Caça às bruxas – e não se trata de força de expressão. É caça às bruxas literalmente. Uma senhora idosa torturada brutalmente diante de um tribunal eclesiástico para que confesse seu pacto com o diabo. A acusada sendo jogada viva na fogueira, e os religiosos dizendo que é para a glória de Deus.
Um terremoto de emoções, sentimentos, sensações, atos: dor, raiva, ódio profundo, devoção, amor, erro, arrependimento, mentira, expiação, infidelidade no grau mais alto que pode haver.
Tudo mostrado em imagens suntuosas, de formidável beleza, como se fossem quadros de Rembrandt postos em movimento.
Dias de Ira, que o dinamarquês Carl Theodor Dreyer lançou em 1943, é uma obra-prima. Um daqueles filmes que estão entre os melhores de todos os tempos, aqueles da mais fina classe que pode haver. De Dreyer, André Bazin, o teórico, crítico e historiador que fez a cabeça de todos os jovens críticos que depois viraram diretores e fizeram a nouvelle vague – François Truffaut, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, Éric Rohmer –, disse o seguinte:
“Dreyer é talvez, com Eisenstein, o único cineasta cuja obra iguala a dignidade, a nobreza, a poderosa elegância das obras-primas da pintura, não só porque nelas se inspira como também, mais essencialmente, porque redescobre os seus segredos em profundezas estéticas comparávei. Não tenhamos nenhuma falsa modéstia a propósito do cinema: um Dreyer rivaliza com os grandes pintores do renascimento italiano ou da escola flamenga.”
De fato, é impressionante demais a beleza de cada tomada, de cada enquadramento. É realmente – como saiu naquela minha frase feliz – como se fossem quadros de Rembrandt postos em movimento.
Um filme feito na Dinamarca invadida pelos nazistas
Por coincidência, eu tinha visto, dias antes, os dois primeiros Visconti, Ossessione, exatamente do mesmo deste Dias de Ira, 1943, e La Terra Trema, de 1948. E Luchino Visconti é um dos grandes mestres mais cuidadosos com cada enquadramento. Não se trata, é claro, de uma competição, uma prova esportiva, mas é impossível não fazer a comparação. O visual de cada quadro de Dias de Ira, o visual do conjunto do filme, é ainda mais belo, mais impressionantemente belo que os de La Terra Trema.
E não se trata de competição, de prova esportiva, mas, como vi os filmes com apenas uns poucos dias de diferença, fica impossível não fazer a comparação: enquanto, em termos de conteúdo, do que está sendo dito, La Terra Trema é uma tola repetição de forma tatibitate de conceitos básicos de um socialismo infanto-juvenil, Dias de Ira é um drama denso, pesado, forte, vigoroso, sério, inquietante, perturbador.
De fato não pretendia fazer comparações com as obras iniciais do gigante Visconti, mas os textos… Há momentos em que os textos se escrevem sozinhos, apesar de nós mesmos.
É necessário realçar: Dias de Ira foi realizado e lançado em 1943, com a Dinamarca invadida pelos nazistas, em plena Segunda Guerra Mundial. (De maneira semelhante, Ossessione, o primeiro longa de Luchino Visconti, havia sido filmado em 1942, para lançamento em 1943, a Itália, aliada à Alemanha e ao Japão, em guerra contra praticamente todo o resto do mundo.)
Naturalmente, foi feita a óbvia ligação entre a tortura da anciã acusada de bruxa e a tortura dos opositores do nazismo nos porões da Gestapo. Após o lançamento do filme, Dreyer passaria uma temporada na vizinha Suécia – e a Suécia, que se declarara neutra, era um dos raríssimos países europeus que os nazistas não haviam invadido.
A acusada pede ajuda à mulher do reverendo
Há elementos que tornam mais óbvia a aproximação do visual de Dias de Ira com os quadros do grande pintor holandês. A ação do filme se passa exatamente, exatamente na época de Rembrandt, que viveu entre 1606 e 1669.
Os personagens centrais todos usam roupas solenes, sisudas, de apenas duas cores – o preto e o branco. Isso ajuda a dar uma beleza incrível às imagens captadas pelo diretor de fotografia Karl Andersson.
Dias de Ira é um caso sui-generis de filme que não tem créditos iniciais nem créditos finais. Não sei de outro exemplar assim.
