Em agosto de 1945, quando os americanos jogaram uma bomba atômica sobre Hiroshima e logo em seguida uma outra sobre Nagasaki, Akira Kurosawa estava com 35 anos. Foi um ano importante em sua vida pessoal: em fevereiro, o jovem diretor e roteirista e a namorada, Kiyo Kato, se casaram, e, em dezembro, ela lhe daria seu primogênito, Hisao. Seu quarto longa-metragem, Os Homens que Pisaram na Cauda do Tigre, concluído naquele ano, foi proibido.
Exatos 45 anos depois, em 1990, unanimemente reconhecido como um dos maiores cineastas da História, Kurosawa recebeu um Oscar honorário pelo conjunto da obra – ou, nas palavras da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, “por realizações cinemáticas que inspiraram, deleitaram, enriqueceram e divertiram audiências de todo o mundo e influenciaram realizadores ao redor do planeta”. E foi também homenageado no Festival de Cannes, que exibiu, hors-concours, seu filme daquele ano, Sonhos – que viria a ser sua antepenúltima obra.
A ação do filme feito e lançado em 1991, aquele que seria o penúltimo opus de Akira Kurosawa, se passa em agosto de 1990, o mês em que se completavam 45 anos da explosão das bombas atômicas de 1945. E tudo acontece exatamente em Nagasaki e seus arredores.
Em Rapsódia em Agosto, o grande Kurosawa nos mostra como três gerações de japoneses conviviam com as lembranças da tragédia de 9 de agosto de 1945, e como enxergavam. 45 anos depois, as relações com os cidadãos do país que lançou as bombas.
É um filme de beleza, sensibilidade e sabedorias absolutamente extraordinárias, acachapantes, chocantes, inesquecíveis.
Quatro garotos de férias na casa da avó
Rapsódia em Agosto abre nos mostrando quatro jovens aí entre uns 12 e 18 anos – dois garotos, duas garotas. O mais velho, creio, é Tateo (Hidetaka Yoshioka), o que deve ter em torno de 18 anos – ele comenta que acabou de entrar para a faculdade. O mais jovem do grupo é o outro garoto, Tami (Tomoko Ohtakara), que parece ter uns 12. As duas garotas ficam entre os dois meninos; eu chutaria que Shinjiro (Mitsunori Isaki) teria aí uns 17, e Minako (Mie Suzuki) teria cerca de 14 ou 15.
Os nomes dos personagens, dos jovens atores que os interpretam e a idade deles não são fundamentais – e eu posso estar errado aí nos chutes que dei no parágrafo acima.
O importante é perceber (e isso o espectador percebe de imediato, é claro), que os quatro garotos são todos parentes e estão passando uns dias de férias com a avó, na casa dela – um pequeno mas bem arrumado, bem arranjado sítio nos arredores de Nagasaki.
O em breve universitário Tateo é irmão de Minako. O garotinho Tami, o caçula da turma, é irmão de Shinjiro. São primos-primeiros – Tateo e Minako são filhos de Yoshie, e Tami e Shinjiro são filhos de Tadao. Yoshie e Tadao são filhos da matriarca da família, Kane (o papel da extraordinária Sachiko Murase).
Parece um pouquinho confuso? Bem, é confuso, mas só um pouquinho; é como em qualquer filme em que somos apresentados a uma família de vários membros, ou como na vida real, em que acontece a mesma coisa – a gente leva um tempinho a entender exatamente quem é quem.
Basicamente, é assim: todos eles parecem inteligentes, bem informados, bem formados. São de família classe média de país de novo rico, após se recuperar da miséria em que o final da Segunda Guerra Mundial o deixou – miséria que vários filmes anteriores de Akira Kurosawa mostraram magnificamente.
Todos se vestem exatamente como adolescentes ocidentais, em geral com calças jeans e – detalhe interessante – camisetas com nomes de universidades americanas.
Tateo, o mais velho, é muito inteligente, bem informado. Sua prima Shinjiro é como ele, inteligente, bem informada, curiosa, interessada em conhecer as coisas – e bonita. Tami, o caçula, é crianção, brincalhão, bem humorado. Minako é a mais apagadinha, um tanto medrosa, temerosa.
De novo, vale dizer: não é absolutamente fundamental que o espectador perceba as características específicas de cada um dos quatro garotos. O filme mostra que cada um tem suas características específicas porque é um ótimo filme, de um cineasta maior – mas de fato a rigor, a rigor, nem seria necessário.
