Silver Lode, no Brasil Homens Indomáveis, é hoje sem dúvida um filme bem pouco conhecido. Assim como seu realizador, Allan Dwan, um sujeito que dirigiu mais de 400 filmes, ao longo de seis décadas.
Silver Lode é um bom filme, e Allan Dwan é um realizador importante. Mas essas coisas acontecem, fazem parte da vida – bons filmes, bons realizadores somem na poeira da História, enquanto outros, bem menores, são incensados.
Allan Dwan (1885-1981) foi tudo, de autor de trilha sonora a cameraman, de assistente de direção e diretor de segunda unidade a produtor, roteirista, diretor, e fez de tudo – musicais, comédias, dramas, aventuras, policiais. Este Homens Indomáveis aqui é um western, um perfeito western – mas também transcende esse gênero que é americano por excelência e um dos mais antigos e tradicionais do cinema.
É uma alegoria política. É uma óbvia, clara parábola sobre os tempos negros, soturnos, apavorantes, em que estavam mergulhados os Estados Unidos naquele início dos anos 1950 – os anos do macarthismo, da caça às bruxas, da insana, pavorosa perseguição a todos e a qualquer um que tivesse alguma vez manifestado o desejo de viver em uma sociedade mais justa, mais igualitária, mais solidária.
Solidariedade. O tema básico, fundamental, deste western que é também uma alegoria política, é a solidariedade – ou a falta dela.
O delegado parece bandido. O procurado é o mocinho
Tudo acontece num 4 de Julho, o 7 de Setembro deles, o dia da independência. A cidade de Silver Lode está preparada para a festa. Há faixas, bandeiras, barraquinhas para venda de comes e bebes na sua principal rua. Todos os habitantes são esperados para participar dos festejos. No final da manhã, chegam quatro homens a cavalo.
(O título que os distribuidores franceses adotaram foi exatamente Quatre étranges Cavaliers. Quatro cavaleiros estranhos, desconhecidos, forasteiros.)
Parecem bandidos, pistoleiros. O chefe deles se chama McCarty, e é interpretado por Dan Duryea, um ator que era especializado em fazer bandidos – e, dentro da especialização bandidagem, em fazer um bandido que estapeia mulheres. Nesse filme mesmo ele vai estapear uma mulher.
Os quatro forasteiros, repito, parecem bandidos, pistoleiros, e o chefe deles é interpretado por um ator especializado em fazer papel de bandido – mas ele chega àquela cidade dizendo que é um delegado federal e traz uma ordem de prisão para Dan Ballard.
Dan Ballard é interpretado por John Payne – um ator que, bem ao contrário de Dan Duryea, era conhecido por fazer mocinhos, personagens de bom caráter.
E acontece de, naquele exato momento em que chegam os quatro forasteiros, Dan Ballard estar diante do ministro religioso da cidade, o reverendo Field (Hugh Sanders), que celebra seu casamento com Rose Evans, a mulher mais bela e mais rica da cidade.
Dan Ballard havia chegado a Silver Lode dois anos antes, e se dado muito bem. Comprara um rancho ali, conquistara a amizade de todos – e o amor da filha do ricaço Zachary Evans (Morris Ankrum).
Rose é interpretada pela lindérrima Lizabeth Scott, que há algum tempo chamei de “essa atriz que parece ter vindo ao mundo para trabalhar em dramas com clima denso, tenso, pesado”. Lizabeth Scott fez 31 filmes na vida, entre 1945 e 1972, metade deles filmes noir. É um tanto difícil admitir que é ela que está aqui no papel da moça mais rica da cidadezinha do Velho Oeste.
Só ficam do lado de Dan sua noiva e dançarina do saloon
O reverendo Field está para pronunciar que Dan Ballard e Rose Evans estão casados para todo o sempre, in sickness or in health, na doença ou na saúde, na miséria ou na riqueza, quando o tal McCarty e seus três capangas irrompem na sala da casa da família Evans, a maior da cidade.
Para surpresa de todos, McCarty anuncia que é delegado federal e veio prender Dan Ballard e levá-lo para uma cidade da Califórnia em que é acusado de ter matado um homem pelas costas e fugido com US$ 20 mil roubados. O morto era irmão do próprio McCarty.
Ninguém acredita nele – mas McCarty apresenta uma ordem de prisão. A tal ordem acabará sendo levada pelo xerife Wooley (Emile Meyer), ao juiz da cidade, Cranston (Robert Warwick) – e o velho juiz diz que a ordem parece legal, autêntica.
Amigos ameaçam resistir, mas o próprio Dan Ballard pede que eles não façam nada contra os forasteiros. Só pede um prazo de duas horas antes de ser levado por McCarty e seus homens.
