A terceira temporada de The Crown tem um defeito danado de grave: termina depressa demais.
É uma beleza, uma maravilha, uma obra-prima.
É extraordinário, acachapante, impressionante, como esta terceira temporada consegue, talvez até mais que as anteriores, balancear a Grande História com as histórias pessoais daqueles personagens todos, não apenas a rainha Elizabeth II como também as pessoas ao seu redor, o marido, Philip, a irmã, Margaret, os filhos mais velhos, Charles e Anne. É ao mesmo tempo um retrato fantástico da História do Reino Unido e um mergulho na intimidade da família real, na personalidade de cada um.
(Aqui, a anotação sobre a Primeira Temporada. Aqui, a sobre a Segunda Temporada.)
O problema é que passa depressa demais. São só 10 episódios de cerca de 60 minutos cada.
Fizemos um esforço grande para resistir à vontade de ver vários episódios em seguida – que é como em geral vemos séries, no modo maratona. Para tentar prolongar o prazer de ver a temporada, nos restringimos a dois episódios por dia. Mesmo assim, os dias voaram, e de repente estávamos naquela coisa de cold turkey, crise de abstinência.
A quarta temporada só virá em 2020, sabe-se lá em que mês…
Cometemos todos uma tripla traição
Havia um temor – que seguramente muitos outros aficionados pela série também sentiram – de não nos acostumarmos com o novo elenco. De ficar comparando os desempenhos dos atores principais das duas primeiras temporadas com os novos que assumiram os papéis agora.
Por mais difícil que seja, por mais que provoque estranheza entre os espectadores, a troca dos atores nas histórias que se passam em longos períodos de tempo é obviamente necessária. Claire Foy, que interpretou – muitíssimo bem – a rainha Elizabeth nas duas primeiras temporadas é de 1984, e em 2019 estava portanto com apenas 35 anos. Não poderia, sem dúvida alguma, continuar representando a rainha à medida em que ela ia envelhecendo. O mesmo vale, é claro, para Matt Smith, que fez o príncipe Philip, e Vanessa Kirby, que interpretou Margaret.
Era preciso mudar, tinha que mudar – mas e nossa afeição pelos atores? Assim como milhões de pessoas no mundo inteiro, gostávamos deles, estávamos acostumados a vê-los naqueles papéis.
E se não gostássemos das pessoas do novo elenco?
O temor desapareceu nos primeiros minutos do primeiro episódio.
O colunista Eduardo Affonso, que tem escrito belíssimos textos no jornal O Globo, sintetizou com maestria em um post no Facebook:
“Hoje cometi uma tripla traição. Troquei Claire Foy por Olívia Colman, Matt Smith por Tobias Menzies e Vanessa Kirby por Helena Bohman-Carter. Achei que fosse sentir alguma culpa, mas não. Trair e coçar… é só começar.”
E os realizadores da série souberam lidar maravilhosamente com a mudança do elenco. Tiveram a bela sacada de iniciar o primeiro episódio com o momento em que são apresentadas para a rainha as suas novas fotos que passariam a ser usadas nos selos e nas notas de libras esterlinas, em substituição à sua foto quando bem mais jovem. A própria rainha faz então um comentário sobre a passagem do tempo. Sem dúvida, uma sacada inteligente.
Inteligência é o que não falta aos realizadores de The Crown.
Olivia Colman (na foto acima) tem, além de muito talento, uma vantagem incrível para interpretar Elizabeth II: a semelhança física com a rainha. Com a ajuda dos cabeleireiros e da equipe de maquiagem, a semelhança é de fato é impressionante.
Tobias Menzies, diferentemente, não tem a grande semelhança física com o príncipe Philip que Matt Smith exibiu nas duas primeiras temporadas. Mas é um ótimo ator, está muito bem no papel.
Helena Bonham Carter (na foto abaixo) é uma atriz extraordinária, das melhores que há, e é claro que se deu bem interpretando Margaret, essa princesa de vida tão dura, sofrida, quanto cheia de polêmicas, uma mulher em tudo antípoda da irmã: sem papas na língua (e a irmã é toda contida, cuidadosa), exibicionista (e a irmã é toda discreta, low profile), até mesmo escandalosa (e a irmã é a polidez em pessoa).
