(Disponível no YouTube em 1/2024.)
Produção simples, de orçamento bem pequeno e diretor nada marcante, Walter A. Doniger, sem astros e estrelas, um típico filme B, obscuro, pouquíssimo falado, Unwed Mother, de 1958, mereceu do crítico Leonard Maltin a cotação de 1.5 estrelas em 4 e uma única, massacrante frase: “O título diz tudo neste programa não sensacional”.
Unwed mother. Literalmente, mãe não casada. Em bom Português, mãe solteira.
E aí é que está. Unwed Mother não é um grande filme, mas também não é ruim, de forma alguma. E é um interessantíssimo documento de como a sociedade norte-americana tratava da questão das mães solteiras, naquele final da década de 1950, pouquíssimos anos antes das gigantescas mudanças comportamentais que viriam nos anos 1960, com o feminismo, a pílula anticoncepcional, a contracultura, os hippies, a revolução sexual.
Pouquíssimos anos – e, no entanto, meu Deus do céu e também da Terra, que diferença! Como os costumes, os hábitos, as pessoas, o mundo, como tudo era mais careta, nos anos 50!
Para os espectadores mais jovens, nascidos e criados em um mundo muito mais evoluído, com muito menos regras rígidas, imposições, preconceitos, deve sem dúvida ser difícil entender a história dessa pobre moça Betty, a protagonista da história, interpretada por uma atriz da qual eu jamais ouvira falar, Norma Moore, 23 anos de idade em 1958, o ano de lançamento do filme.
Nos anos 70, no Brasil e seguramente na imensa maioria dos países do Ocidente, ser mãe solteira era a coisa mais comum do mundo – amigas ou conhecidas minhas, e de todas as pessoas ao meu redor, escolhiam ter filhos como “produção independente”, como se dizia na época. Nos anos 50, como bem mostra o filme, era um escândalo, um crime, um pecado gravíssimo.
Unwed Mother é um filme que tem qualidades – mas, sobretudo, é um documento fascinante para qualquer pessoa que se interesse por História, comportamento, sociedade. Sequer tem título em Português, por não ter sido lançado comercialmente aqui – mas agora está disponível no YouTube, de graça como um passeio no parque.
Tem, necessariamente, que ser visto levando-se em conta a época em que foi feito, a época que retrata. Sem contextualizar, fica impossível compreender a trama.
Uma mocinha inocente do interior. E um perfeito canalha
A trama foi criada por um sujeito chamado Anson Bond (1914-1979), que também assina o roteiro, juntamente com Alden Nash (1903-1996). E a questão central da história – a gravidez de Betty – só aparece depois da metade do filme.
Como todo filme B, Unwed Mother é mais curto que o padrão mais comum dos longa-metragens: tem apenas 74 minutos, 1h14. A gravidez da protagonista surge quando estamos com 40 minutos de filme. O que me deixa numa situação um tanto incômoda, porque sempre procuro relatar apenas os eventos que acontecem no início da narrativa, até ali pelos 20, no máximo 30 minutos de filme. Entendo que ir além disso é, a rigor, a rigor, spoiler. Mas neste Unwed Mother o próprio título seria, por esses meus critérios, uma espécie de spoiler…
Na primeira sequência do filme, ficamos conhecendo Betty Miller e também o sujeito que mais tarde irá engravidá-la, um tal Don Bigelow – o papel de Robert Vaughn, o único ator famoso do elenco.
Betty está começando a trabalhar em uma grande loja de departamentos; ainda não conhece os outros funcionários, ainda está aprendendo o serviço. Na sequência de abertura, está carregando diversas caixas, tentando colocá-las em uma prateleira, no alto, e para isso tem que subir numa escada. Atrapalha-se, e esse Don Bigelow vem rapidamente em socorro dela – com segundas, terceiras, milésimas intenções, conforme o espectador percebe imediatamente.
Com uns cinco minutos de filme, a situação básica está dada, já foi apresentada com a maior clareza para o espectador. Betty acabava de chegar a Los Angeles, com a mãe viúva, uma experiente funcionária de salão de beleza, vindas de sua cidadezinha de interior, Visalia. É uma jovem absolutamente inocente, ingênua, sem qualquer malícia, sem qualquer noção dos perigos do mundo, uma Chapeuzinho Vermelho pronta para cair nas garras do Lobo Mau.