Necessário é apenas perceber – e até o espectador mais desatento perceberá perfeitamente – que aqueles jovens são inteligentes, educados, bem informados; são meninos legais, saudáveis.
“Existem pessoas que ficam silenciosas quando falam.”
Os quatro garotos vão um dia visitar Nagasaki. Precisavam mesmo comprar algumas coisas, e então pegam um ônibus e vão. Aproveitam para passear pela cidade, ver locais históricos, monumentos e detalhes que fazem lembrar a bomba.
Chama especialmente a atenção deles algo que parece uma estátua de escultor modernista – um monte de ferros retorcidos pelo calor extremo causado pela explosão da bomba. Era provavelmente algo como um trepa-trepa, perto de uma antiga escola. Os administradores de Nagasaki conservaram aquele conjunto de ferros retorcidos como uma lembrança viva da tragédia.
Passam por monumentos enviados por vários países – demonstração de solidariedade. Vão lendo as placas e dizendo os nomes dos países, e há de tudo, Portugal, União Soviética, Noruega, França. Um deles nota que não há um monumento enviado pelos Estados Unidos, e um outro diz: – “É natural: foram eles que jogaram a bomba”.
Entre os milhares de mortos no momento da explosão da bomba estava o avô dos garotos, o marido da avó com quem eles estavam passando aqueles dias de férias.
Os quatro garotos gostam muito da avó. Têm grande respeito por ela, e ouvem com toda a atenção as muitas histórias que ela conta sobre pessoas que conheceu, coisas que viveu. Acham que ela tem às vezes comportamentos um tanto estranhos, mas são absolutamente educados no relacionamento com ela.
Um determinado dia lá, a avó recebe a visita de uma outra velhinha. Tami, o caçula, é quem fica observando as duas, e vai contar para a irmã e para os primos que estava acontecendo uma coisa estranha: a vovó tinha recebido uma visita, e as duas tinham ficado uma diante da outra – em absoluto silêncio. Não conversavam, não falavam nada.
Depois que a visita vai embora, os garotos questionam a avó. E ela conta que aquela vizinha também havia perdido o marido no momento da explosão da bomba. E então de vez em quando uma visitava a outra.
Diante da pergunta de um dos netos, tipo – mas vocês não conversavam, só ficavam caladas uma diante da outra –, a avó fala uma das frases mais belas deste filme estupidamente belo:
– “Existem pessoas que ficam silenciosas quando falam.”
Os da geração do meio são ambiciosos, avaros
Os dois filhos da senhorinha Kane, Yoshie, a mãe de Tateo e Minako, e Tadao, o pai de Tami e Shinjiro, estão, naqueles dias, no Havaí.
Tinham viajado até o belo arquipélago no meio do Pacífico para visitar um velho tio, irmão de Kane, Suzujiro – de quem a velha senhora nem se lembrava direito. Esse Suzujiro havia emigrado para o Havaí ainda nos anos 20, e lá se casara com uma americana. E havia ficado muito rico: comprara terras e mais terras, fizera uma imensa plantação de abacaxis, criara uma indústria de transformação do abacaxi em suco e em doces. Quem agora tocava a grande empresa era seu filho, Clark. Um americano – meio americano, meio japonês.
Bem no início do filme, os garotos recebem cartas de Tadao e de Yoshie, com várias fotos. Pelas fotos, o espectador vê que Clark é o papel de Richard Gere.
Richard Gere em um filme de Kurosawa!
Nas cartas, os dois irmãos dizem que seu tio Suzujiro, velho, doente, gostaria imensamente que a irmã mais nova fosse visitá-lo do Havaí. Queria demais ver a irmã antes de morrer. Tadao e Yoshie pedem insistentemente que a mãe faça a viagem. Os meninos iriam junto com a avó – e os quatro adolescentes, é claro, fazem todo o possível para que ela aceite o convite.
A avó fica em dúvida, não sabe se aceita.
Quando Tadao e Yoshie retornam do Havaí e reencontram os filhos e a mãe, fica bastante claro que a riqueza do velho tio e do seu primo americano havia despertado a cobiça deles – e de seus respectivos cônjuges. Já se imaginavam sendo convidados por Clark para se mudar para o Havaí, para trabalhar no império que seu tio Suzujiro havia criado.
Para os filhos da velha Kane, pais dos quatro garotos, menção à bomba atômica, ao fato que seu pai havia morrido na explosão da bomba, era algo que seguramente desagradaria ao primo Clark. Como americano – é o que os dois pensam –, ele certamente não gostaria que seus parentes japoneses culpassem seu país pela morte do tio.