Margaret é uma personagem perfeita para Helena Bonham Carter. A mulher que viveu com Kenneth Branagh e Tim Burton está tão à vontade interpretando a princesa quanto ao fazer a Rainha Vermelha em Alice no País das Maravilhas (2010), a psiquiatra maluquete de Sombras da Noite (2012) ou A Fada em Cinderela (2015).
Uma atuação absolutamente impressionante, fantástica, de se aplaudir de pé como na ópera é a de Josh O’Connor como o jovem príncipe Charles, o primogênito da rainha, o sujeito que, nos anos 1960, quando se passa a ação da terceira temporada, já vivia na expectativa de um dia vir a ser rei – e hoje, meio século depois, ainda vive na mesmíssima situação.
A série faz o espectador ter simpatia pela maior parte das pessoas da família real britânica – com exceção, talvez a única exceção, do duque de Windsor, que foi o rei Edward VIII e abdicou em 1938 (interpretado nesta temporada por Derek Jacobi). The Crown trata especialmente bem o príncipe Charles. Não tem jeito: o espectador é levado a ter simpatia por ele – e a ter muita pena dele, pobre coitado.
Um trabalhista competente, um conservador antipático
Nas duas primeiras temporadas, Claire Foy interpretou Elizabeth II desde a época da morte de seu pai, o rei George VI, e sua ascensão ao trono, em 1952, até 1963, a época do escândalo Profumo, em que era primeiro-ministro o conservador Alec Douglas-Home e ela estava grávida de seu quarto filho, Edward.
Esta terceira temporada começa em 1964, o ano em que assume o governo o líder do Partido Trabalhista, Harold Wilson, o Reino Unido passava por grave crise econômica, com alto déficit público e pressão para que a libra fosse desvalorizada, e vai até meados dos anos 70, época da queda do governo de Edward Heath, do Partido Conservador, e a volta de Wilson, que governaria de 1974 até 1976.
Abrange, portanto, um período de pouco mais de 10 anos.
É interessantíssimo como a série mostra Harold Wilson (interpretado por Jason Watkins, na foto abaixo) como um bom político, um bom primeiro-ministro, que vai ganhando pouco a pouco a simpatia da rainha, e Heath (o papel de Michael Maloney) como uma pessoa tão solitária quanto autoritária, com quem a rainha jamais se deu bem.
Simpatia por um trabalhista, um político de esquerda, no espectro político da Grã-Bretanha, e nenhuma simpatia por um líder dos Tories, os conservadores, o partido teoricamente mais próximo da nobreza, da monarquia. É fascinante.
O primeiro episódio da temporada mostra que havia muitos boatos, quando Harold Wilson assumiu a chefia do governo, de que ele tinha ligações com a União Soviética, de que seria um espião a serviço dos comunistas. Eu nunca soube disso – este é um dos muitos fatos e eventos que a série mostra e eu desconhecia totalmente, embora tenha imensa admiração por quase tudo que diz respeito à Grã-Bretanha, à civilização britânica.
Os boatos, naturalmente, eram infundados. A série mostra de maneira interessantíssima que havia, sim, um espião a serviço da URSS infiltrado nos altos escalões britânicos, um tal Anthony Blunt (Samuel West) – mas não no governo, e sim no próprio Palácio de Buckingham, onde era o curador da coleção de arte.
Um diálogo impressionante, uma aula de História
O terceiro episódio mostra uma terrível tragédia ocorrida em outubro de 1966, em Aberfan, uma cidade mineira do País de Gales. Um deslizamento de uma montanha de 230 mil metros cúbicos de rejeitos de carvão soterrou um trecho da cidade – inclusive uma escola em que dezenas de crianças tinham aula. Ao todo, ao final de dias e dias de desesperada busca por sobreviventes, foram contadas 144 mortes, das quais 116 eram de crianças.
O primeiro-ministro Harold Wilson viajou para Aberfan imediatamente – e sugeriu que a rainha também visitasse o lugar. Elizabeth II argumentou que reis não vão ao local de desastres, até porque sua presença causa alvoroço e prejudica os trabalhos das equipes de resgate.