E Don Bigelow é o perfeito Lobo Mau. Um absoluto, irremediável canalha.
Os atores foram muito bem escolhidos para seus papéis
O diretor Walter A. Doniger não mereceu figurar no Dicionário de Cinema – Os Diretores de Jean Tulard. Nem no Dicionário de Cineastas de Rubens Ewald Filho. Nem no The International Dictionary of Films and Filmakers – Directors de Christopher Lyon.
Sua filmografia tem 28 títulos como autor/roteirista e 59 como diretor. Em uma passada de olhos pela filmografia, o que mais me chamou a atenção foi que ele dirigiu 173 episódios da famosa série A Caldeira do Diabo/Peyton Place, entre 1964 e 1968, com Dorothy Malone no papel que havia sido de Lana Turner no filme homônimo de 1957. Dirigiu também 17 episódios da série Bat Masterson (1958-1960) e um da série Maverick, exatamente em 1958, o mesmo ano deste Unwed Mother.
O filme foi produzido pela Allied Artists Pictures, uma major minor, maior menor, como se usava para designar os estúdios pequenos, secundários. A Allied surgiu em 1953, a partir da Monogram, e fez filmes como Vampiros de Almas, A Ilha do Pavor, Invasão do Outro Mundo (todos de 1956), A Mulher de 15 Metros (1958). Os títulos dão uma idéia dos temas – mas não significam que eram filmes ruins. Vampiros de Almas, no original Invasion of the Body Snatchers, foi dirigido por Don Siegel e se transformou em um clássico, que seria refilmado em 1978 em uma produção classe A, com direção do grande Philip Kaufman e estrelado por Donald Sutherland, Jeff Goldblum, Veronica Cartwright e Leonard Nimoy. E Invasão do Outro Mundo/Not of This Earth é do realizador cult Roger Corman.
Diretor pouco importante, estúdio pequeno, produção modesta de orçamento baixo. Sim – mas filme B não é sinônimo de filme ruim. Nem elenco sem astros e estrelas significa más interpretações. Como já foi dito, só há um nome bastante conhecido no elenco, o de Robert Vaughn, mas todos os atores estão bastante bem.
E houve imenso acerto na escolha dos atores para os seus papéis. Tanto Robert Vaughn quanto Norma Moore têm o physique du rôle perfeito. Norma Moore tem o rosto, o jeito, as maneiras dessa pobre, ingênua moça do interior que chega à cidade grande completamente despreparada para enfrentar seus perigos. E dificilmente haveria alguém mais acertado para o papel do canalha do que Robert Vaughn, um ator que, na minha opinião, não desperta a mínima simpatia do espectador,
Foram igualmente muitíssimo bem escolhidas as duas atrizes que fazem papéis importantes, Claire Carleton e Jeanne Cooper. Claire Carleton tem todo o jeito da mulher simples, trabalhadora, honesta do interior – ela faz Mrs. Miller, a mãe de Betty. E Jeanne Cooper também está perfeita como a mulher que dirige com competência, firmeza, mas também uma boa dose de carinho, a Mary Wiggam Foundation Home, a instituição para mães solteiras que acolhe Betty.
O filme é ousado, corajoso, e por isso merece respeito
Os cartazes de Unwed Mother trazem a frase impressionante: “20,000 anguished girls wrote its blistering story”. 20.000 moças angustiadas escreveram a história apavorante (do filme).
A cada ano – 20.000 a cada ano. O IMDb registra que a tagline, a frase de marketing dada pelo estúdio ao filme era “Over twenty thousand girls every year live this bitter story!” Mais de 20.000 moças a cada ano vivem essa história amarga.
E, no entanto, não são muitos os filmes americanos que falam de mães solteiras, e das instituições como essa fictícia Mary Wiggam Foundation Home criada para Unwed Mother, que existiram até ali pelos anos 70, quando a maternidade fora do casamento deixou de ser essa coisa considerada escandalosa, pecaminosa, quase criminosa.
