2.5 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Um drama sobre família, amor, traição, juventude & maturidade, e mais cinema, dirigido pelo francês Claude Miller e inspirado na peça A Gaivota, do russo Anton Tchekhov (1860-1904). O elenco, reunindo atores de diferentes gerações, afiadíssimo, com atuações excelentes, é, na minha opinião, a melhor coisa do filme.
A peça de Tchekhov, de 1896, se passa numa grande propriedade no campo, à beira de um lago. A dona da propriedade, Arkadina, é uma atriz de teatro, e seu filho, Konstantin, um garoto jovem, acaba de escrever uma peça, que será apresentada para a família; na peça trabalha Nina, a jovem filha de um proprietário de terras vizinho, e que está namorando Konstantin.
Claude Miller – que foi assistente de Robert Bresson, Jacques Demy, Jean-Luc Godard e François Truffaut – e seu co-roteirista Julien Boivent transpuseram a ação para os dias de hoje, numa grande propriedade na Bretanha, próxima do mar. A dona da propriedade, Mado (interpretada pela grande atriz Nicole Garcia, ela própria diretora de bons filmes) é uma atriz, como a Arkadina de Tchekhov, mas de cinema. E, como na peça, seu filho Julien (Robinson Stévenin) vai apresentar um trabalho seu para a família de férias ali – um filme, um curta-metragem experimental, em que a estrela é a Lili do título do filme, que, como na peça russa, é filha de moradores daquela região.
Lili é interpretada por Ludivine Sagnier, essa jovem atriz belíssima e talentosa. Ludivine Sagnier está linda em todos os outros filmes que vi com ela – Oito Mulheres, Swimming Pool – À Beira da Piscina, Uma Garota Dividida em Dois, As Aventuras de Molière. Mas acho que nunca esteve tão exuberantemente bela quanto neste filme aqui; estava com 24 anos, mas há momentos em que parece ter ainda menos, parece uma Lolita pronta para enfeitiçar todos os H.H. que aparecerem à sua frente.
O diretor Claude Miller não é bobo, nem nada, e põe sua câmara – uma câmara bem competente, aliás – a serviço da beleza da menina, em longos close-ups. Ainda nos créditos iniciais, Ludivine-Lili tira a roupa com a naturalidade de uma criança de três anos de idade e trepa com o namorado Julien ao ar livre, num dos gramados da grande propriedade meio campestre, meio à beira-mar.
Mas a moça não é apenas linda – é boa de serviço. O rosto dela vai exprimir, ao longo do filme, uma ampla gama de sentimentos e sensações, inocência, dúvida, curiosidade, embaraço, sensualidade, tentação, orgulho, medo, dor.
Jeanne-Marie, que ama Julien, que ama Lili, que…
Mas então temos que Julien vai mostrar seu filme para as pessoas da casa, num galpão onde o espectador mais atento poderá ver uma foto de Truffaut num cartaz de seu filme mais lúgubre, beirando o macabro, O Quarto Verde/La Chambre Verte, de 1978. Entre as pessoas que assistirão ao filme estão, além dele mesmo e sua atriz Lili, sua mãe, Mado, e o atual marido dela, Brice (Bernard Giraudeau), um diretor de cinema famoso, e o tio de Julien, irmão mais velho de Mado, Simon (Jean-Pierre Marielle). Lá estarão também o caseiro, Guy (Marc Betton), sua mulher, Léone (Anne Le Ny) e sua filha, Jeanne-Marie (Julie Depardieu), mais o médico da família, Serge (Yves Jacques).
O espectador fica sabendo, ao longo dos primeiros 15 minutos do filme, que o médico Serge tem um caso com Léone, a mulher do caseiro. E que Jeanne-Marie é absolutamente apaixonada por Julien, que, perdidamente apaixonado por Lili, mal percebe a existência dela. Julie Depardieu dá um show como Jeanne-Marie, e receberia por isso dois Césars, de melhor atriz coadjuvante e melhor atriz jovem promissora. Ludivine Sagnier venceu como melhor atriz no Festival Internacional de Chicago.
