O Mistério do Farol / The Vanishing

2.5 out of 5.0 stars

(Esteve disponível na Netflix até 2/2025.)

Eu não indicaria para um amigo, ou para o eventual leitor deste site, o filme The Vanishing, no Brasil O Mistério do Farol, produção do Reino Unido de 2018. Não porque seja um filme ruim – não é. É uma produção caprichada, bem cuidada, dirigida com firmeza pelo dinamarquês Kristoffer Nyholm, com fotografia excepcional e belas atuações do elenco, em especial Gerard Butler e Peter Mullan.

Também não é porque seja um filme que defenda valores errados, imorais, tipo machismo, racismo, qualquer tipo de supremacismo. De forma alguma.

Ao contar uma história fictícia a partir de fatos reais – o desaparecimento misterioso e jamais explicado de três guardiões de farol de uma ilha remota ao largo da Escócia –, The Vanishing demonstra duas verdades tão tristes quanto incontestáveis. A de que, em situações de imensa tensão, os seres humanos podem se transformar em monstros capazes de crueldades inimagináveis, absurdas. E a de que, diante de um monte de dinheiro, uma barra de ouro, as pessoas podem perder completamente, inapelavelmente, toda a inteligência, a racionalidade, a razão.

Não indicaria o filme para ninguém porque vê-lo é uma experiência apavorante, chocante, tamanho o grau de violência crua que ele obriga o espectador a testemunhar.

Registro, e sem um pingo de vergonha, que Mary e eu tivemos que pular um trecho, tamanha a explicitude da violência.

Inspirado em fatos reais – mas uma história toda fictícia

O filme abre com este letreiro em letras brancas sobre fundo negro: “Em uma ilha isolada ao largo da costa da Escócia, três guardiões de farol desapareceram sem deixar rastros. Seu desaparecimento é conhecido como o mistério da Ilha Flannan. Inspirado em uma história real.”

Poucas vezes a expressão “inspirado em uma história real” foi tão bem usada. Porque o que vem depois desse letreiro é a mais pura e absoluta ficção, saída das cabeças mirabolantes de uma dupla de escritores e roteiristas, Celyn Jones & Joe Bone, já que simplesmente nunca se soube o que na verdade aconteceu com os três guardiães, como foi que eles desapareceram “sem deixar rastros”, como diz o próprio prólogo.

Quando o filme está ali com uns 10 dos seus 107 minutos de duração, comentei com a Mary que não dava para o espectador saber quando teria acontecido o desaparecimento dos guardiães do farol que de fato aconteceu na vida real. Nas primeiras sequências, ficamos conhecendo os três homens que embarcam em seguida em um pequeno barco que os leva até as ilhas Flannan. Nós os acompanhamos na viagem, vemos a chegada deles à ilha e o encontro com o grupo de três homens que havia ficado nas seis semanas anteriores ali completamente isolados do mundo, e agora voltariam à terra firme no mesmo barco.

Nada deixa evidente em que época aqueles fatos estão se dando – a não ser o fato de que não há telefone celular. Estamos, portanto, diante de uma história acontecida antes de 1990 – mas tanto poderia ser nos anos 1980 quanto, chutei, anos 1930.

O filme não especifica a data – nem tinha a obrigação de fazer isso.

O mistério da Ilha Flannan aconteceu em 1900. Exatos 118 anos antes do lançamento deste The Vanishing, o desaparecimento. O IMDb tem uma frase ótima sobre o filme: “Especulações sobre o que teria acontecido com os três homens ainda são abundantes depois de 118 anos”.

Toda a história criada por Celyn Jones & Joe Bone, tudo o que vemos no filme é ficção. Reais são apenas os nomes dos três desaparecidos – Thomas, James e Donald. Eles são interpretados, respectivamente, por Peter Mullan, Gerard Butler e Connor Swindells.

Não se mostra claramente quem são os três homens

O roteiro não se preocupa em explicar para os espectadores quem exatamente são aqueles três homens, Thomas, James e Donald, quais são os laços entre eles.

Thomas é o mais velho e o mais experiente dos três: trabalhava como guardião de farol havia já quase 30 anos. (Peter Mullan estava com 59 anos no lançamento do filme, e aparentava ser até um tanto mais velho que isso.) É inequivocamente o chefe da equipe. Lá pelo meio da narrativa o espectador fica sabendo que ele perdeu a mulher e as duas filhinhas, e a perda deixou um trauma nunca resolvido.

James tem experiência, já trabalhou como guardião de farol – embora as indicações sejam de que aquela é apenas uma das atividades a que se dedicou na vida. Nas primeiras sequências, passadas numa pequena cidade portuária, ele, antes de embarcar para a ilha do farol, estava vendendo alguma coisa. Nós o vemos receber a visita da mulher dele, Mary, com a filhinha, para se despedirem.

(Mary, que aparece apenas uns dois minutos em cena, é o papel de Emma King. Gerard Butler estava com 49 anos na época do lançamento.)