Nesse período de tempo, ele espera receber uma resposta de autoridades da cidade californiana em que viveu a um telegrama que tenta enviar, perguntando se McCarty – que, para ele, era um ladrão de gado – de fato havia virado delegado, e se havia ordem legal de prisão contra ele.
Dan admite que havia de fato matado o irmão de McCarty – mas não pelas costas, e sim para se defender, quando o sujeito, derrotado num jogo de cartas, o acusou de trapacear e ameaçou sacar o revólver.
Uma sequência de acontecimentos leva a que Dan se transforme em suspeito de ter matado o xerife Wooley. O espectador sabe que não foi ele, pois vê toda a cena, vê que quem atira no xerife, dentro de uma estrebaria, é McCarty – mas, quando a porta do lugar se abre e diversas pessoas entram ali, é Dan que está segurando uma arma.
A partir daí, as pessoas na cidade vão passando a acreditar que Dan Ballard é de fato um assassino. Mesmo os que eram seus amigos mais próximos.
Só duas pessoas permanecem o tempo todo certas de que ele é inocente: a noiva e a dançarina do saloon do lugar, uma bela moça chamada Dolly (o papel de Dolores Moran). Dá para o espectador depreender que, antes de começar a namorar Rose Evans, Dan teve um caso com Dolly, e ela ainda arrasta as asinhas por ela.
Uma alegoria sobre o período negro do macarthismo
Um homem querido, benquisto na cidade, um homem de muitos amigos que, acusado de um crime, vai perdendo o apoio que tinha.
Uma comunidade que deixa de ser solidária com um de seus membros porque ele foi acusado de um crime – embora não haja comprovação de que de fato cometeu o crime.
Um bandido chamado McCarty, que se diz delegado federal, mas tem todo o jeito de bandido, e o espectador vai comprovando que é mesmo bandido.
Apenas uma letra separa o sobrenome do bandido interpretado por Dan Duryea de Joseph McCarthy, o então obscuro senador por Wisconsin que, em 1950, passou a ser conhecido ao afirmar em um discurso que tinha uma lista dos “membros do Partido Comunista e dos membros de uma rede de espionagem” empregados no Departamento de Estado – e a partir daí incendiou o país com a paranóia anticomunista que levou os estúdios de Hollywood e as emissoras de rádio e TV a não mais usar os artistas, escritores, técnicos, músicos colocados na Lista Negra de comunistas ou simpatizantes do comunismo.
Uma característica que me impressionou muito neste bom western que é também uma boa alegoria sobre o macarthismo e a caça às bruxas dos anos 50 nos Estados Unidos é como há proximidades entre ele e outro western – Matar ou Morrer/High Noon.
Algumas semanas antes de ver este Homens Indomáveis, eu tinha visto A Renegada/Woman They Almost Lynched, um western de 1953 hoje bem pouco conhecido que tem muitos poucos em comum com outro que ficou famosérrimo, Johnny Guitar, feito no ano seguinte, 1954. Como em Johnny Guitar, em A Renegada as protagonistas da trama são mulheres – algo bem pouco usual naquele universo machista que é o faroeste. (Por coincidência, ou não, A Renegada também é dirigido por Allan Dwan.)
Dois casos interessantes de westerns que abordam temas semelhantes, feitos na mesma época – um que se tornou clássico absoluto, respeitado, sempre citado, e outro que meio sumiu na poeira do tempo.
A diferença é que neste caso o filme pouco famoso, este Homens Indomáveis, veio depois do grande clássico que é High Noon. High Noon é de 1952, e este aqui é de 1954.
Ambos são alegorias sobre o macarthismo – em ambos, o protagonista é um homem benquisto pela comunidade, mas acaba sendo abandonado pelos amigos, e tem que enfrentar sozinho quatro bandidos.
Em ambos, o protagonista acaba tendo o apoio apenas de duas mulheres – sua noiva e uma mulher de vida não muito virtuosa, para usar palavras suaves.
Ambos se passam quase em tempo real, com cada minuto de filme correspondendo a um minuto de ação, sem cortes no tempo.
Um western que merece ser visto, descoberto
Rose, a noiva, ainda que interpretada por Lizabeth Scott, atriz belíssima e muito bem considerada pela crítica, é uma personagem muito certinha, muito previsível. E o que acontece é que Dolly, a moça do saloon, acaba roubando a cena.
Nunca tinha ouvido falar nessa Dolores Moran.
Nascida em Stockton, na Califórnia, em 1926, estava com apenas 15 anos quando, em 1941, foi vista num piquenique por um caçador de talentos da Warner Bros. Alta (1 metro e 78), bonita, gostosa, ainda era menor de idade quando começou a ganhar pequenos papéis em filmes da Warner e grandes fotos nas revistas de moças em trajes sumários que a soldadesca americana pendurava em seus armários nos quartéis, enquanto esperavam a ida para o front na Europa ou no Pacífico, na Segunda Guerra Mundial. Entre 1943 e 1944, apareceu algumas vezes na capa da revista Yank, the Army Weekly.