Boa parte da ação – uns 80% da duração do filme – se passa ali, na propriedade de Mado, ao longo de um fim de semana de férias. Acompanhamos as histórias de amor, os conflitos, as contradições, o relacionamento daquelas pessoas. Bem para o final, faltando os outros 20% para terminar o filme haverá um corte no tempo, e ação avança cinco anos – e, evidentemente, não vou falar nada sobre o que acontece aí.
O veteraníssimo Michel Piccoli, de tantas dezenas de bons filmes, faz uma participação especial, no final do filme. Como é no final, não vou falar nada sobre o papel dele, mas queria registrar que ele aparece. É uma pequena homenagem do diretor Miller a um ícone do cinema francês da segunda metade do século XX, neste filme em que são citados também ícones que vieram da primeira metade, como Danielle Darrieux, Jean Gabin e Lino Ventura.
Miller e seu co-roteirista Boivent criaram alguns ótimos diálogos – não sei se alguns deles vieram diretamente do mestre russo; ainda vou verificar isso um dia. Copiei alguns, sem saber quais o iMDB já havia transcrito, e vejo que fiz bem, porque não há citações de diálogo algum no verbete sobre o filme no grande site-enciclopédia.
* Simon, o velho que reclama muito da vida, está fascinado por Lili, pela beleza exuberante da garota. O diálogo resume maravilhosamente o pensamento de um velho e a simplicidade de um jovem. Ele diz: – “A vida é curta, Lili. Sei que é um clichê, mas é verdade: a vida é curta.”
E Lili: – “A vida não é curta. Ela existe, e depois não existe mais. É simples.”
E Simon: – “A vida é incompreensível, absurda, as coisas não têm sentido.”
* Lili está passeando num bosque à beira-mar com Brice, o cineasta casado com a mãe de Julien. Julien detesta Brice porque este último é um cineasta de sucesso comercial, enquanto ele, na pureza e ingenuidade da juventude, acha que quem faz sucesso se vendeu, perdeu os ideais. Brice simpatiza com Julien, porque vê nele o jovem que ele mesmo já foi. Então Lili fala da coisa de ele ser famoso, amado pelo público.
Brice: – “O público é uma piada. Gosta mesmo é de porcaria. Foi ensinado a gostar de porcaria. Para ganhar o público, é preciso entrar no bueiro.”
Lili: – “O que significa entrar no bueiro?”
Brice: – “Significa se perder.”
* Brice está numa das salas do casarão, fazendo anotações num caderninho que carrega sempre consigo. Jeanne-Marie, a filha dos caseiros, apaixonada por Julien, entra na sala à procura de uma bebida – ela bebe bastante. O diálogo entre eles é longo, e transcrevo só algumas falas.
Brice: – “Nos filmes, os papéis secundários são sempre os mais marcantes. Um destino sacrificado, gente que ama em segredo a vida toda.”
Jeanne-Marie, algum tempo depois: – “É preciso ser humilde na vida. Procurar coisas calmas, modestas.”
Brice, algum tempo depois: – “Você é o personagem mais interessante aqui.”
Jeanne-Marie: – “Não quero ser interessante. Quero ser feliz.”
É isso. Não chega a ser um ótimo, um grande filme, mas é interessante, os personagens são ricos, os conflitos são fascinantes. E as atuações são primorosas.
A Pequena Lili/La Petite Lili
De Claude Miller, França-Canadá, 2003
Com Ludivine Sagnier, Nicole Garcia, Bernard Giraudeau, Robinson Stévenin, Jean Pierre Marielle, Julie Depardieu, Yves Jacques, Anne Le Ny, Marc Betton, Vanya Peirani-Vignes, Fani Kolarova; e, em participação especial, Michel Piccoli
Roteiro Claude Miler e Julien Boivent
Inspirado na peça A Gaivota, de Anton Tchekhov
Fotografia Gérard de Battista
Produção Les Films de la Boissière. Lançado na França 27/8/2003. no Brasil 21/2/2005
Cor, 104 min
**1/2
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