Depois de uma semana da tragédia, e de duríssimas críticas à insensibilidade da rainha, ela decidiu finalmente ir a Aberfan.
Mais tarde, numa das visitas semanais que todo primeiro-ministro faz à rainha, há um diálogo absolutamente sensacional entre ela e Wilson. Elizabeth II diz ao primeiro-ministro que, na visita a Aberfan, ela fez um gesto como se estivesse enxugando uma lágrima – e felizmente ninguém percebeu que na verdade não havia lágrima nenhuma.
A rainha: – “Na Guerra, quando visitávamos hospitais, eu via o que meus pais, o rei e a rainha, viam. Eles choravam. Eu não conseguia.”
O primeiro-ministro, tentando ajudar: – “A senhora era uma criança. O que se poderia esperar?”
A rainha: – “Não só quando criança. Quando minha avó, a rainha Mary, a quem eu amava muito, morreu… Nada.”
Mais uma vez, o primeiro-ministro tenta explicações racionais para justificar a falta de lágrimas da rainha: – “Ela estava doente havia muito tempo, já era esperado.”
A rainha: – “Quando tive meu primeiro filho, um momento tão importante para toda mãe…”
Um momento de terrível, colossal silêncio. A câmara mostra ora o rosto dela, ora o rosto dele. E a rainha prossegue: – “Já faz algum tempo que sei que há algo de errado comigo.”
O primeiro-ministro, a testa franzida: – “Errado, não.”
A rainha: – “Deficiente, então. De que outra maneira descrever a falta de alguma coisa?”
O primeiro-ministro, o líder do Partido Trabalhista, então pergunta, para se certificar de que não gravadores ligados: -“Estas reuniões são confidenciais, não?” E, depois de uma pausa: – “Eu nunca tive um dia de trabalho braçal na minha vida. Nem sequer um. Sou um acadêmico, um professor privilegiado de Oxford, não um trabalhador. Não gosto de cerveja. Prefiro conhaque. Prefiro salmão selvagem a salmão enlatado. Filé à Chateaubriand a torta de rim. E não gosto de fumar cachimbo. Prefiro charutos. Mas charutos são um símbolo do privilégio capitalista. Então, eu fumo cachimbo, durante as campanhas e na televisão. Me torna mais… acessível. Simpático. Não podemos ser tudo para todos e continuar fiéis a nós mesmos. Fazemos o que é possível fazer como líderes. É o nosso trabalho. Nosso trabalho é acalmar as crises. Esse é o nosso trabalho, e Vossa Majestade faz isso muito bem. E, de certa forma, a sua falta de emoção é uma dádiva. Ninguém precisa de histeria num chefe de Estado.”
Um momento de silêncio. A câmara mostra ora um, ora a outra – não em um grande close-up, mas quase em plano americano, as duas personalidades visíveis a partir da metade do peito. A rainha mostrava a expressão fechada, cerrada, severa que manteve durante todo o diálogo.
Ela então se levanta – e o primeiro-ministro a imita rapidamente. Cumprimentam-se com um aperto de mãos, e Harold Wilson se retira.
Um grande momento de cinema. (Há tempos digo que muito do melhor cinema dos últimos anos se faz para a televisão.)
“Uma aula de História”, definiu o jornalista Ascânio Seleme em artigo no jornal que ele já dirigiu, O Globo, no dia 20 de novembro, três dias após o lançamento mundial da terceira temporada. Ele aproveitou, é óbvio, a aula de História que é esse diálogo para se referir ao Brasil de hoje: “Para os principais líderes brasileiros, nunca é tarde para beber em boas fontes. As palavras de Harold Wilson servem muito bem ao presidente Jair Bolsonaro e ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O primeiro passa muitas vezes do ponto da histeria, causando enorme impacto no cotidiano dos brasileiros. O segundo, desde que abandonou o Lulinha paz e amor na cadeia, gera muitas vezes mais estresse do que calma mesmo entre os seus próprios seguidores. Nossos líderes precisam de exemplos. É fácil encontrá-los na História.”
