(Disponível no YouTube com o título Encontro Fatal.)
Blind Date, no Brasil Encontro com a Morte, produção britânica de 1959, é um filme policial, um thriller, uma história de assassinato. Mas, como é um filme de Joseph Losey, posto na lista negra e proibido de trabalhar nos Estados Unidos, a luta de classes é tão importante quanto a trama policial.
É o filme mais notável dos que Losey realizou na Grã-Bretanha, segundo o livro 501 Movie Directors, editado por Steven Jay Schneider, e “mostra que um marxista dos Estados Unidos entendia mais sobre o sistema de classes britânico do que a esquerda inglesa”. É… Os críticos costumam ser muito exagerados quando falam de Joseph Losey (1909-1984), um dos realizadores mais endeusados por eles.
O suspeito do assassinato, primeiro e único suspeito, é um jovem pobre. Veremos logo que o holandês Jan Van Rooyen, aí de uns 20 e poucos anos, é um aspirante a pintor, que trabalha numa galeria de arte e não tem dinheiro sequer para comprar roupas que sejam apresentáveis na Londres empertigada, formal daquele final dos anos 1950. A vítima, Jacqueline Cousteau, bela mulher aí de uns 30 e tantos anos, é muito, muito rica.
O jovem holandês é o papel do alemão Hardy Krüger. A bela dama rica, o da francesa Micheline Presle.
A mulher rica se interessa pelo pintor imigrante e pobre
O filme começa com o rapaz Jan andando pelas ruas de Londres, feliz feito pinto no lixo, rumo ao apartamento de Jacqueline. Quando chega, encontra a porta aberta, e vai entrando, chamando por ela. É um apartamento amplo, muito, muito amplo, e ele passa por vários cômodos chamando seguidamente “Jacqueline! Jacqueline!”. Parece se sentir muito á vontade. Põe para tocar um disco, um jazz barulhento. Examina uma coisa aqui, outra ali. Junto a um sofá, encontra um envelope com o nome “Jan” – com um volume gordo de notas de libras. Recosta a cabeça no sofá, fecha os olhos – e dois policiais uniformizados, um deles com as insígnias de sargento, entram na casa.
Diante das primeiras perguntas do sargento (o papel de Gordon Jackson), Jan demonstra uma atitude desafiadora. À pergunta “Quem o convidou para vir aqui?”, responde com a mesma questão.
Chega um inspetor, o inspetor Morgan (o papel do galês Stanley Baker, à direita na foto acima). Morgan será um dos três personagens centrais da história, ao lado do jovem Jan Van Rooyen e de Jacqueline Cousteau.
Pouco depois, chega um segundo inspetor, Westover (John Van Eyssen). Fica imediatamente claro que os dois não são propriamente amigos. Morgan pergunta ao colega por que seria que a Yard considerava aquele caso tão especial, a ponto de designar dois inspetores para cuidar dele. – “É como usar um machado para afiar um lápis”, compara. “A Yard me mandou vir aqui, e aqui estou”, diz Westover.
Morgan encontra, em uma caixinha fechada sobre uma escrivaninha, um punhado de envelopes de cartas, e entrega para o sargento guardar para exame.
Finalmente, Jan concorda em dizer o que está fazendo ali: veio se encontrar com uma dama. Ao que o inspetor Morgan questiona: – “Você veio se encontrar com uma senhora vestido assim?”
Jan está vestido de terno, com gravata – mas, aos olhos dos ingleses, aquele terno, aquela camisa escura, aquela gravata não eram de boa qualidade.
– “Esta é a única roupa que eu tenho.”
Já se passaram, a esta altura, 13 dos 96 minutos do filme.
Quando estamos com 17 minutos, Jan é levado para um quarto no qual ele ainda não havia entrado. Ele vê – e o espectador vê em um close-up – um pé de mulher, usando um sapato de salto alto e com uma pulseira na perna. Só isso – e o rapaz passa mal ao ver que Jacqueline Cousteau está morta.
A partir daí, finalmente Jan começa a contar para o inspetor Morgan como ele havia conhecido Jacqueline – e aí veremos, em flashbacks, como começou o relacionamento do jovem pobre com a mulher endinheirada.
Conheceram-se na galeria de arte em que ele trabalhava. Ao saber que ele era pintor, ela pediu para ter aulas com ele. Passou a frequentar a casa bem humilde dele – e iniciou-se um romance.
O inspetor Morgan é fiel à classe social dos pais
Como tantas vezes na vida, e como sempre nas novelas e filmes policiais, as coisas não são bem o que a princípio parecem, e haverá uma imensa surpresa na trama. Que, evidentemente, não vou revelar. Mas creio que não é spoiler relatar que, quando o filme já está com 58 dos seus 96 minutos, surge no apartamento da ricaça assassinada, para absoluta surpresa do inspetor Morgan, o comissário chefe da Scotland Yard, Sir Brian Lewis (Robert Flemyng). – “Sir Brian!”, diz o Morgan, atônito.
Sim: relatar isso não é spoiler, não entrega nada sobre a investigação policial em si, não estraga o desenrolar da trama central. Mas me parece o cerne do que Losey queria dizer sobre a sociedade britânica, o capitalismo, a diferença entre as classes.