É muito interessante: Kurosawa mostra as pessoas da geração mais velha, a que já era adulta quando os americanos lançaram as bombas atômicas sobre o Japão, a geração da velha senhora Kane (que é também a do próprio cineasta), como seres de bom coração, gente do bem. Pessoas sábias.
A avó dos quatro garotos tem grande reverência pelos mortos, e procura honrar sua memória. Ela não culpa especificamente os americanos pela bomba que matou o marido e mais milhares e milhares de pessoas. (As estimativas do número de mortos pela explosão da bomba sobre Nagasaki e pelos efeitos da radiação nos dias seguintes variam muito, de 39 mil a 80 mil pessoas.) Culpa a guerra – a existência da guerra.
Os garotos, todos nascidos muito depois das bombas e do final da guerra, têm o maior interesse em saber os fatos históricos, procuram se informar, procuram saber das coisas. Mas também não têm ódio genérico, generalizado, pelos Estados Unidos ou pelos americanos, de forma alguma. O que o filme mostra é que são, exatamente como a avó, pessoas de bom coração, gente do bem.
Já as pessoas da geração intermediária, a que nasceu durante a guerra ou pouco antes dela, a geração dos filhos da velha senhora, essas são mostradas no filme como um tanto pior do que as mais velhas e do que as mais jovens. Os dois casais de meia-idade se mostram ambiciosos demais, avaros; dão importância demais ao dinheiro, às aparências.
É muito, muito interessante isso.
Para Kurosawa, Richard Gere trabalharia de graça
Quanto a Clark, o sobrinho da velha senhora, primo-primeiro dos pais dos garotos, ele só aparece quando o filme está ali com uns 70 de seus 98 minutos de duração. E falar sobre ele seria, a rigor, spoiler – já que toda a família fica em grande suspense, querendo saber qual será, afinal, a reação dele diante da informação de que o marido da tia foi uma das vítimas da bomba.
Está bem o belo Richard Gere como o americano meio japonês, que sabe falar bem a língua do pai.
Trabalhar com Akira Kurosawa deve seguramente ter sido um dos maiores prazeres da vida desse ator que, creio, é menos respeitado e elogiado do que mereceria. Tenho admiração por Richard Gere. Creio que sua beleza, sua pinta de galã, acabou por prejudicá-lo um tanto – muitos críticos acabam não reconhecendo seu talento.
Richard Gere estava no auge da fama na época em que se preparava a produção de Rapsódia em Agosto – Uma Linda Mulher/Pretty Woman é de 1990, e havia feito aquele sucesso absolutamente estrondoso. Os produtores – registra o IMDb – temiam que ele não aceitasse o convite para receber um salário muitíssimo menor do que Hollywood estava disposta a pagar. O ator mandou dizer o seguinte: “Para Kurosawa, eu trabalho de graça”.
Naturalmente, os produtores não aceitaram isso, e ofereceram a ele uma soma bem modesta – o IMDb não especifica quanto. Mas garantiram que pagariam todas as despesas de sua viagem ao Japão – dele e também de alguma companhia que ele quisesse levar. O cara não é bobo nem nada e levou Cindy Crawford.
Outras informações sobre o filme, quase todas tiradas da página de Trivia do IMDb, com acréscimos e pitacos meus:
* Quem fala o japonês do personagem Clark é o próprio Richard Gere. Não houve dublagem. O ator decorou o som das palavras que Clark pronuncia e mandou ver.
* O filme se baseia em uma novela de autoria de Kiyoko Murata, “Nabe no naka”, publicada em 1987. Kiyoko – nascida exatamente em 1945, o ano das bombas e do final da Segunda Guerra Mundial – é respeitadíssima em seu país, venceu diversos prêmios literários e foi condecorada pelo governo japonês com a Medalha da Fita Púrpura e a Ordem do Sol Nascente.
Kurosawa leu a novela enquanto filmava Sonhos. Segundo o IMDb, levou apenas 15 dias para escrever o roteiro.
* Em Sonhos, também há referências ao pavor dos armamentos nucleares, a bomba atômica. O temor da bomba já havia sido tema de outro filme de Kurosawa, Anatomia do Medo (1955).
* Como já foi dito, Sonhos foi o antepenúltimo filme do mestre, e este Rapsódia em Agosto foi o penúltimo. Em 1993 ele lançaria Madadayo, sobre a vida de um velho professor na Tóquio empobrecida pela Segunda Guerra Mundial, logo após a rendição japonesa. Morreria em 1998, aos 88 anos.
