Bonecas Russas é um absoluto encanto, um colírio para olhos cansados de ver tanta coisa ruim nas telas e na vida real. É daqueles filmes que, como dizia Roger Ebert, nos faz sermos melhores.
Levei mais de uma semana inteira entre rever o filme – agora que já vi a a primeira e a terceira parte das Aventuras de Xavier Rousseau, os também deliciosos Albergue Espanhol, de 2002, e O Enigma Chinês, de 2013 – e conseguir iniciar esta anotação. Em geral começo a anotação logo depois de ver o filme, ou no máximo no dia seguinte. Não sei explicar por que não me sentei aqui imediatamente e comecei logo a falar bem do filme.
Acho que, em parte, ao menos, é porque não saberia fazer direito uma sinopse do que basicamente acontece nesta segunda parte da Aventuras de Xavier Rousseau, três anos depois de Albergue Espanhol.
Sim, Xavier (Romain Duris) agora está com 30 anos – assim como estão três anos mais velhas também as grandes amigas que fez durante o ano que passou em Barcelona – Isabelle (Cécile de France) e Wendy (Kelly Reilly) – e a ex-namorada, Martine (Audrey Tautou, na foto abaixo).
Não é mais estudante – mas ainda não se firmou em um emprego ou em uma atividade contínua, estável. Abandonou tudo o que havia estudado, economia, administração, e quer viver de escrever, mas as coisas não são fáceis. Lá pelo meio da narrativa até que terá uma boa chance, ao ser convidado para escrever a continuação de uma novela para a TV francesa.
É um jovem adulto imaturo, confuso, que não sabe direito o que quer. Tem 30 anos mas parece um adolescente. Martine ainda sente alguma atração por ele, mas Xavier está num momento em que – bobão – não quer saber de se envolver de novo com ela; são amigos, ele cuida do filho dela quando ela viaja para Porto Alegre para participar do Fórum Social, mas só isso.
Ele terá um caso com uma beldade negra, Kassia (Aïssa Maïga), morará de favor com a amiga lésbica Isabelle (e Cécile de France está absolutamente sensacional no papel) e depois se reaproximará, por necessidade do trabalho, da inglesa Wendy (e Kelly Reilly, que sempre foi estrondosamente bela, nunca esteve tão bela quanto neste Bonecas Russas).
E não é spoiler nenhum dizer que Xavier mais as três mulheres de sua vida e outros amigos irão para São Petersburgo, para assistir ao casamento de William (Kevin Bishop), o irmão de Wendy, com uma bailarina russa, Natasha (Evguenya Obraztsova).
As sequências na cidade mais bela de todas as Rússias são de babar, são uma maravilha, um néctar do Olimpo.
Eis a sinopse do AlloCiné, o site que tem tudo sobre o cinema francês: “Xavier tem 30 anos. Realizou seu sonho, virou escritor, mas parece ainda um pouco perdido. Tem problemas com a gerente do banco. Tem igualmente reticências a se fixar com uma mulher e entra em aventuras amorosas sem consequência. Xavier é obrigado a continuar seu trabalho em Londres, depois em São Petersburgo. Essas novas viagens talvez permitam que ele reconcilie o trabalho, o amor e a escrita.”
Xavier Rousseau está para a geração da minha filha como Antoine Doinel para a minha
A verdade é que não importam tanto os acontecimentos, os fatos desse segundo momento em que acompanhamos a vida de Xavier. Assim como do primeiro e do terceiro. Muito mais que a trama, a história, os fatos, o que importa é o comportamento do nosso herói e das pessoas que o cercam. É como eles agem, como eles respondem às coisas que vão surgindo em suas vidas.
Os fatos são interessantes, sem dúvida alguma. Mas o que mais interessa são as pessoas, suas reações, seu comportamento.
Não é tanto o que, e sim o como.
É o como que faz de Bonecas Russas uma delícia maravilhosa. Na verdade, não apenas Bonecas Russas, mas toda a até aqui trilogia, Albergue Espanhol–Bonecas Russas–O Enigma Chinês. (Digo até aqui porque creio que Cédric Klapisch ainda fará um quarto episódio.)
Fiquei pensando, depois de rever agora o filme, que As Aventuras de Xavier Rousseau estão para a geração da minha filha exatamente como As Aventuras de Antoine Doinel estão para a minha geração.