Fica absolutamente claro para o espectador que, para a chefia da polícia metropolitana de Londres, o inspetor Morgan era um excelente profissional, um exímio investigador – mas não chegava a ser exatamente “de confiança”, quando surgiam temas sensíveis tipo defender a todo custo as pessoas importantes, do alto escalão do serviço público, do governo.
Há um momento em, respondendo a Ian Van Rooyen, Morgan diz que não é um gentleman. Em outro momento, ele faz questão de dizer que é filho de motorista. Consciência de classe: quem é filho de working class permanece não sendo gentleman, permanece sendo working class – mesmo se chegou a inspetor da Scotland Yard por seus próprios méritos.
O próprio Sir Brian faz questão de deixar claro que havia enviado o outro inspetor, Westover, por não confiar nas simpatias de Morgan com a classe social que não era a dele. E abre o jogo para o subordinado, informando que aquelas cartas endereçadas a Jacqueline Cousteau que ele havia descoberto “eram recibos de depósitos feitos a seu favor por Sir Howard Fenton”.
– “Sir Howard Fenton…”, repete o inspetor Morgan, deixando evidente que aquele era um nome conhecido, de alta figura do governo. E, quase falando para si mesmo, ele diz: – “Não sei como vamos fazer o nome ficar fora disso.”
O comissário ataca de frente: – “Sir Howard está neste momento na Alemanha, tratando de negociações importantes. Morgan, ele não pode ser relacionado com a morte dessa mulher. Tudo o que é necessário para destruir uma carreira brilhante de um alto funcionário público, e arruinar delicadas negociações, é uma palavra para a imprensa.”
E então ele sugere que Morgan converse com aquele suspeito, diga a ele que será acusado de morte culposa, e não de homicídio em primeiro grau, de tal forma que…
O próprio Morgan completa: – “Assim ele confessaria, e o caso estaria resolvido imediatamente, com o mínimo de publicidade e proteção máxima para Sir Howard Fenton”.
A diferença de idade dos par central é menor do que parece
Todos os atores estão impecavelmente bem no filme, desde esse Robert Flemyng que só aparece nessa sequência que é o centro nevrálgico do filme até, claro, os protagonistas – o alemão Hardy Krüger, a bela francesa Micheline Presle, esse galês Stanley Baker.
Interessante saber que ele não era o ator que Joseph Losey queria para o papel do inspetor da Scotland Yard que vinha da working class. O diretor queria Peter O’Toole. O IMDb, que traz essa informação, não detalha por que afinal Peter O’Toole acabou não ficando com o papel, mas, na minha opinião, essa é mais uma das infinitas provas de que Deus é melhor diretor de casting que há. O’Toole é bonito demais, é todo refinado demais para o papel do inspetor duro, rude, no gentleman at all. Stanley Baker tem muito mais o physique du rôle.
Como diz Rick Blaine-Humphrey Bogart para o capitão Louis Renault-Claude Rains no final de Casablanca, aquilo foi o começo de uma bela amizade. Joseph Losey, expatriado como o próprio Rick Blaine, voltaria a dirigir Stanley Baker em quatro outros filmes, depois deste Blind Date. Entre eles Eva (1962) e Estranho Acidente (1967), em que o diretor americano reuniu seus dois atores prediletos, Baker e Dirk Bogarde.
Um detalhinho sobre Stanley Baker (1928-1976): seu pai era trabalhador nas minas de carvão do País de Gales. Mais working class, impossível.
Outro detalhinho, este sobre as idades dos principais atores. No filme, como já foi dito, a personagem interpretada pela parisiense Micheline Presle é muitos, muitos anos mais velha que o jovem pintor feito pelo berlinense Hardy Krüger. E isso se deve, sem dúvida, ao talento deles e ao trabalho das equipes de maquiagem e cabelo, porque a diferença de idade entre os dois atores é de apenas ridículos seis anos. Micheline é de 1922, Krüger de 1928 – e, portanto, no ano das filmagens e do lançamento deste Blind Date, ele estava com 31 e ela com 37 anos.
Aqui é impossível deixar de registrar: em março de 1945, semanas antes da rendição da Alemanha nazista, o jovem Krüger, então com 16 anos, foi convocado pelo Exército. Felizmente para o cinema, sobreviveu. Já havia trabalhado em um filme aos 15 aos, Junge Adler, em inglês The Young Eagles, e, a partir de 1949, estabeleceu uma sólida carreira no cinema alemão do pós-guerra. A partir de Hatari! (1960), passou a aparecer também em filmes britânicos e norte-americanos.
Ainda durante a guerra, do outro lado das trincheiras, Micheline Presle se firmava como atriz na França ocupada pelos nazistas. Ela estreou também aos 15 anos de idade, ainda antes do início da guerra, em 1937, e. em 1945, já havia participado de 18 outros filmes. Como tantos e tantas estrelas européias, Micheline teve um período hollywoodiano, entre 1949 e 1954, que coincidiu com o tempo em que durou seu segundo casamento, com o ator e produtor William Marshall. Após o divórcio, voltou para a França – embora tenha ainda aparecido em um ou outro filme americano.