“Na democracia não pode haver nós ou eles”
No primeiro governo Harold Wilson, de outubro de 1964 a junho de 1970, um gravíssimo acidente numa cidade de mineiros. No governo Edward Heath, de junho de 1970 a março de 1974, uma prolongada e duríssima greve de mineiros.
Ilha nada vasta e sem grandes rios, aquele reino tem imensa dependência do carvão – e os mineiros são uma categoria fortíssima, organizadíssima. Uma greve geral dos mineiros por melhores condições de trabalho paralisou a Grã-Bretanha nos anos 70. À rainha que chegou a ponderar que algumas das reivindicações dos trabalhadores eram justas, o primeiro-ministro Heath garantiu que o governo tinha estoque suficiente de carvão para garantir o suprimento de energia elétrica – e que iria vencer os sindicatos, iria dobrar o movimento.
Me lembrei de Margareth Thatcher, a quem chamaram de Dama de Ferro. Thatcher, como Heath, seu companheiro de Partido Conservador, em vez de diálogo preferia esmagar os oponentes. Fez isso contra os irlandeses em luta por soberania, ao longo de todo o seu governo, entre 1979 e 1990, fez isso com todos os sindicatos de trabalhadores – em especial os sindicatos de mineiros.
É bem do feitio de alguns dos líderes dos Tories, assim como de alguns dos líderes de direita mundo afora essa coisa de, em vez do diálogo, procurar a vitória como se fosse uma batalha, uma guerra.
Há uma tensa, nervosa reunião no número 10 da Downing Street, a residência oficial do primeiro-ministro do Reino Unido, entre Heath e alguns de seus ministros e o líder dos mineiros em greve. O sindicalista faz um discurso cheio de ódio, que ofende Heath pessoalmente. O primeiro-ministro começa a reagir falando em democracia, mas logo vai expondo sua natureza autoritária, enquanto sua voz vai se elevando:
– “Não permito que você nem nenhum arruaceiro entre aqui e ameace um governo democrático com greves antidemocráticas. Este governo tem sua política e não será desviado dela jamais!”
A tentativa de conversação cessa aí – e logo o Reino Unido enfrenta duros cortes de energia, por falta de carvão para as usinas termoelétricas.
A rainha dirá para Edward Heath outra frase que é uma lição de História para qualquer um que pretenda ser líder político: – “Em um pais democrático como o nosso, não pode haver nós ou eles. Só há nós. Todos nós.”
Uau!
E nós aqui, há anos e anos vivendo a divisão do nós x eles, do Fla x Flu.
Esses eventos acontecem no episódio 9 da terceira temporada, que tem o título de “Imbroglio” – e o imbróglio a que ele se refere não é a guerra entre o governo Heath e os sindicatos dos mineiros, mas sim os problemas referentes ao namoro do príncipe Charles.
Margareth Thatcher, a Dama de Ferro, e também a princesa Diana, The English Rose, ainda não aparecem nesta terceira temporada. Só aparecerão na quarta.
Nesta terceira quem aparece, quem protagoniza o imbróglio em que se mete a família real é Camilla Parker-Bowles – na verdade, ainda Camilla Shand, antes de virar Parker-Bowles. Ela é interpretada por Emerald Fennel (na foto abaixo), uma moça de pernas muito grossas e muito belas e seios fartos. Creio que a atriz foi escolhida em boa parte por causa desses atributos.
Pobre Charles Philip Arthur George Windsor
Charles é o protagonista do quinto episódio, que tem o título em galês, “Tywysog Cymru”, e aparece também com grande destaque nos episódios 8, “Na Corda Bamba”, e 9, o já citado “Imbroglio”.
Nas duas primeiras temporadas, já havia sido mostrado que o príncipe Philip manifestava abertamente que não tinha simpatia pelo seu primogênito. Bem ao contrário: sempre achou Charles um fraco, um indeciso. Não é dito explicitamente, mas fica claro, nas duas temporadas iniciais, que Philip acha o filho meio molenga, meio mariquinhas – ao mesmo tempo em que manifesta simpatia pela única filha, Anne, uma pessoa determinada, de opiniões fortes, firmes. (Nesta temporada, Anne é interpretada por Erin Doherty, na foto abaixo, uma atriz muito interessante, nada propriamente bela, assim como a personagem real.)