Seu primeiro papel de certa importância foi em Uma Aventura na Martinica/To Have and Have Not (1944), dirigido pelo grande Howard Hawks – que, à época, dizem, era amante da moça. Consta que o papel dela, como Madame Hellene de Bursac, era originalmente maior do que acabou sendo na versão final do filme que marcou o início do romance de Humphrey Bogart com outra jovenzinha, Lauren Bacall.
A biografia de Dolores Moran no IMDb diz que ela ficaria mais conhecida pela vida pessoal agitada e pelos muitos casos com homens famosos e casados. Estava com 22 aninhos quando começou um caso com o produtor Benedict Bogeaus, 20 anos mais velho do que ela e então casado com a starlet Mimi Forsythe. O produtor abandonou a mulher e se casou com Dolores no final de 1946.
Benedict Bogeaus é o produtor deste Homens Indomáveis em que Dolores Moran consegue eclipsar a maravilhosa Lisabeth Scott.
Dolly, a moça do saloon de Silver Lode, foi o último filme dela. Aposentou-se do cinema, virou dona de casa. Morreria em 1982, de câncer, com apenas 56 anos de idade.
O livro The RKO Story não dá qualquer importância ao filme:
“Um western com óbvios tons de High Noon, Silver Lode era a história de 3 horas (hum… na verdade, é menos de 2 horas) de uma comunidade do século XIX e a luta de um homem para se ver livre da acusação de assassinato.” Eis como o livro termina o resumo da trama: “Ele deverá eventualmente se livrar sem poder contar com a ajuda dos covardes e hipócritas que antes considerava seus amigos. Karen DeWolf escreveu o roteiro e Allan Dwan contribuiu com a direção mundana para o produtor Benedict Bogeaus.”
Se o livro do próprio estúdio trata o filme como coisa menor, o Guide des Films de Jean Tulard fala dele com respeito. Diz que foi o primeiro filme do diretor Allan Dwan para o produtor Bogeaus, e que nele o realizador já reúne a equipe com a qual faria suas obras seguintes. “Esse notável western é também um vigoroso panfleto anti-macarthista: o bandido se chama McCarty e será morto por uma bala que ricocheteia num sino da liberdade.”
O livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer diz que Homens Indomáveis é um filme de Allan Dwan por excelência: “conciso, simples, inventivo, ágil, irônico, belo sem ser espetacular”. E mais: “Provavelmente nenhum outro faroeste tem tantos planos através de janelas (Dwan gostava de encenar suas sequências em profundidade e de enfatizar situações em que os personagens se observam mutuamente) e poucos utilizaram de forma tão esplêndida a arquitetura e a decoração bem conhecidas da cidade do Velho Oeste hollywoodiana. Em um impressionante plano-sequência, a câmera de Dwan acompanha Payne à medida que ele atravessa correndo quatro quarteirões da cidade. Graças à segurança visual do diretor (e ao gênio da iluminação John Alton), Homens Indomáveis é um dos melhores dos vários faroestes americanos subestimados.”
Muito boas essas considerações todas do 1001 Filmes. Sem dúvida, são muitos – e bem feitos – os planos através de janelas. E o plano-sequência do personagem central atravessando a cidade é extraordinário.
Um belo western. Um belo filme que cinéfilos deveriam descobrir.
Anotação em julho de 2020
Homens Indomáveis/Silver Lode
De Allan Dwan, EUA, 1954.
Com John Payne (Dan Ballard)
e Lizabeth Scott (Rose Evans, a noiva de Dan), Dan Duryea (Fred McCarty), Dolores Moran (Dolly, a moça do saloon), Emile Meyer (xerife Wooley), Robert Warwick (o juiz Cranston), John Hudson (Mitch Evans, o irmão de Rose), Harry Carey Jr. (Johnson), Alan Hale Jr. (Kirk), Stuart Whitman (Wicker), Frank Sully (Paul Herbert), Morris Ankrum (Zachary Evans, o pai de Rose), Hugh Sanders (o reverendo Field), Florence Auer (Mrs. Elmwood), Roy Gordon (Dr. Elmwood)
Argumento e roteiro Karen DeWolf
Fotografia John Alton
Música Louis Forbes, Howard Jackson
Montagem James Leicester
Produção Benedict Bogeaus, RKO. DVD Versátil.
Cor, 81 min (1h21)
***
Título na França: Quatre étranges Cavaliers. Em Portugal: Falsa Justiça.
Disponível em DVD
2 Comentários para “Homens Indomáveis / Silver Lode”