4.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Depois do Vendaval é daquele tipo raro, especialíssimo de filme que a gente não cansa nunca de rever. Não fica velho, não prescreve, não perde o brilho. Ao contrário, dá imenso e renovado prazer a cada nova revisão, sejam quantas forem. Daquele tipo que, se a gente fosse fazer uma lista dos dez filmes prediletos – não dos melhores, dos mais importantes, mas dos preferidos, dos mais amados, dos que mais dão prazer -, teria lugar garantido. Tem na minha; certamente tem na de muita gente.
É um daqueles filmes perfeitos, em que tudo funciona, tudo está no lugar certinho, não há nada sobrando, nada faltando. Uma bela trama, um texto excepcional, os atores certos, a música perfeita em cada momento.
É um filme sobre romance, raízes, terra natal, segunda chance, diferenças culturais, tradição x modernidade, valores, religião. Sobre alegria de viver e a opção por viver de mal com o mundo. Sobre humor, prazeres, pescaria, bebida – e, como estamos na Irlanda e o diretor é o descendente de irlandeses John Ford, é também sobre briga, luta, socos, esse esquisito jeito “macho” de ser.
Steven Spielberg, o mago, prestou duas homenagens belíssimas a Depois do Vendaval. (Nascido no finalzinho de 1947, tinha 5 anos quando o filme foi lançado, em 1952; deve ter visto, seguramente, numa reapresentação do filme, como eu vi pela primeira vez no Cine Tupi, em Belo Horizonte, no dia 13 de maio de 1962, no que na época era chamado de reprise, e agora chamam de reestréia.)
Na maravilhosa comédia pastelão 1941 – o único grande fracasso de bilheteria de Spielberg, uma sátira engraçadíssima e séria sobre as paranóias americanas -, seu compositor de sempre, John Williams, mete, no meio de uma cena de brigaria geral, americanos de uniforme de uma cor socando americanos de uniforme de outra cor, os acordes de um dos temas criados por Victor Young para a trilha sonora do filme de John Ford.
E, em E.T., o Extra-Terrestre, um dos maiores sucessos de bilheteria de todos os tempos, Spielberg refaz, quase literalmente, uma belíssima tomada de Depois do Vendaval. No meio de uma ventania, o garotinho mais novo, Elliott (Henry Thomas), pega a mão da coleguinha mais bonita da escola, puxa-a para perto de si e casca-lhe um beijo. É a recomposição exata da seqüência em que Sean Thorton chega ao chalé que acabou de comprar e descobre que Mary Kate Danaher está lá; venta forte lá fora, há ruídos altos de tempestade; Mary Kate se aproxima da porta para sair, Sean Thorton segura-a pela mão, puxa-a para perto de si e casca-lhe um beijo. Leva uma baita porrada na cara e, um segundo antes de ela fugir correndo, outro beijo.
Começando do começo
Mas botei o carro na frente dos bois. Vamos do começo – e que começo esplêndido, glorioso, delicioso.
Um sujeito grandão (John Wayne, mais à vontade ali, de gravata, colete e paletó do que montando um cavalo nas pradarias do Oeste) desce do trem em Castletown, interior da Irlanda. É o único a descer ali. A voz em off do narrador diz a primeira ótima frase de um filme pontuado por diálogos finos, inteligentes, irônicos, cortantes:
– “Bem, pois é. Vou começar do começo. Era um belo dia de primavera quando o trem parou em Castletown, com três horas de atraso, como sempre, e ele mesmo, o próprio, desceu. Não parecia um turista americano, de jeito nenhum. Não tinha máquina fotográfica, e, o que é pior, nem mesmo um anzol.”
Só pescador aparece naquele lugar perdido.
O grandão sem máquina fotográfica e anzol pergunta como se faz para chegar a Innisfree. Um funcionário da estrada de ferro começa a explicar (“Está vendo aquela estrada ali? Não é por ela, aquela não serve para você”), outro intervém, diz que sabe explicar melhor, e em segundos o forasteiro está cercado por cinco homens da ferrovia, o maquinista inclusive, e mais uma senhora que estava por ali, todos falando ao mesmo tempo, um interrompendo o outro, e a conversa vai extrapolando, passam a falar de pescaria. Alguém pergunta ao estranho que tipo de peixe ele quer pescar, ele diz que apenas quer saber o caminho para Innisfree. Recomeça a discussão entre os irlandeses.
