Duplicidade / Duplicity


3.0 out of 5.0 stars

 Anotação em 2009: Este Duplicidade é assim a rigor uma triplicidade, um três-em-um, uma pizza de três sabores: um tanto thriller-suspense, um tanto comédia, um tanto romance. É todo muito bem feito, em todos os quesitos possíveis; a trama é inteligente, esperta, bem sacada, divertida, e na verdade só é um tanto confusa na aparência.É um filmão hollywoodiano bem bonzinho. No entanto, parece que os produtores deram com os burros n’água.

É uma produção de US$ 60 milhões; não é um absurdo grande demais – A Terra Perdida, comédia com Will Ferrell da mesma safra, custou US$ 100 milhões. Mas é uma produção cara, com grandes astros – Julia Roberts, Clive Owen –, que se dá ao luxo de ter como coadjuvantes dois atores excepcionais, o inglês Tom Wilkinson e o americano Paul Giamatti. Parece ter sido feita seguindo todos os itens do manual Como Fazer um Blockbuster, e no entanto rendeu, nos primeiros meses, US$ 40 milhões, apenas dois terços do seu custo. Para se pagar, uma produção dessas tem que render bem mais que o custo nesse período.

Bem. Vou tentar me organizar, e primeiro falar do filme, antes de fazer minhas considerações, elocubrações, tergiversações.

         Um jogo de gato e rato em várias partes do mundo

O filme abre em Dubai, Emirados Árabes, 4 de julho de 2003, segundo nos informa um letreiro. O filme colocará letreiros para nos informar dos locais e datas, mesmo quando isso é absolutamente desnecessário; após umas duas tomadas de Londres, com o Big Ben e tudo, um letreiro nos informará, como se não tivéssemos visto o Big Ben: Londres, data tal. Mas lá vou eu tergiversando.

aduplicidadeDubai, Emirados Árabes, embaixada americana, coquetel pela festa da independência americana. Temos o mocinho, já que vemos Clive Owen andando por ali, e temos a mocinha, uma Julia Roberts com um decote um tanto generoso, à la ela mesma em Erin Brockovich. Os dois conversam um pouquinho, aquelas frases feitas para parecer inteligentes, belas sacadas, coisa de filmão de Hollywood, coisa e tal; aí temos um split screen, a tela que se divide em duas, depois em três, depois em quatro; mocinho e mocinha estão num quarto de hotel, mocinho e mocinha já transaram, mocinho deitadão na cama, mocinha se levantando, dando uma busca no quarto, pegando um envelope que mocinho guardava escondido sob o colchão.

Corta, e temos os créditos iniciais; durante todo o tempo em que rolam os créditos iniciais, temos ao fundo uma seqüência que se passa em um aeroporto, onde estão parados dois grandes jatos executivos, cada um deles com o nome e o logotipo de uma grande corporação; diante do grupinho perto de um dos aviões está Tom Wilkinson, devidamente engratado em belo terno; diante do outro grupinho perto do outro avião está Paul Giamatti, também engravatado em outro belo terno; os créditos iniciais estão rolando; num misto de câmara lenta com câmara acelerada, um parte para cima do outro; percebemos que um está xingando o outro, embora não haja som das vozes, só o tema composto para os créditos iniciais por James Newton Howard, num estilo assim meio de Lalo Schifrin para thrillers. Os dois executivos (dá para perceber que são executivos) partem para o que antigamente se chamava as vias de fato; se engalfinham, dão porrada um no outro (foto abaixo).