Donald é um garotão, aparentando aí algo entre 19 e 24 anos. (Connor Swindells tinha 22, e estava estreando no cinema, depois de ter participado de duas séries de TV.) Jamais havia trabalhado em um farol – e, no pequeno barco em que viajam até a ilha, passa mal boa parte do tempo. Não fica nada claro por que Donald foi escolhido para ser o terceiro homem da equipe, nem qual é a relação entre ele e James – mas os indícios são de que os dois são bastante amigos, aparecer da diferença de idade, e de que foi James que o indicou para Thomas.

Surge um pequeno barco com um homem e um baú

Até os 20 minutos de filme, acompanhamos o duríssimo dia-a-dia dos três homens para cuidar do farol, mantê-lo funcionando direito, e de tocar todas as tarefas ali na ilha. O rádio – única forma de contato com a terra firme, com o mundo, ao longo das seis semanas do turno deles – estava quebrado; Thomas trabalhava para tentar consertá-lo.

Quando estamos aí com uns 20 minutos, os três homens descobrem, na beira do mar, lá embaixo, ao pé da grande elevação em que foi construído o farol e em que eles vivem, um pequeno bote de remo e um homem deitado ao lado dele, desmaiado ou morto. Thomas ordena que Donald, por ser o mais jovem, desça até lá, seguro por cordas, e verifique a situação.

O homem parecia estar morto, segundo a primeira observação de Donald. Mas de repente ele se levanta e ataca o outro. Está afogando o rapaz – e os dois homens lá em cima se preparavam para que um deles descesse para ajudar. Mas Donald consegue pegar uma pedra no fundo da água e mata o desconhecido.

O pequeno bote de remo carregava um baú, que os três homens conseguem içar para a área superior, juntamente com o corpo do desconhecido.

Donald entra em pânico diante do horror de ter matado um homem – e a argumentação firme e correta de Thomas de que ele apenas reagiu, que foi clara legítima defesa, não consegue apaziguar o rapaz.

O horror está apenas começando.

Fica tudo muitíssimo pior quando o baú é aberto, e os três vêem que lá há algumas barras de ouro, evidentemente roubadas de um banco.

Fica tudo muitíssimo pior ainda quando um barco chega à ilha, com dois companheiros do morto procurando por ele.

Um mistério que habita no imaginário coletivo

Tudo isso aí, tudo o que filme mostra – repito, insisto – é ficção, é obra da imaginação dos dois roteiristas do filme, Celyn Jones & Joe Bone. Porque não há testemunha do que de fato aconteceu – na vida real, Thomas, James e Donald desapareceram, não sobrou ninguém para contar a história.

Há diversos textos na internet sobre o misterioso desaparecimento, alguns deles bem longos, detalhados. Transcrevo aqui um deles, do site nsc total, publicado em junho de 2024, sob o título “O misterioso desaparecimento dos guardiões do farol de Flannan Isles”.

“Em dezembro de 1900, as tranquilas e isoladas Flannan Isles, na costa da Escócia, se tornaram o centro de um dos maiores mistérios náuticos da história. Três guardiões de um farol – Thomas Marshall, James Ducat e Donald McArthur – desapareceram sem deixar vestígios.

“O enigma de seu sumiço continua a intrigar historiadores, investigadores e entusiastas de mistérios até hoje. Nesta reportagem, vamos entender um pouco melhor o que aconteceu neste caso misterioso e até quais obras ele pode ter inspirado.

“Thomas Marshall, James Ducat e Donald McArthur eram homens experientes, encarregados de manter o farol operacional e garantir a segurança das embarcações que navegavam pelo Atlântico Norte. A vida de um guardião do farol era isolada e desafiadora, exigindo resiliência e habilidade para enfrentar as adversidades do clima severo e da solidão.

“Em 15 de dezembro de 1900, a embarcação a vapor Archtor, ao passar pelas Flannan Isles, notou que o farol não estava funcionando. Dias depois, em 26 de dezembro, o navio de abastecimento Hesperus chegou às ilhas, encontrando o farol deserto. Joseph Moore, o oficial do farol, foi enviado para investigar. O que ele descobriu foi desconcertante: o local estava vazio, as portas trancadas, mas o relógio parado, a mesa posta para uma refeição e o diário dos guardiões registrava eventos até 15 de dezembro.

“A investigação revelou que uma tempestade havia atingido a região em torno da data do desaparecimento. As suposições variavam desde uma onda gigante arrastando os homens para o mar até hipóteses mais místicas, envolvendo abduções ou fenômenos sobrenaturais. Nenhum corpo foi encontrado, e nenhuma evidência concreta surgiu para explicar o que aconteceu.

“O mistério do desaparecimento dos guardiões do farol de Flannan Isles habita há algum tempo no imaginário coletivo. A estranheza do caso e a falta de uma explicação satisfatória inspiraram várias obras de ficção. Em 2018, o filme The Vanishing, estrelado por Gerard Butler, apresentou uma dramatização fictícia do evento, explorando temas de isolamento, paranóia e a luta pela sobrevivência.