Jean-Pierre Léaud, que teve a sorte grande de ter sido escolhido por François Truffaut para interpretar seu alter-ego, Antoine Doinel, na verdade era um pouquinho mais velho que eu, cinco anos e meio. Os atores que Cédric Klapisch teve talento e sorte grande para escolher são todos bem próximos da idade da minha filha.
Romain Duris é de 1974: estava com 28 no ano de lançamento de Albergue Espanhol, 31 aqui em Bonecas Russas e 39 em O Enigma Chinês.
Cécile de France (na foto abaixo) é exatamente do ano da minha filha, 1975. Audrey Tautou é do ano seguinte, 1976, e Kelly Reilly é a caçulinha da turma, de 1977.
E é engraçado, é fascinante – não sei se é triste, se é trágico, se é ótimo – verificar que, da geração de Antoine Doinel (e minha) para a de Xavier Rousseau e suas mulheres (e da minha filha), as coisas não mudaram tanto. Na verdade, mudaram bem pouco, em termos de vida pessoal, de comportamento, da forma com que a sociedade se organiza. Claro, agora há o TGV, o túnel sob o Canal da Mancha, os laptops e os telefones celulares, e São Petersburgo voltou a se chamar São Petersburgo, como era na época de Tolstói e Dostoiévski, e não mais Leningrado, porque não existe mais União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – mas, tirando essas gigantescas mudanças na tecnologia e na superestrutura sócio-política, as pessoas não são tão diferentes assim, e as dúvidas que assaltavam Antoine Doinel não são muito distantes das que tomam conta da cabeça de Xavier Rousseau – até porque os dois são bastante parecidos nessa coisa de serem meninões que não cresceram direito, que estão aí chegando aos 30 mas com um jeito absolutamente adolescente.
Klapisch usa muitos fogos de artifício – mas faz tudo com brilho
Exatamente como havia feito em Albergue Espanhol, e faria de novo em O Enigma Chinês, Cédric Klapisch usa e abusa de belas sacadas, invencionices, criativóis, fogos de artifícios formais. Sua câmara é inquieta, seu relacionamento com a cronologia é conflituoso, em muitos momentos a montagem é rápida como os clips de música, três tomadas diferentes a cada décimo de segundo.
Os realizadores franceses mais jovens, assim, os que têm produzido suas obras nos últimos 20 anos, adoram os fogos de artíficio. Jean-Pierre Jeunet esgotou o estoque de fogos de artifício das lojas parisienses em Amélie Poulain. O ator tornado diretor Albert Dupontel também gastou fogos de artifício em escala industrial em seu divertido Uma Juíza Sem Juízo/9 Mois Ferme (2013). Até Valérie Guignabodet, preocupada em falar sobre casamento, relações afetivas, traição, separarção, divórcio, abre o vidro de criativol em Casos e Casamentos/Mariages! (2004).
Sou um velhinho que a cada dia mais aprecia as narrativas clássicas, acadêmicas, como dizem os críticos quando estão muito furiosos e querendo espezinhar os filmes que não revolucionam, não reinventam, não transgridem. A cada dia aprecio menos filmes que pretendem revolucionar, reinventar, transgredir; a cada dia mais venero Truffaut e mais desprezo Godard.
No entanto, Cédric Klapisch vem com invencionices, criativóis, fogos de artifício belissimamente pensados e executados, e aí como é possível resistir?
E, além da beleza do aspecto formal, o cara escreve bem. É impressionante: quanto mais ele vem com invencionices visuais ou narrativas, mais o texto dele se mostra impressionante.
Eis o monólogo inicial de Xavier. Nós o vemos no TGV, digitando furiosamente seu laptop – até que a bateria mia, chia, e ele vai até o banheiro e liga o laptop a uma fonte de energia.
– “30 anos. Querendo ou não, faço um balanço. Revendo minha vida, percebo que não há nada marcante. O que sobrou? Fui apaixonado por uma garota – Martine. (Surge a imagem de Martine-Audrey Delícia Tautou à direita da tela.) Não, não é nada disso. Me apaixonei por outra depois: Neus. (E vemos Neus-Irene Montalà em plano americano correndo peladinha, seios à mostra.) Ah, comecei a história de um jeito confuso. É porque estou confuso. Tenho que pôr as idéias em ordem. Escrever é isso mesmo. Escrever é pôr ordem na confusão da vida. Não, vou escrever na ordem, senão vira um rolo. (Vemos a cara de Xavier-Romain Duris em close-up, ao ar livre.) Esse sou eu. Há um mês, fui à Rússia assistir a um casamento. Essas pessoas que conheço há muito tempo. (Vemos o rosto de Isabelle-Cécile de France.) Enfim… Na verdade, fui morar em Barcelona anos atrás. (Vemos o rosto de Wendy-Kelly Reilly.) Foi lá que as conheci. Dividimos um apartamento por um ano…”
Diálogos espertos, engraçadíssimos, inteligentes, saborosos
Martine dirá para o ex-amante: – “Desculpe, Xavier, mas a mulher que você está procurando não existe. Veja se cresce! Você quer um princesa, uma heroína de novela. Pare de sonhar, Xavier. Princesas só existem em conto de fadas.”