O filme abre com a letra de uma canção religiosa, “Dies irae”, que dá o título da obra e fala do julgamento final, do dia de juízo. E em seguida vemos uma caneta se provendo de tinta num tinteiro, para que a autoridade eclesiástica registrasse no livro o seguinte:
“Considerando o que foi dito sobre Herlofs Marte, denunciada como bruxa por três ilustres e respeitados cidadãos, determinamos que ela seja detida e trazida à Corte.” A data é 13 de maio de 1623, e quem assina é Jen Uhlen.
O roteiro – de autoria do próprio Dreyer mais Poul Knudsen e Mogens Skot-Hansen, e baseado em romance de Wiers Jenssens – é uma maravilha. Ele primeiro focaliza Herlofs Marte (Anna Svierker, na foto acima), a senhora idosa acusada de ser bruxa, como se ela fosse a protagonista da história. Não, não é. Herlofs Marte é importantíssima – mas ela serve também para nos levar à casa e à família do reverendo Absalon Pedersson (Thorkild Roose).
A família do reverendo Absalon, esta sim, será o centro da trama.
Na primeira sequência do filme, Herlofs Marte está em sua casa, receitando um composto de ervas para uma outra mulher, não sabemos se amiga ou cliente. Nas ruas, ouvem-se vozes anunciando que uma bruxa está sendo caçada. Herlofs Marte some de casa, foge dos caçadores, e surge na casa do reverendo Absalon, pedindo proteção a Anne (Lisbeth Movin, linda), a jovem esposa do religioso.
Antes de morrer, a acusada amaldiçoa o reverendo
Roteiro perfeito é roteiro perfeito, e então, quando Herlofs Marte surge na casa do reverendo Absalon, o espectador já sabe as informações básicas sobre aquela casa, aquela família. Entre a primeira sequência e esta em que a acusada de ser bruxa pede a ajuda de Anne, havíamos visto uma sequência na casa do reverendo.
Anne – que virá a ser, a rigor, a protagonista da história – é a segunda mulher do reverendo. A diferença de idade entre os dois é imensa. A primeira mulher dele havia morrido, deixando um filho, Martin (Preben Lerdorff), que era um pouco mais velho que sua madrasta. Martin estivera fora, estava chegando de volta agora, nos dias em que se passa a ação.
A mãe do já idoso reverendo Absalon ainda estava viva. Meret, a mãe (o papel de Sigrid Neiiendam), tem forte ódio da nova nora. Não admite que o filho tenha se casado com uma moça mais jovem que seu próprio filho.
No exato dia em que Martin, o filho, está voltando para casa, Herlofs Marte pede ajuda a Anne para fugir dos inquisidores. Ela diz para Anne, e para os espectadores, que a jovem tem que ajudar, porque a mãe dela era bruxa, e ela, Herlofs Marte, a havia defendido.
Anne permite que Herlofs Marte se esconda no sótão da casa – mas as autoridades logo chegam à casa do reverendo, fazem uma procura pente fino, e prendem a acusada de ser bruxa.
Herlofs Marte será então brutalmente torturada, diante de um tribunal eclesiástico, até confessar que, sim, tem trato com o diabo.
A questão central aqui é que Herlofs Marte pede, suplica, exige que o reverendo Absalon a salve no julgamento. Porque ela sabe que o reverendo inocentou a mãe de Anne da acusação de ser bruxa, com o objetivo de coneguir se casar com Anne. Se ele havia inocentado a mãe de Anne, então que ele também a inocentasse, exige Herlofs Marte,
Mas o reverendo Absalon não cede. Ela é condenada à morte na fogueira – e, antes de morrer, lança uma maldição sobre o religioso.
A mulher do reverendo não se abala com a infidelidade
O reverendo é um homem velho, que se casou com Anne quando ela era ainda quase uma adolescente, quase uma criança. E se casou com Anne mediante um desvio de caráter, um crime, um pecado: testemunhou em favor da mãe para obter o consentimento de se casar com a filha.
E então, quando o filme está aí com uns 30 de seus 110 minutos, chega de volta ao lar Martin, o filho do reverendo. Martin é rapagão bonito, poucos anos mais velho do que Anne. Passam a conviver de perto. São enteado e madrasta, sim – mas são jovens, e belos.
Ganha uma nota de um guarani paraguaio – rasgada e furada – quem adivinhar o que vai acontecer entre os dois.