O espectador que viu as duas primeiras temporadas já sabe bem que Charles cresceu sem que pai e mãe demonstrassem afeto por ele. O que a terceira temporada mostra é que a família tratou Charles muito mal, desde sempre. E o trata especialmente mal naquele início dos anos 70, quando ele estava 20 e poucos anos.
No início do episódio 5, Charles está estudando em Oxford, participando de um grupo de teatro, e está feliz ali – talvez feliz pela primeira vez na vida.
A tradição manda que o príncipe herdeiro, o primogênito, tenha o título de Príncipe de Gales – e então, até por motivos políticos, para dar alguma importância ao País de Gales, onde crescia um sentimento separatista e antimonarquista, resolve-se que o pobre rapaz seja tirado do lugar em que está feliz e enviado para uma cidade histórica, emblemática de Gales, Aberystwyth, para passar ali alguns meses, numa universidade local, aprender a língua e então ser investido no título de Príncipe de Gales.
Charles tenta protestar, tenta argumentar – a mãe é implacável, e ele não tem outro jeito a não ser obedecer.
Esse episódio 5, “Tywysog Cymru”, é maravilhoso. (Bem, todos eles são.) As autoridades da universidade galesa escolhem para ser o tutor do herdeiro do trono um professor – Edward Millward, interpretado por Mark Lewis Jones – que é firmemente separatista e antimonarquista. O relacionamento entre o herdeiro do trono – tímido, solitário – com o professor galês que odeia a monarquia é uma maravilha de se observar.
Ao discurso preparado pelo pessoal do Palácio de Buckingham para a cerimônia de investidura como Príncipe de Gales, Charles resolve acrescentar um trecho escrito por ele mesmo, com suas próprias sensações, sentimentos. Ali ele se identifica com o País de Gales, sempre deixado de lado nas decisões, sempre relegado a um segundo plano. O professor Millward faz a tradução do discurso para o galês – e, na cerimônia, com a presença de toda a corte e das principais figuras políticas do Reino Unido, Charles consegue ler bastante bem o texto na língua difícil.
Quando vai se despedir do professor, este pergunta qual foi a reação da família real aos trechos que Charles escreveu. O rapaz dá uma risada e diz algo assim: – “Esta é a vantagem de ter lido o discurso em galês: ninguém da minha família entendeu nada!”
Dias após a cerimônia, Charles pede para ver a mãe. Quer algum elogio da rainha pelo sucesso que havia sido o discurso na investidura, muitíssimo bem recebido pela imprensa. Em vez de elogio, recebe uma porrada na cara. A rainha diz que leu a tradução do texto que ele escreveu, faz duras críticas às palavras do filho, e termina dizendo que ninguém quer ouvir o que Charles pensa. Ninguém – nem na família, nem no país.
Pobre Charles Philip Arthur George Windsor.
A família impediu à força o casamento de Charles
O que a imprensa passou para o mundo sobre o casamento de Charles e a princesa Diana (ou pelo menos o que passou para mim) foi que Charles não gostava daquela mulher belíssima com quem se casou, e que ela sofreu a vida inteira, comeu o pão que o diabo amassou. Ele, pobre diabo, bobão, imbecil, fazia a lindérrima, charmosíssima English Rose sofrer feito uma escrava porque amava uma outra mulher, uma bruxa velha, feia, horrenda, a tal Camilla Parker-Bowles.
Essa foi a versão vendida ao mundo.
A série mostra que o ainda bem jovem príncipe Charles conheceu Camilla Shand, uma moça atraente, pernas muito grossas e muito belas e seios fartos, como já foi dito, e se apaixonou perdidamente por ela.
Os príncipes, reis, rainhas não vivem num mundo à parte, um mundo de contos de fadas; vivem neste mundão véio de Deus e o diabo, e, naqueles anos 70, bem diferentemente do que acontecia nos anos 50, os jovens – tanto os de sangue azul quanto os plebeus – davam e comiam. Foi a época em que mais se trepou livremente na História recente da humanidade, aquele abençoado período entre a invenção da pílula e a chegada da aids.
