, é uma estrela ascendente, Estrellita, o nome artístico de Susan Caldwell (interpretada por Gloria Grahame, na foto, indicada para o Oscar de atriz coadjuvante em 1948 por Crossfire, vencedora do prêmio em 1952 por Assim Estava Escrito/The Bad and the Beautifull, de Vincente Minnelli).

Depois da seqüência de Estrellita no estúdio, corta, e vemos uma belíssima mulher, num amplo, rico, apartamento, ouvindo o programa em que Estrellita cantava. A mulher, Marian Washburn (o papel da radiosa Maureen O’Hara), desliga o rádio, e fica à espera de algo. Logo em seguida veremos que Marian estava à espera da chegada de Estrellita em pessoa.

Há uma discussão entre Estrellita e Marian. Vemos que elas moram juntas, que Marian foi assim uma mecenas para a jovem, fez tudo por ela em sua carreira, transformou-a na estrela ascendente que a moça é agora. Mas Estrellita, por algum motivo, quer se libertar da tutela de Marian – na verdade, ela quer abandonar a carreira. Diz que está cansada, e sobe para seu quarto (sim, o apartamento gigantesco é um duplex). Marian vai atrás dela, entra no quarto, a discussão recomeça.

E aí a câmara mostra a empregada trabalhando no andar inferior. Passam-se alguns momentos – e ouve-se um tiro. A empregada sobe correndo, entra no quarto – Estrellita está deitada no chão, baleada perto do coração. Estamos ainda com menos de dez minutos de filme.

Um belíssimo começo de narrativa, sem dúvida alguma.

         Entre os personagens, a mulher do policial, uma Miss Marple

Entrarão na história diversos outros personagens. O principal deles é Luke Jordan (o personagem do veterano e então grande astro Melvyn Douglas), pianista, compositor, uma celebridade no meio musical de Nova York. Veremos, no desenrolar da história, que ele acompanhou o início da carreira de cantora de Marian, uma carreira interrompida por uma doença que a fez perder a excelente voz; e que ele e Marian foram os descobridores da jovem Susan Caldwell, seus grandes incentivadores – foram os dois juntos que transformaram a moça em Estrellita, a estrela em ascensão.

Outro personagem importante na história é o detetive Fowler (interpretado por Jay C. Flippen), que cuidará do caso da tentativa de assassinato, talvez de assassinato – Estrellita está no hospital, entre a vida e a morte. E depois ainda teremos a participação – deliciosa – da mulher dele, a sra. Fowler (Mary Philips, ótima), uma espécie assim de Miss Marple, uma detetive amadora. E tem ainda Brook Matthews (Victor Jory), milionário, grande advogado, a quem Luke Jordon vai procurar para fazer a defesa de Marian – um sujeito apaixonado por Estrellita.

O espectador vê o filme com diversas perguntas na cabeça: afinal, foi de fato Marian quem atirou em Estrellita? Por quê? Por que Estrellita queria abandonar a carreira? Como era a relação entre as duas, a ex-cantora, agora mecenas, tomadora de conta da outra, e a jovem que chegava ao estrelato impulsionada pela dupla Marian e Luke Jordan? Muito provavelmente não foi Marian – mas então quem foi?

As dúvidas vão sendo solucionadas aos poucos – o passado, a história da relação de Marian e Luke Jordan, a história da relação entre Marian e Luke Jordan e a jovem que viraria Estrellita, tudo isso vai sendo mostrado ao espectador em flashbacks, enquanto o próprio Luke vai relatando os fatos para o detetive Fowler.

         Pequenos furos, pequenas incongruências

Enquanto via o filme, me lembrei de dois clássicos daquela mesma época: Laura, de Otto Preminger, de 1944, e A Malvada/All About Eve, de Joseph L. Mankiewicz, de 1950. Não há, a rigor, ligação muito direta entre o filme de Nicholas Ray e esses dois grandes filmes – mas senti proximidades. São, os três, filmes passados em ambiente artístico e de gente rica em Manhattan; são, os três, em preto-e-branco, e foram feitos no mesmo período.  Em Laura, um grande amigo da protagonista e personagem-título acompanha o detetive (interpretado por Dana Andrews) encarregado da investigação – assim como aqui Luke Jordan acompanha o detetive Fowler. Em A Malvada, temos uma jovem que acompanha uma estrela; no filme de Ray, temos uma ex-estrela que produz uma jovem aspirante a estrela. E, por pura coincidência, o roteiro de A Vida Íntima de uma Mulher é de Herman J. Mankievicz, irmão de Joseph, o diretor de A Malvada.