Nisso, introduz-se na cena um sujeito pequenininho, terno preto, chegado numa charrete; vai silenciosamente até as malas do estranho, carrega-as para sua charrete. O forasteiro faz cara de quem acha esquisito, mas vai atrás. Aí John Ford faz uma tomada de três rostos, depois dos outros três: o povo da estação se pergunta o que, raios, alguém pode querer em Innisfree.
Corta, e temos tomadas de um campo esplêndido, verdejante, o baixinho conduzindo a charrete, o estranho escrachadão atrás, apoiado em sua bagagem, fumando um cigarro. O condutor volta e meia olha para trás, para a cara do outro, perscrutando, tentando adivinhar quem é ele, o que veio fazer. Há um primeiro diálogo entre eles:
O baixinho: – 1 metro e 95?
O grandão: – 1 metro e 90.
É o que diz, corretamente, a legenda, a tradução; no original, eles falam naquele ininteligível sistema deles de pés, seis pés e tanto, quatro pés e tanto.
Passa-se mais algum tempo, o do lugar olha para o estranho várias vezes, e há novo diálogo:
O baixinho: – Cincinatti?
O grandão: – Não. Pittsburgh.
A charrete dá uma parada diante de uma velha ponte sobre um belo riacho, o cara de Pittsburgh desce, vai até a ponte, fica olhando a paisagem linda, um chalé lá longe. Uma voz de mulher em off fala com ele, conta do tempo em que ele era criancinha. O sujeito volta para a charrete, pergunta para o condutor de quem é aquele chalé. Pertence à viúva Tillane, a mulher mais rica do lugar, mas ela provavelmente não vai querer vendê-lo. Mais ainda: por que um ianque de Pittsburgh iria querer comprá-lo? Aí o visitante abre o jogo e um grande sorriso:
– “Vou lhe dizer, Michaleen Oge Flynn, o pequeno jovem Michael Fynn, que cuidava de mim quando eu era pequeno. Porque eu sou Sean Thorton e nasci naquele chalé. E voltei para casa, e vou ficar aqui.”
Revelação feita, ficha caída, Michaleen (pronuncia-se Micalín) faz uma careta deliciosa, na pele de Barry Fitzgerald (Dublin, 1888, Dublin, 1961, quase 50 filmes entre uma data e outra, mas nascido para aquele exato papel). Faz careta, sorri, faz trejeitos, mas não perde a oportunidade de soltar uma boa frase sobre o tamanho do outro:
– “O que eles dão para os irlandeses comerem lá em Pittsburgh?”
Prosseguem no caminho mais um pouco, e encontram-se com o padre Peter Lonergan (Ward Bond), o nosso narrador, que vai em sentido contrário. Feitas as apresentações, vem mais uma frase boa, do padre, ele também um bom fraseur (todos os personagens, aqui, são bons fraseurs):
– “Ah, sim… Conheci sua família, Sean. Seu avô, ele morreu na Austrália, numa colônia penal. E seu pai, ele também era um bom homem.”
O padre Lonergan não apareceu ali por acaso; ele tem um assunto a tratar com Michaleen – a dica para Sean Thorton deixá-los a sós por um momento, afastar-se um pouco e ter, ele junto com os espectadores, uma visão do paraíso.
Plano geral, paisagem de sonho, a calma, a beleza do campo, dezenas de ovelhas andando pela grama. No meio delas, uma mulher linda, de cair o queixo, longos cabelos vermelhos como o céu no final do dia. Sean Thorton e os espectadores se apaixonam na hora por Mary Kate Danaher, o papel de Maureen O’Hara, esse monumento.
Choque de superpotências
Gastei uma imensidão para descrever o que John Ford nos mostra em menos de dez minutos de filme. Com mais outros dez, ele nos apresenta os elementos básicos de toda a história que virá em seguida. Mary Kate é irmã da possivelmente segunda pessoa mais rica de Innisfree, Will Danaher, sujeito irascível, brigão, metido a dono do lugar. Danaher – interpretado pelo gigantesco, para cima e para os lados, Victor McLaglen – vai bater de frente em Sean Thorton logo de cara, porque fazia tempo que vinha tentando comprar exatamente aquele chalé da viúva Tillane (Mildred Natwick). Quando Danaher irrompe feito um furacão e interrompe a conversa que ela está tendo com Sean Thorton, a viúva, num irlandês acesso de impaciência, resolve vender a propriedade ao ianque recém-chegado.