“O caso de Flannan Isles também pode ter servido de inspiração para o filme O Farol, de Robert Eggers (2019). Em ambos, a solidão e a pressão mental enfrentadas pelos faroleiros levam a mistérios não resolvidos e a um ambiente de tensão crescente. Enquanto o caso real sugere diversas teorias, incluindo ondas gigantes e conflitos internos, o filme intensifica o suspense com elementos sobrenaturais e alucinações, criando uma atmosfera opressiva que explora a fragilidade da mente humana sob condições extremas.”

O mistério inspirou série de TV, canções…

Onda gigante, hipóteses mais místicas – abduções, fenômenos sobrenaturais… Huuuummm…

Diz a Wikipedia em inglês:

“Nenhum corpo foi encontrado, mas houve algumas misteriosas visões, resultando em ‘especulação nacional fascinada’ em periódicos da época. Histórias implausíveis vieram a seguir, como a de que uma serpente marítima havia levado os homens; que eles teriam arranjado um navio para levá-los embora para que começassem novas vidas; que eles teriam sido abduzidos por espiões estrangeiros; ou que eles haviam encarado seu destino através da malévola presença de um barco cheio de fantasmas”.

Ao longo destes últimos 124 anos, o mistério do desaparecimento tem sido literalmente cantado em prosa e verso. Em 1912 surgiu a balada “Flannan Isle”, de Wilfrid Wilson Gibson.,.

Em 1977, o mistério inspirou os primeiros episódios da 15ª temporada do fenômeno Doctor Who, a série da BBC adorada pelo público inglês. Os quatro episódios contavam que, no início do século XX, uma nave espacial de uma civilização extraterrestre havia se estabelecido na ficcional ilha inglesa Fang Rock para usar o planeta terra como base estratégica em sua guerra contra os inimigos de um outro sistema solar.

Pouco depois, em 1979, o compositor Peter Maxwell Davies compôs uma ópera moderna chamada The Lighthouse, o farol.

Ah, meu… Não pára de haver surpresas! Vejo agora, no meio da pesquisinha, que ninguém menos que o Genesis – Tony Banks, Mike Rutherford e Phil Collins, antes da chegada de Peter Gabriel e Steve Hackett – gravou uma canção chamada “The Mystery of Flannan Isle Lighthouse” ainda em 1968, durante os trabalhos do seu primeiro álbum; a canção acabou sendo deixada de lado, e só seria lançada em 1998, no álbum Genesis Archive 1967–75.

Tem mais informações ainda sobre obras inspiradas no mistério das ilhas Flannan, mas acho que já deu. Cansei. Vamos em frente, pra terminar.

Mais aprovado pelos críticos que entre espectadores

É preciso registrar: durante a pré-produção, e no início das filmagens, o filme tinha o título de Keepers, guardiães. Em alguns países, como a França e a África do Sul, esse título, Keepers, foi adotado.

Os 38 críticos que o site agregador de opiniões Rotten Tomatoes checou ate fevereiro de 2025 deram ao filme 84% de aprovação – o Tomatometer. O Popcorn Meter – média da avaliação dos leitores do site – registra 48% de aprovação. Um interessante caso em que a douta crítica gosta mais do filme do que nós, os seres humanos comuns que não somos nem críticos nem doutos.

No IMDb, a média das avaliações dos leitores é de 5,9 em 10.

Um último registro: o filme esteve disponível na Netflix até o dia 13 de fevereiro de 2025. Foi o fato de que ele iria ser retirado de cartaz, mais minha adolescente fascinação por faróis marítimos, que me fizeram ver o filme.

Bem, mas, como eu disse no início, não indicaria mesmo o filme para ninguém…

Anotação em fevereiro de 2025

O Mistério do Farol/The Vanishing

De Kristoffer Nyholm, Reino Unido, 2018

Com Gerard Butler (James Ducat),

Peter Mullan (Thomas Marshall),

Connor Swindells (Donald McArthur)

e Ólafur Darri Ólafsson (Boor), Søren Malling (Locke), Gary Lewis (Kenny), Gary Kane (Gherd), Roderick Gilkison (o garoto), Emma King (Mary, a mulher de James)

Argumento e roteiro Celyn Jones & Joe Bone

Fotografia Jørgen Johansso

Música Benjamin Wallfisch

Montagem Morten Højbjerg   

Casting Reg Poerscout-Edgerton      

Desenho de produção Jacqueline Abrahams

Figurinos Pam Downe

Produção Andy Evans, Maurice Fadida, Sean Marley, Jason Seagraves, Ade Shannon, Alan Siegel, Mad As Birds, Cross Creek Pictures, G-BASE, Head Gear Films, Kodiak Pictures.

Cor, 107 min (1h47)

**1/2

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