Há pelo menos dois grandes filmes que abordam a questão das mães solteiras na Irlanda, onde foram comuns casos absolutamente escandalosos de instituições – em geral ligadas à Igreja Católica, predominante no país – que acolhiam moças grávidas, as tratavam em condições análogas às da escravidão, e doavam seus filhos para famílias abastadas. Philomena (2013), do grande Stephen Frears, com Judy Dench e Steve Coogan, e Em Nome de Deus/The Magdalene Sisters (2002), de Peter Mullan, com Eileen Walsh, Dorothy Duffy e Nora-Jane Noone, vão muito fundo na vergonhosa, intolerável maneira com que eram tratadas as moças que “caiam no pecado”.
Um levantamento do Senado do Canadá contabilizou que mais de 300 mil “unmarried Canadian women” foram forçadas a entregar seus bebês para adoção. Uma reportagem da CBC, Canadian Broadcast Corporation, informa: “Entre 1945 e 1971, cerca de 600 mil dos chamados ‘nascimentos ilegítimos’ foram registrados, e segundo um estudo recente (e em breve um livro), White Unwed Mother: The Adoption Mandate in Postwar Canada (mãe branca não casada: a adoção obrigatória no Canadá do pós-guerra), 95 por cento das mulheres que viviam em maternity homes (casas maternais) durante essa época entregaram seus bebês para adoção.”
Na Austrália, em 2013 o governo pediu oficialmente desculpas a milhares de mães – em sua maioria solteiras – que foram obrigadas a entregar seus bebês para adoção entre os anos 1950 e 1970. Um relatório do Parlamento australiano concluído um ano antes havia contabilizado que mais de 225 mil crianças haviam sido afastadas de suas mães, forçadas a dá-las para adoção, principalmente por entidades religiosas.
Em uma pesquisa bastante superficial, não encontrei dados sobre a questão no Brasil. Mas isso não importa.
Assim como não me importou, também, a forma ofensiva, caricatural, com que o filme trata do médico que pratica abortos – mostrado como uma figura nojenta, criminosa, na interpretação exagerada, grotesca, do ator Timothy Carey. Sou uma pessoa visceralmente a favor do direito ao aborto, em qualquer circunstância (assim como visceralmente a favor do direito à opção pela morte digna), mas relevei, deixei passar a maneira brutal com que o filme fala do aborto, porque, diabo, o mais importante, em Unwed Mother, é a coragem de tratar abertamente do tema difícil, controvertido, naquela década careta, hipócrita, em que o Código Hays, o código de autocensura dos estúdios, ainda estava em vigor.
O Código Hays era contra a exibição de mulheres com barrigas de gravidez. Talvez os pios defensores dos valores tradicionais da família que lutaram pela existência da censura achassem que seria melhor mostrar que os filhos vinham das cegonhas.
Filme B, pouquíssimo conhecido, pouquíssimo falado, Unwed Mother mostra mulheres com o barrigão que a caretice do Código Hays mandava que não deveria ser exibido nas telas dos cinemas. Só por isso as pessoas que gostam de cinema deveriam tirar o chapéu para o filme.
Anotação em janeiro de 2024
Unwed Mother
De Walter A. Doniger, EUA, 1958
Com Norma Moore (Betty Miller)
e Robert Vaughn (Don Bigelow, o canalha), Claire Carleton (Mrs. Miller, a mãe de Betty), Jeanne Cooper (Mrs. Horton, a administradora da casa para mães solteiras), Diana Darrin (Diana, colega na casa para mães solteiras), Billie Bird (Gertie, a empresária da equipe de dançarinas), Ron Hargrave (Bem), Kathleen Hughes (Linda), Sam Buffington (Mr. Paully), Dorothy Adams (Mrs. Paully), Ken Lynch (Ray Curtis, o agente da liberdade condicional), Joan Lora (Mary Ellen), Ralph Gamble (reverendo Benton), Colette Jackson (Louella), Timothy Carey (o médico de abortos), Eve McVeagh (Elsie), Dawn Richard (colega de Betty), Ralph Reed (Jake)
Roteiro Anson Bond, Alden Nash
História de Anson Bond
Fotografia Lothrop B. Worth
Música Emil Newman
Montagem Neil Brunnenkant
Direção de arte Dave Milton
Produção Joseph Justman, Allied Artists Pictures.
P&B, 74 min (1h14)
**1/2