E a jovem Camilla, moça nobre, filha de um barão, dava para um rapagão chamado Andrew Parker Bowles, ele também nobre, descendente de condes. Segundo a princesa Anne, que deu para Andrew, e conhecia bem o pedaço, Camilla tinha mais que uma paixão – tinha uma fixação pelo sujeito. Convocada para contar o que sabia num concílio familiar, Anne testemunhou que, caso Charles casasse com Camilla, teria sempre que conviver com mais uma ponta de um inevitável triângulo.
A família, então, decidiu que Charles não se casaria com Camilla. A moça era gasta, nada casta – e aí nada feito. A família, aí, é o grupo formado pela rainha Elizabeth II, o príncipe Philip, a rainha mãe (o papel de Marion Bailey) e Lord Mountbatten (Charles Dance), o tio e tutor de Philip.
É uma imensa maldade – e o pobre Charles sofre feito escravo romano que rema nas galés à la Ben-Hur.
Trata-se com simpatia o ex-rei que namorou o nazismo
Esta terceira temporada tenta comparar o sofrimento de Charles – impedido de viver com a mulher que amava loucamente – ao do tio-avô dele, o duque de Windsor, o que por um punhado de meses em 1938 foi o rei Edward VIII, que renunciou ao trono já que a família a tradição a propriedade impediriam que ele fosse ao mesmo tempo rei e marido da americana divorciada Wallis Simpson.
Vemos que Charles se interessa por conhecer o tio-avô, e vai visitá-lo em sua residência no Bois de Boulogne, em Paris. É dito, com fina ironia, que é um raríssimo encontro de um ex-rei com um futuro rei. (A própria rainha diz, lá pelas tantas, que “não é sempre que alguém pode conhecer um ex-rei: ex-reis normalmente estão mortos”.)
O ex-rei e o futuro rei desenvolvem uma amizade, trocam cartas. Nelas, Charles vai mostrar sua alma ao tio-avô.
O duque de Windsor, àquela altura já bem velho e muito doente, é interpretado pelo ótimo Derek Jacobi. Para fazer a americana Wallis Simpson, os realizadores escolheram Geraldine Chaplin (na foto abaixo), essa figura lendária, mítica, filha de Charlie, neta de Eugene O’Neil, ex-senhora Carlos Saura, atriz de mais de 160 títulos, dirigida por Deus e o mundo dos melhores realizadores do cinema, de Claude Lelouch a Pedro Almodóvar, de David Lean a Robert Altman.
É interessante que a terceira temporada trate bem o ex-rei, o mostre de uma forma simpática. Na segunda temporada, tínhamos visto que o filho da mãe tinha simpatias pelo nazismo. Na verdade, bem mais que vagas simpatias: a segunda temporada mostra que Edward VIII tentou fazer a Grâ-Bretanha se aliar à Alemanha nazista, nos meses que precederam o início da guerra em setembro de 1939. E pior ainda, muito pior ainda: já usufruindo de seu rico, luxuoso exílio na França então ocupada, o duque de Windsor ainda forneceu à Alemanha nazista informações sobre um pretenso enfraquecimento das forças britânicas durante a guerra, enquanto Londres era bombardeada pelos aviões da Luftwalle, a fim de tentar um cessar-fogo entre Alemanha e a Grã-Bretanha que permitisse sua volta ao trono.
Uma incrível quantidade de belas histórias
Esta terceira temporada tem uma quantidade incrível de histórias fascinantes, impressionantes, além dos já relatados aqui. Só para dar mais uns poucos exemplos:
* A visita-show da princesa Margaret à Casa Branca de Lyndon Johnson, em que ela bebe demais, fala palavrão, mete o pau em John F. Kennedy, dança, canta – e, com toda essa baixaria, conquista a simpatia do cowboy texano e uma substancial ajuda do governo americano ao do Reino Unido enfiado em crise. Helena Bonham Carter dá um show, quase como se estivesse num filme de Tim Burton, Johnson é interpretado – de forma levemente caricatural – por Clancy Brown.