aduplicidade3Terminam os créditos iniciais, corte, temos tomadas gerais de Nova York e um letreiro explicando: Cinco anos mais tarde. Cinco anos mais tarde do que a luta dos dois executivos? Ah, sim, depois do encontro do mocinho e da mocinha em Dubai; tá; então estamos em 2008, agora. Uma seqüência toda intrincada à la coisa de filme de espionagem, Clive Owen andando por Manhattan falando ao celular, um encontro marcado com alguém que vai lhe entregar algo muito importante e muito secreto, mas é preciso despistar, há os contra-espiões no pedaço. Entra no Grand Central Terminal. Clive Owen fala ao telefone com seu comparsa, o encontro deve ser daí a dois minutos, mas de repente Clive Owen vê Julia Roberts e sai do Grand Central e começa a segui-la, e, alguns minutos de perseguição depois, os dois se encontram no meio de uma grande loja de departamentos, e segue-se um diálogo em que Clive Owen tenta fazê-la lembrar de que cinco anos atrás em Dubai os dois se conheceram no coquetel de 4 de julho, ela o seduziu, o levou pra cama, o dopou e roubou um documento importantíssimo dele. Mas Julia Roberts faz que não se lembra de nada, de absolutamente nada. Discutem, e aí, providencialmente, a bolsa dela cai no chão, vê-se um determinado objeto que identifica que ela é a pessoa que tinha o encontro marcado com ele, é a entregadora, ele é o contato dela, ela deve entregar a ele o algo muito importante e muito secreto. Discutem muito, vão parar num bar, discutem mais ainda.

Aí se separam, e cada um vai para a sede da empresa em que está trabalhando – duas grandes corporações que atuam, entre outras, na área de farmacêutica e de cosméticos. Até aqui, tínhamos tido uns 15 minutos de filme. Nos 15, 20 minutos seguintes, vemos que as duas corporações estão envolvidas num gigantesco e emaranhado jogo de espionagem e contra-espionagem industrial, e nossos heróis estão envolvidos nela, cada um de lado. Agora já sabemos que a mocinha se chama Claire e trabalhou no passado para a CIA, e o mocinho, Ray, e ele trabalhou no passado para o M16, a CIA britânica. Ela agora trabalha para a empresa presidida por Howard Tully, o personagem de Tom Wilkinson, enquanto ele trabalha para a presidida por Richard Garsik, o personagem de Paul Giamatti.

Bem, a essa altura, quando espectador um pouco menos atento está começando a compreender o que está acontecendo…

Sim, sim, dirá o espectador um pouco menos atento, estou compreendendo: Claire e Ray, que já trabalharam para os serviços oficiais de espionagem, agora estão trabalhando na espionagem e contra-espionagem industrial, corporativa, privada. São inimigos, estão em lados opostos, mais ou menos como Mr. e Mrs. Smith do filme recente com o casal 20 Brad Pitt e Angelina Jolie, ou como outro casal na vida real da época, Jack Nicholson e Anjelica Huston fazendo matadores de aluguel a serviço de dois patrões, em A Honra do Poderoso Prizzi… Certo, certo…

E então, a essa altura, cerca de meia hora de filme, um letreiro avisa: Roma, 2 anos atrás. Claire-Julia Roberts está andando numa rua romana; Ray-Clive Owen está sentado num café ao ar livre conversando com uma loura quando vê Claire. O espectador faz as contas: começou em Dubai em 2003, depois passaram-se cinco anos, o “hoje”, o tempo atual é 2008; dois anos atrás, então voltamos para 2006. Tudo bem.

Ray vê Claire e vai atrás dela, mais ou menos como tinha ido – quer dizer, não, não, iria atrás dela, no futuro, daí a dois anos, em Manhattan em 2008. E Ray persegue Claire, e finalmente ficam diante um do outro – e Ray cobra dela a grande sacanagem que ela tinha feito em Dubai. Ele diz que os dois se conheceram no coquetel de 4 de julho, ela o seduziu, o levou pra cama, o dopou e roubou um documento importantíssimo dele. Mas ela faz que não se lembra de nada, de absolutamente nada.

         A trama é inteligente, gostosa, vai envolvendo o espectador

Daí para a frente, vamos acompanhar as ações de espionagem e contra-espionagem industrial nos dias de hoje, tempo atual 2008, com algumas voltas ao passado, sempre com legendas para nos esclarecer as épocas, e as voltas vão sendo ao passado cada vez mais recente – em Roma foi dois anos atrás, depois veremos 18 meses atrás, depois 12 meses, cada vez mais rumo ao presente.

aduplicidade2É bem menos complexo do que parece, ou pode parecer, ou eu quis dar a entender que é. É uma trama de fato inteligente, gostosa, bem desenvolvida, e o embate eterno dos personagens centrais, que lembra, sim, A Honra do Poderoso Prizzi, e também as peripécias da boa dupla Bruce Willis-Cybill Shepherd em A Gata e o Rato/Moonlightning, é bem conduzido. O casal de astros – que já havia feito junto o dramão Perto Demais/Closer, de Mike Nichols – está bem, tem o que chamam de química; os dois conseguem nos botar em dúvida, ao terem eles mesmos suas dúvidas ao longo do caminho: afinal, há gato e rato? quem é o gato e quem é o rato?  