Me lembrei de um dos filmes americanos de Sophia Loren, Desejo/Desire Under the Elms, de Delbert Mann, lançado em 1958, 15 anos e o fim de uma guerra mundial depois deste Dias de Ira. Sophia faz uma jovem que se casa com um homem muito mais velho, um fazendeiro da Nova Inglaterra no começo do século XIX, que tem um filho jovem e bonito. (O fazendeiro é interpretado pelo grande Burl Ives; o filho dele, por Anthony Perkins.)
É impressionante como o caso de amor de Anne e Martin é mostrado abertamente, francamente. Sem qualquer tipo de embaraço. Em 1943!
Não sou conservador, careta, retrógado, de forma alguma, mas confesso que fiquei bastante surpreso com a forma tranquila com que nos é apresentada a história de amor dos dois jovens – e com absoluta naturalidade com que Anne encara os acontecimentos.
Porque infidelidade conjugal é algo que abala profundamente todos os envolvidos. E de fato não pode haver infidelidade em grau maior do que de uma mulher com o filho do marido (ou de um homem com a filha da mulher, é claro).
Martin fica abalado, muitíssimo abalado. Divide-se, rasga-se entre o imenso prazer do amor da bela mulher e a tremenda dor de consciência de estar traindo o próprio pai. Já Anne parece não ter dúvidas, não ter arrependimento, não ter culpa, coisa alguma. Parece achar que tem direito a ser feliz pela primeira vez na vida, ser amada por um homem belo e jovem pela primeira vez na vida.
No ótimo elenco, duas atrizes se sobressaem
Todos os atores estão soberbos – é um daqueles casos de direção de atores de fazer babar. Mas as interpretações dessas duas mulheres, a atriz idosa que faz a mulher acusada de ser bruxa, e a que interpreta a jovem esposa do reverendo conseguem se sobressair. São interpretações impressionantes as da veterana Anna Svierker como Herlofs Marte e da jovem Lisbeth Movin como Anne.
Anna Svierker viveu 82 anos, entre 1872 e 1955, mas o IMDb registra que ela só fez um único filme além deste Dias de Ira. Não há página sobre ela na Wikipédia. Seguramente foi uma atriz de teatro.
Lisbeth Movin foi ainda mais longeva: viveu 94 anos, de 1917 a 2011. Sua filmografia tem 38 títulos – todos na sua Dinamarca natal. Seu último filme foi o maravilhoso A Festa de Babette, de 1987; teve um papel pequeno, como uma viúva – seguramente uma homenagem a ela feita pelo diretor Gabriel Axel. Ela também dirigiu três filmes, todos nos anos 60, nenhum deles lançado comercialmente no Brasil.
Quando fez o papel de Anne, tinha 26 anos, era belíssima – e deu um show de interpretação.
Um cineasta que falava de religião, fé
Vários dos filmes de Carl Theodor Dreyer abordam religião, fé, Igreja. (Foram 14 longa-metragens de ficção; além desses, realizou também sete documentários, curta-metragens.) O Martírio de Joana d’Arc, de 1928, é tido unanimemente como uma obra-prima, um filme excepcional. A Quarta Aliança da Sra. Margarida, de 1920, é sobre um jovem pastor de uma pequenina cidade. Páginas do Livro de Satã, também de 1920, fala sobre o demônio em quatro histórias diferentes, entre elas o momento de tentação de Jesus Cristo e as ações da Inquisição Espanhola.
Por causa da insistência do cineasta sobre o tema religião, disseminou-se entre críticos e cinéfilos a crença de que Dreyer havia tido uma severíssima educação luterana, numa família extremamente religiosa.
Nada mais distante da verdade.
Ele nasceu – em Copenhagen, em 1889 – filho ilegítimo de um fazendeiro dinamarquês com sua empregada sueca, e foi dado para adoção. Marido e mulher que o adotaram aos 2 anos e lhe deram o sobrenome, os Dreyer, não eram especialmente religiosos; tinham idéias modernas, votavam nos sociais-democratas. Apesar de ter tido a sorte de viver numa família do bem, no entanto, teve uma infância infeliz, segundo se informa. Tinha vontade de conhecer a mãe biológica, que jamais viu – ela teve morte trágica ao tentar abortar o segundo filho.