* A fantástica figura da mãe do príncipe Philip, a princesa Alice de Battenberg (interpretada por Jane Lapotaire, na foto abaixo), que, em 1967, quando veio o golpe dos coronéis na Grécia, era uma freira do tipo Madre Teresa de Calcutá ou a baiana Irmã Dulce, agora santa, e mantinha um abrigo para miseráveis em Atenas. Bisneta da rainha Victoria, parente dos czares da Rússia e de nobres de várias casas reais da Europa, foi resgatada pelos serviços de inteligência britânicos a pedido da rainha Elizabeth II e até contra a vontade do filho, o príncipe Philip. Essa criatura mereceria uma série de um imenso número de episódios.
* A fascinação do príncipe Philip pela chegada do homem à Lua, a exigência dele de ter uma audiência privada de aviador para aviador com os três astronautas, Neil Armstrong, Buzz Aldrin e Michael Collins (interpretados respectivamente por Henry Pettigrew, Felix Scott e Andrew Lee Potts), suas dúvidas existenciais e sua relação com o capelão de Windsor, mostradas no episódio 7, “Poeira Lunar”.
As histórias – tanto as de grande dimensão política quanto as bem pessoais dos membros da família real – são atraentes, fascinantes, saborosas, e há muitas, várias, várias.
Mas este texto já está grande até pelos meus padrões, e então boto o ponto final. Agora, é aguardar a temporada 4.
Anotação em novembro de 2019
The Crown – A Terceira Temporada
De Peter Morgan, criador, roteirista, Reino Unido-EUA, 2019
Diretores Benjamin Caron, Samuel Donovan, Jessica Hobbs, Christian Schwochow
Com Olivia Colman (rainha Elizabeth II), Tobias Menzies (Philip, duque de Edinburgh)
e (na realeza e seu entorno) Josh O’Connor (príncipe Charles), Erin Doherty (princesa Anne), Helena Bonham Carter (princesa Margaret), Ben Daniels (Tony Armstrong-Jones, Lord Snowdon, o marido de Margaret), Marion Bailey (a rainha Elizabeth, a rainha mãe), Charles Dance (Lord Mountbatten), Jane Lapotaire (princesa Alice, a mãe de Philip), Charles Edwards (Martin Charteris), David Rintoul (Michael Adeane), Pip Torren (Tommy Lascelles), Emerald Fennell (Camilla Shand), Andrew Buchan (Andrew Parker Bowles), Verity Russell (princesa Elizabeth jovem), Beau Gadsdon (princesa Margaret jovem), John Hollingworth (Porchey, o dos cavalos), Samuel West (Anthony Blunt, o curador das obras de arte)
e (na política e seu entorno) Jason Watkins (primeiro-ministro Harold Wilson), Michael Maloney (primeiro-minitro Edward Heath), Clancy Brown (presidente Lyndon B. Johnson), Suzanne Kopser (Ladybird Johnson), Rupert Vansittart (Cecil King, do grupo Mirror)
e (outros) Mark Lewis Jones (Edward Millward, o professor da universidade no País de Gales), Nia Roberts (Silvia Millward, a mulher de Edward), Henry Pettigrew (Neil Armstrong), Felix Scott (Buzz Aldrin), Andrew Lee Potts (Michael Collins),
e (em participações especiais), John Lithgow (Winston Churchill), Derek Jacobi (David, duque de Windsor, o rei que abdicou), Geraldine Chaplin (Wallis Simpson)
Roteiro Peter Morgan (criador), Edward Hemming (editor da história), Jon Brittain, Jonathan Wilson, James Graham, David Hancock
Fotografia Stuart Howell
Música Martin Phipps
Montagem Adam Bosman, Daniel Greenway, Peggy Koretzky, Paulo Pandolpho, Frances Parker,
Casting Nina Gold e Robert Sterne
Produção Left Bank Pictures, Sony Pictures Television Production UK.
Cor, cerca de 600 min (6h)
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Vi só alguns minutos do primeiro episódio para verificar como se portava Olivia Colman; gosto muito desta actriz que conheci numa série na Netflix – Broadchurch.
E mais não digo, The Crown não é série que me interesse.
Concordo com tudo, amava Claire Foy, mas Olivia Colman é maravilhosa, que temporada excepcional.
Excelente! Não veja a hora de ver a quarta temporada…