Confesso que logo no começo do filme fiquei um tanto com o pé atrás, achando que era uma daquelas tramas que eu chamo de “Essa regra cada vez mais comum segundo a qual Podendo-Complicar-a-Narrativa,-Por-que-Simplificar?” Depois fui, sem perceber, entrando na brincadeira, e me divertindo. Até porque o pano de fundo, a coisa da espionagem e contra-espionagem corporativa, feita por gente que antes trabalhava para governo, é colocada de uma maneira muito boa, muito engraçada – Paul Giamatti está ótimo, num papel propositadamente exagerado, over.

E o final é um brilho.

         O filme virou caso exemplar: Hollywood, you’ve got a problem

Mas aí, filme terminado, diversão divertida, lembrei da matéria assinada por Brooks Barnes, do New York Times, que O Globo publicou outro dia (30/8/2009) com o título e o olho que explicam muito: “Estrelas não garantem mais a venda de ingressos de filmes de Hollywood – Filmes com grandes astros tiveram estréias decepcionantes em 2009”. O caso deste Duplicidade aqui é um dos citados no texto. Diz a reportagem que as estrelas do primeiro time de Hollyood hoje – Denzel Washington, Julia Roberts, Eddie Murphy, John Travolta, Russell Crowne, Tom Hanks – não têm mais a capacidade de lotar os cinemas nos fins de semana de estréia nos Estados Unidos.

“A queda dos filmes com grandes estrelas é surpreendente”, diz Peter Guber, ex-executivo da Sony Pictures que agora atua como produtor. “Todos estão procurando respostas.”

Bem, se aqueles camaradas da indústria, que ganham milhões de dólares fora mordomias, não sabem o que está acontecendo, não é a besta aqui que vai ter respostas.

Mas, depois de ver Duplicidade, não pude me impedir de ficar pensando… Talvez seja o caso de procurar outras fórmulas, né não?

Talvez a fórmula “Vamos fazer tudo o que mandam os manuais para garantir que o filme seja um blockbuster” tenha se esgotado, ou no mínimo esteja se esgotando. Talvez seja o caso de eles pensarem que o próprio conceito de blockbuster teria que ser revisto, ou abandonado.

Talvez seja a hora de pensar que não dá mais para fazer filme com a pretensão de que ele agrade centenas de milhões de pessoas ao mesmo tempo. Talvez seja a hora de, como eles dizem, customizar – fazer coisas mais específicas para os tipos cada vez mais específicos de público. Filmes com custo mais baixo, para platéias menores.

Até porque tudo bem de vez em quando ver uma coisa grande como este Duplicidade, diversãozinha boa. Mas bom mesmo – para platéias adultas, maduras, especificamente falando – é Caramelo, O Amor Está no Ar, O Casamento de Rachel, Rio Congelado, Nem Parece Minha Irmã, Apenas uma Vez, para citar só uns poucos. Filmes mais baratos, mais profundos, que falem sobre coisas que verdadeiramente interessam – a vida o amor a morte, gente como a gente. 

Mas, sei lá. Problema deles lá, da grande indústria, com seus bilhões de dólares. Para os espectadores, sempre há uma infinidade de coisas boas para escolher.

Duplicidade/Duplicity

De Tony Gilroy, EUA-Alemanha, 2009

Com Julia Roberts, Clive Owen, Tom Wilkinson, Paul Giamatti, Dan Daily, Lisa Roberts Gillan

Argumento e roteiro Tony Gilroy

Música James Newton Howard

Produção Universal e Relativity Midia

Cor, 125 min

***

Título em Portugal: Dupla Sedução

2 Comentários para “Duplicidade / Duplicity”

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