OK – mas se a trama é boa, os atores são bons, o clima faz lembrar dois belíssimos filmes, qual é o problema? Por que não é um grande filme?

O primeiro problema é aquele sobre o qual falei lá em cima, os atores uma oitava acima do tom normal. São poucas as seqüências em que os atores baixam um pouco o tom e deixam de ser parecidos como atores atuando, passam a parecer um pouco mais com seres humanos.

Em segundo lugar, há – ou pelo menos me parecer haver – alguns pequenos furos, algumas pequenas incongruências. Só para dar alguns exemplos: não se explica muito bem como e por que Marian tem tanto dinheiro, para poder naquele duplex de luxo na Park Avenue. É meio sem sentido o fato de Marian e Luke Jordan demorarem tanto tempo para descobrir ou admitir o óbvio – coisa que só farão na última seqüência. E a história envolvendo Estrellita e um outro personagem, o ex-soldado Lee (Bill Williams) me pareceu meio mal contada.

E há ainda um tom cômico, gozativo, ao se mostrar o casal Fowler, o detetive da polícia e a detetive amadora, que não condiz muito com o resto da narrativa. É engraçado, é gostoso, mas me pareceu meio deslocado.

         Outras opiniões – e uma boa fofoca

Já me alonguei demais, mas gostaria de registrar outras opiniões. No mínimo, no mínimo, pelo respeito que Nicholas Ray merece.

Aliás, dele disse François Truffaut, em texto de 1955 depois publicado em seu livro Os Filmes da Minha Vida: “Nicholas Raymond Kienzle é um autor no sentido que gostamos de dar à palavra. Todos os seus filmes contam a mesma história, a de um violento que gostaria de deixar de sê-lo e seu relacionamento com uma mulher mais forte pois o espancador, eterno herói de Ray, é um fraco, um homem-criança, quando não simplesmente uma criança. (…) Os filmes de Ray geralmente entendiam o público, que se irrita com sua lentidão, sua seriedade, na verdade seu realismo.”

Leonard Maltin dá 2.5 estrelas em 4 (epa: eu já tinha dado 2.5 em 4 antes de checar o que diz o Maltin!), e diz o seguinte: “Drama intrigante em flashback sobre mulher que vem a odiar cantora a quem levou ao sucesso; boas atuações das duas estrelas femininas. Um pouquinho sloppy” – e aí não sei como interpretar o adjetivo sloppy, que tanto pode ser desleixado, desmazelado, quanto piegas, sentimental. Eu, pessoalmente, acho o filme mais desleixado que piegas.

O Guide de Jean Tulard dá apenas 1 estrela em 4, mas elogia: “É um bom policial forte bem interpretado.”

O livro The RKO Story diz que o roteirista Herman J. Mankiewicz “impôs uma estrutura à la Cidadão Kane ao romance de Vicki Baum com resultados que foram confusos e mundanos”. O livro parte para a ironia e diz que o público respondeu ao filme de maneira inteligente – não indo vê-lo –, e o prejuízo do estúdio chegou, naquele ano de 1949, a US$ 760 mil, uma imensa fortuna para a época.

Ahá – o iMDB conta uma boa fofoca. Nicholas Ray e Gloria Grahame se conheceram durante as filmagens; logo depois que o filme foi feito, viajaram para Las Vegas, para conseguir um rápido divórcio do casamento anterior da atriz, e aí se casaram. Ficaram juntos quatro anos, de 1948 a 1952. Gloria Grahame teve um terceiro casamento, para depois, em 1960, casar-se com um filho de Ray, Anthony Ray! 

Eu, pessoalmente, resumo assim: se não chega a ser um grande filme, tem, como já falei e repito, um monte de coisas interessantes. Merece ser visto, em especial por quem gosta da época de ouro de Hollywood e dos grandes diretores do cinema americano.

A Vida Íntima de uma Mulher/A Woman’s Secret

De Nicholas Ray, EUA, 1949

Com Maureen O’Hara (Marian Washburn), Melvyn Douglas (Luke Jordan), Gloria Grahame (Susan Caldwell), Bill Williams (Lee), Victor Jory (Brook Matthews), Jay C. Flippen (detective Fowler), Mary Philips (Mrs. Fowler), Robert Warwick (Roberts) 

Roteiro Herman Mankiewicz

Baseado no livro de Vicki Baum

Fotografia George E. Diskant e Harry J. Wild

Música Frederick Hollander

Canções de Nacio Herb Brown e Gordon Clifford

Produção RKO Radio Pictures.

P&B, 85 min

**1/2

Título em Portugual: O Íntimo Segredo de uma Mulher. Título na França: Secret de Femme

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