O filme veio pouco antes do grande escândalo Profumo
Blind Date se baseou no romance policial homônimo escrito pelo jornalista inglês Leon Alexander Lee Howard (1914–1978), que foi o editor do Daily Mirror por cerca de dez anos. Um tanto como hobby, o jornalista escreveu quatro romances, com o nome de Leigh Howard.
Literalmente, “blind date” é encontro às cegas – e, como diz perfeitamente o IMDb, “apesar do título, o filme não inclui qualquer encontro que seja – em qualquer sentido – às cegas”.
Talvez por isso os exibidores norte-americanos tenham resolvido mudar o título. Nos Estados Unidos, o filme é Chance Meeting, encontro casual. Em Portugal, ele se chamou Encontro Fatal – e é com esse título que o filme pode ser encontrado e visto, de graça, no YouTube. Quando foi lançado comercialmente no Brasil, teve com o título de Entrevista com a Morte – embora também não contenha propriamente uma entrevista com a morte.
Os exibidores franceses escolheram L’enquête de l’inspecteur Morgan – e isso aí, uma investigação do inspetor Morgan, o filme de fato tem.
O Guide des Films de Jean Tulard resume a trama de L’enquête de l’inspecteur Morgan – incluindo o final surpreendente – no primeiro parágrafo do verbete sobre o filme. No segundo parágrafo, o da avaliação, diz: “Um filme ‘brechtiano’ em que tudo é centrado nos relatos de classes: ver a sequência célebre em que Sir Brian Lewis pede a Morgan que sufoque o caso para evitar que o escândalo espirrasse sobre Sir Howard Fenton, com o que o policial, considerando sua origem proletária, recusa.”
Sim, brechtiano, sem dúvida alguma. Joseph Losey visitou a Europa nos anos 1930, antes do início da Segunda Guerra, e voltou muito influenciado por Bertold Brecht; dirigiu teatro, inclusive Galileu Galilei do mestre alemão, antes de se dedicar ao cinema.
Mas é um tanto simplista dizer que o inspetor Morgan se recusa a obedecer. A rigor, ele fica extremamente dividido entre fazer o certo e com isso desobedecer às ordens e a solução mais fácil para sua sobrevivência de fazer o que chefe mandou.
Em seus guias, Leonard Maltin dá 2.5 estrelas em 4 para Chance Meeting: “Kafquiana história de pintor que é acusado injustamente pelo assassinato da namorada. Pequeno mistério intrigante tem muito falatório e perde o momento inicial. Título britânico: Blind Date.”
Uma apreciação de um francês, outra de um norte-americano. O Film Guide da revista inglesa Time Out começa seu verbete sobre “Blind Date, também conhecido como Chance Meeting, com um registro interessantíssimo, precioso: o de que o filme foi feito apenas quatro anos antes do Caso Profumo.
John Profumo era ministro da Guerra no gabinete do primeiro-ministro conservador Harold Macmillan, e teve um caso com uma garota aspirante a modelo chamada Christine Keeler (na famosa foto ao lado) – que também tinha um caso com o capitão Yevgeny Ivanov, um adido naval na embaixada da União Soviética em Londres. Foi, na definição da Britannica, um dos mais espetaculares escândalos sexuais do Reino Unido no século XX, e ajudou a derrubar o gabinete liderado por Macmillan.
“Feito quatro anos antes de o Caso Profumo dar a tais escândalos uma significação de vida real, o thriller de Losey – baseado na novela de Leigh Howard – trata do assassinato da amante francesa de um diplomata (Presle) e as pressões sobre um policial cínico (Baker) para colocar o caso nos ombros de um outro amante dela (Krüger), um pintor holandês das classes mais baixas. Embora o roteiro seja dramaticamente fraco, a visão precisa de Losey sobre os personagens em termos de conflito de classes e obsessão erótica dá ao filme um tom cortante ausente no trabalho da maior parte dos diretores britânicos do período.”
Anotação em setembro de 2024
Entrevista com a Morte/Blind Date
De Joseph Losey, Reino Unido, 1959
Com Hardy Krüger (Jan Van Rooyen),
Stanley Baker (inspetor Morgan),
Micheline Presle (Jacqueline Cousteau).
Robert Flemyng (Sir Brian Lewis, o comissário chefe da polícia), Gordon Jackson (o sargento), John Van Eyssen (inspetor Westover), Jack MacGowran (o carteiro), George Roubicek (policial), Redmond Phillips (o legista)
Roteiro Ben Barzman, Millard Lampell
Baseado no livro de Leigh Howard
Fotografia Christopher Challis
Músicas Richard Rodney Bennett
Montagem Reginald Mills
Desenho de produção Richard MacDonald
Figurinos Morris Angel
Produção David Deutsch, Sydney Box Associates, Independent Artists.
P&B, 96 min (1h36)
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Título nos EUA: “Chance Meeting”. Na França: “L’enquête de l’inspecteur Morgan”. Em Portugal: “Encontro Fatal”.