“Esse grande realizador dinamarquês teve uma carreira internacional”, diz Jean Tulard em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores. “Desde O Presidente (o primeiro longa de Dreyer, de 1920) se faz notar pelo cuidado com a imagem e pelo rigor do pensamento. (…) Suas outras obras serão filmadas na Suécia, na Alemanha (Michael aborda de modo bastante velado o problema da homossexualidade) e sobretudo na França. Duas obras-primas: O Martírio de Joana d’Arc e O Vampiro.”
O verbete de Tulard sobre o diretor termina dizendo que ele teve “uma morte solitária e digna, à imagem de uma obra que está entre as maiores e mais puras do cinema”.
Até a chata da Pauline Kael se deslumbrou
No site da BBC, uma crítica assinada por Tom Dawson em 2003 dá ao filme a cotação máxima de 5 estrelas, e faz uma observação bem interessante: diz que, além desse elemento de alegoria política, por falar de tortura numa Dinamarca ocupada pelas tropas nazistas, o filme é também “um envolvente melodrama sobre família e um estudo sombrio de como os homens usam dogmas religiosos para oprimir e punir os desejos das mulheres”.
E conclui: “Como Robert Bresson, Dreyer é um cineasta que focaliza suas atenções no físico e no material a fim de sugerir o espiritual, daí os close-ups das faces. Filmado, iluminado e composto com absoluta previsão, Day of Wrath é notável também pela interpretação comovente e contida de (Lisbeth) Movin, como a mulher cuja fugaz felicidade é tão brutalmente esmagada por uma sociedade desalmada e intolerante.”
Day of Wrath. Em inglês, diferentemente do título brasileiros Dias de Ira, é no singular: dia de ira. Acho interessante essa diferença. Claro que nunca vou saber se o título originl Vredens Dag trata de dias ou de dia.
Leonard Maltin deu 3.5 estrelas em 4: “Drama impressionantemente composto sobre uma velha mulher acusada de ser uma bruxa e a maldição que ela lança sobre o pastor que é responsável por sua morte na fogueira. Cinema sério, duro, com fotografia sem igual de Carl Andersson.”
Pauline Kael, a prima donna da crítica americana, que em 99% do tempo é uma danada de uma chata, mas acompanhava com extremo cuidado o cinema europeu, desmancha-se em elogios ao filme. Dá informações interessante: conta que os arranjos musicais de ‘Dies irae’ (a música religiosa que dá título ao filme) e dos outros hinos fúnebres são de Paul Schierbeck; e que o filme só foi exibido fora da Dinamarca após o final da Segunda Guerra; nos Estados Unidos, estreou em 1948.
“Já se disse que a arte de Carl Dreyer começa a se expandir exatamente no ponto em que a maioria dos diretores desiste, e esta obra-prima psicológica, sugerindo uma fusão de Hawthorne e Kafka, é a prova disso. (…)_ O mais intenso e poderoso filme já feito sobre o tema da bruxaria, explora as tensões eróticas da ‘bruxa’ e seus acusadores.”
Anotação em agosto de 2019
Dias de Ira/Vredens Dag
De Carl Theodor Dreyer, Dinamarca, 1943
Com Thorkild Roose (reverendo Absalon Pedersson), Lisbeth Movin (Anne Pedersdotter, a esposa), Sigrid Neiiendam (Meret, a mãe), Preben Lerdorff (Martin, o filho do primeiro casamento), Albert Hoeberg (o bispo), Olaf Ussing (Laurentius, o inquisidor), Anna Svierker (Herlofs Marte, a acusada de ser bruxa)
Roteiro Carl Theodor Dreyer, Poul Knudsen, Mogens Skot-Hansen
Baseado no romance de Wiers Jenssens
Fotografia Karl Anderson
Música Poul Schierbeck
Montagem Edith Schlussel, Anne Marie Petersen
Direção de arte Erik Aaes
Produção Carl Theodor Dreyer, Palladium Productions. DVD Versátil
P&B, 110 min (1h50)
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Título nos EUA: Day of Wrath.
Nossa! Que texto maravilhoso. Do diretor, só vi até agora “O Vampiro” de 1932. “A paixão de Joana D’Arc” está na minha lista, assim como “A palavra” (se eu conseguir achar este). Agora tenho mais um para procurar. Como cristã, eu me interesso por filmes que abordam seriamente o tema da fé – e claro, da sua prática deformada, da qual não se escapa neste mundo…
Quanto a imagens de cinema que parecem pinturas, lembro-me de minha mãe dizendo isso sobre “Lanternas Vermelhas”, filme chinês que ainda não vi.
Parabéns – de novo 🙂