Estabelecida de cara essa guerra entre, digamos assim, as duas superpotências de Innisfree, imagine-se como será difícil um namoro entre o recém-chegado e a irmã do furioso Danaher. Ainda haverá a dificílima questão do dote da noiva a ser resolvida – e a insistente, teimosa, chocante pouca vontade de Sean Thornton de sair pro braço com o desafeto-possível-futuro-cunhado.
Essa pouca vontade de brigar tem importância fundamental na história; está no título original do filme, The Quiet Man (em Portugal, a tradução foi literal, O Homem Tranqüilo). Mary Kate ficará chocada e preocupada com essa inapetência. (Quando perguntam a Michaleen quem, afinal, é aquele gringo, ele responde: “Ele é um homem bom, tranqüilo, amante da paz, que veio para a Irlanda esquecer seus problemas. Claro, ele é um milionário, sabe, como todos os ianques. Mas ele é excêntrico – ah, ele é excêntrico. Tem um saco para dormir.”)
Em um filme repleto de diálogos soberbos, transcrevo mais dois. O primeiro é uma fala de Will Danaher, assim que a viúva Tillane resolve vender o chalé para Sean Thorton, e não para ele, Danaher:
– “Ele vai se arrepender até seus últimos dias – se é que vai viver tanto assim.”
A cena do diálogo abaixo acontece lá pelo meio do filme, quando Sean Thorton está fazendo a corte a Mary Kate dentro dos rígidos princípios irlandeses da época, sempre com a companhia de um terceiro – o terceiro sendo, é claro, Michaleen Flyn:
Sean (para Michaleen) : – “Não entendo isso. Por que a gente precisa que você venha junto? Lá nos Estados Unidos, eu passaria na casa dela de carro, buzinaria, e a moça viria correndo…”
Mary Kate: – “Viria correndo? Não sou mulher de ouvir buzina e ir correndo!”
Aí Michaleen Flynn – um sujeito que está sempre com um terrível, formidável, dinossáurica sede – estremece todo, como se tivesse visto o diabo em pessoa, e exclama:
“América – háh! Aquela Lei Seca!”
Conheça Innisfree
Tempos atrás, meu amigo Anélio Barreto visitou a Innisfree de John Ford, conversou com as pessoas onde o filme foi rodado em 1951, e fez um maravilhoso texto que publicou no jornal O Estado de S. Paulo. Não sei de outro jornalista que tenha tido esse privilégio. Desde que comecei a fazer este site, tinha vontade de publicar a reportagem dele aqui. Está aí, e é imperdível.
Depois do Vendaval/The Quiet Man
De John Ford, EUA, 1952
Com John Wayne, Maureen O’Hara, Barry Fitzgerald, Victor McLaglen, Ward Bond, Mildred Natwick
Roteiro Frank S. Nugent
Baseado em história de Maurice Walsh
Fotografia Winton C. Hoch
Música Victor Young
No DVD. Produção Republic
Cor, 129 min
R, ****
Título em Portugal: O Homem Tranqüilo
Sergio Vaz, lendo seu comentário concluí que você inventou um novo gênero, o filme escrito. A gente vai lendo e vai vendo as cenas,o chalé lá embaixo, o campo com as ovelhas e a bela Mary/Maureen, o grandalhão e sua briga com o outro, toda a intensidade dos fatos. Ainda hoje, dia seguinte da leitura, vejo o pequeno Michaleen e acho graça dele. Parabéns.
Dou nota mil para o Sérgio… Depois do Vendaval é sem qualquer dúvida um dos filmes mais apreciáveis do cinema… Diferentemente dele, assisti o filme quando ele foi lançado aqui no Rio de Janeiro… Foi tão emoldurado que a revista Seleções do Reader’s Digest publicou um anúcio de página inteira sobre ele… Sim, foi nesse tempo que eu vi Depois do Vendaval,”The Quiet Man”. Depois disso, alguns trechos apanhados aqui e ali até que ontem, assisti com todo o conforto, na minha poltrona de idosa a belíssima obra de John Ford…Maravilha… agora que tenho o DVD em casa, posso deleitar-me de vez em quando.
Tenho 122 filmes de John Wayne, Depois do Vendaval é sensacional, bem como os demais.