* Rapsódia em Agosto foi o último filme da veterana atriz Sachiko Murase, que faz a avó dos quatro garotos. O último dos 99 títulos de sua filmografia. Morreria dois anos depois do lançamento do filme, em 1993.
A guerra não foi entre os povos, diz Kurosawa
Roger Ebert deu 3 estrelas em 4 a Rhapsody in August. Seu longo texto começa assim:
“Akira Kurosawa fez este filme aos 80 e poucos anos, e houve aqueles que pensassem que ele estava perdendo seu toque, que a visão que o tinha feito um dos grandes diretores estava se perdendo. Quando esteve na faixa dos 70 anos, ele nos deu obras-primas como Ran, mas seus Sonhos não foram bem recebidos, e Rapsódia em Agosto foi considerado um desapontamento quando estreou em Cannes em maio de 1991. Não é um de seus grandes filmes, mas mostra que ele estava conscientemente tentando ficar em paz com o evento mais importante de sua época.”
Mais adiante:
“Kurosawa sempre foi um diretor de grandes imagens, e na sua velhice ele se permitiu usar algumas mais fantasiosas, menos realistas. Há um grande olho que se abre no céu e simboliza, suponho, a luz que estourou no céu quando a bomba foi lançada sobre Nagasaki. Há uma rosa engolfada por formigas, o que pode ter algo a ver com aqueles que fugiram da devastação da bomba. Há um conjunto de ferros retorcidos no playground da escola, deixado daquele jeito com que ficou depois que o calor da bomba o transformou numa escultura grotesca. E a imagem da senhora idosa andando na ventania, sob a chuva, sua sombrinha desafiadoramente enfrentando os elementos.”
Em seguida, Roger Ebert informa que houve muitas críticas ao filme – tanto de japoneses que consideram todos os americanos culpados pela destruição causada pelas bombas quanto de ocidentais que entendem que os japoneses não deveriam perdoar os americanos.
“A resposta de Kurosawa foi simples. Ele queria que seu filme mostrasse que a guerra foi entre os governos, não entre os povos. O uso de um personagem japonês-americano foi deliberado. Era como se, nesse ponto de sua vida, ele quisesse encerrar definitivamente esse capítulo – pelo menos no que diz respeito à sua arte.”
Leonard Maltin deu apenas 2.5 estrelas em 4: “Sério, feito com consciência, mas um filme menor para os padrões de Kurosawa, sobre as dolorosas memórias de uma avó japonesa sobre o bombardeio de Nagasaki no final da Segunda Guerra Mundial. Gere, em uma participação que foi glorificada, não parece muito fora do lugar como um membro japonês-americano da família da velha senhora. O diretor consegue alguns poucos toques visuais memoráveis, mas o filme palavroso nunca se recupera de seu início quase estático.”
Creio que se Maltin revisse o filme agora teria vergonha do que escreveu.
Rapsódia em Agosto é uma maravilha de filme.
Anotação em agosto de 2022
Rapsódia em Agosto/ Hachi-gatsu no Rapusodi
De Akira Kurosawa, Japão, 1991
Com Sachiko Murase (Kane, a avó), Tomoko Ohtakara (Tami, neto, filho de Tadao), Mitsunori Isaki (Shinjiro, neta, filha de Tadao), Hidetaka Yoshioka (Tateo, neto, filho de Yoshie), Mie Suzuki (Minako, neta, filha de Yoshie),
Toshie Negishi (Yoshie, a filha de Kane), Hisashi Igawa (Tadao, o filho de Kane), Narumi Kayashima (Machiko, a mulher de Tadao), Choichiro Kawarasaki (Noboru, o marido de Yoshie),
e Richard Gere (Clark, o sobrinho havaiano de Kane)
Roteiro Akira Kurosawa. Colaborou Ishirô Honda, não creditado.
Baseado no romance “Nabe-no-Naka”, de Kiyoko Murata
Fotografia Takao Saito, Masaharu Ueda
Música Shinichiro Ikebe
Direção de arte Yoshiro Muraki
Produção Toru Okuyama, Hisao Kurosawa
Cor, 98 min
Disponível em DVD.
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Título nos EUA: Rhapsody in August
O penúltimo filme de Akira Kurosawa, já com 81 anos quando do lançamento em Cannes. É de uma ternura e um naturalismo ímpar.