Há um momento em que Xavier fala uma asneira, uma estupidez, uma estultice. Fantástico: ao rever o filme agora e ver de novo a situação, pensei: meu Deus, eu já fiz esse tipo de coisa mil vezes, quando era bem jovem!
Ele está vivendo de favor na casa da amiga Isabelle. Martine está carente e solitária e vai visitá-lo à noite, e acaba dormindo no quarto dele. Na manhã seguinte, Xavier sabe que chegará Kassia, a deusa negra, e tenta expulsar a antiga namorada e sempre amiga. Não dá outra: Kassia chega no momento exato em que Martine está saindo.
Kassia: – “Quem é ela?”!
Xavier: – “Não é ninguém.”
Martine: – “Eu não sou ninguém??”
Bem mais tarde, ele já percebeu que está amando Wendy (e, meu Deus do céu e também da terra, haveria alguém capaz de não amar Wendy, vindo ela na pele de Kelly Reilly?). E então ele diz para ela: – “É doido como esses momentos ridículos são fortes. Uma coisa que dura dois segundos (big close-up de duas mãos juntas na rua) nos marca profundamente para o resto da vida. Em geral, os filmes de amor param por aí. O melhor da história é não contar como ela continua. Mas justamente o que interessa é o que vem a seguir.”
Xavier filosofando: – “Começar uma história com uma garota é como viajar. É indo para longe com alguém que descobrimos se estamos perto.”
Uma sacadinha que faz lembrar de John Huston e Alfred Hitchcock
Umas cinco, talvez seis, talvez mais vezes, Klapisch mostra o TGV indo da esquerda para a direita, e um pouco mais tarde da direita para a esquerda. É que lá pelas tantas a emissora de TV para a qual Xavier estava escrevendo um novo pedaço de novela havia se fundido a uma emissora britânica, e então ele passa a viajar de Paris para Londres seguidas vezes. Em Londres, trabalha com Wendy.
E então vemos o TGV passando para um lado, e depois passando para outro.
Nenhum cinéfilo mais vivido deixará de lembrar de John Huston e Alfred Hitchcock.
Em A Honra do Poderoso Prizzi/Prizzi’s Honor (1985), John Huston mostra, várias vezes, um avião indo da direita para a esquerda, portanto de Leste para Oeste, portanto de Nova York para Los Angeles, e depois um avião vindo da esquerda para a direita, e portanto na direção contrária.
Em Intriga Internacional/North by Northwest (1959), mestre Hitch mostra que um trem entrando num túnel é, graficamente, a exata mesma coisa que o ato sexual. Klapisch mostra em seu filme umas seis penetrações.
Um dia ainda me sento na minha poltrona e vejo todos os três filmes maravilhosos das Aventuras de Xavier Rousseau sem ter a obrigação de escrever sobre eles, pois já escrevi.
Nossa, que maravilha: ver ou rever filmes bons e não ter que escrever sobre eles! Deve ser o máximo da felicidade…
Anotação em junho de 2015
Bonecas Russas/Les Poupées Russes
De Cédric Klapisch, França-Inglaterra, 2005
Com Romain Duris (Xavier Rousseau), Audrey Tautou (Martine), Cécile De France (Isabelle), Kelly Reilly (Wendy), Amin Djakliou (Lucas, o filho de Martine), Kevin Bishop (William), Evguenya Obraztsova (Natasha), Irene Montalà (Neus), Gary Love (Edward), Lucy Gordon (Celia Shelburn), Aïssa Maïga (Kassia), Martine Demaret (a mãe de Xavier), Pierre Gérald (o avô de Xavier), Zinedine Soualem (M. Boubaker)
Argumento e roteiro Cédric Klapisch
Fotografia Dominique Colin
Música Loïc Dury, Bruno Epron Mahmoudi, Laurent Levesque e Christophe Minck
Montagem Francine Sandberg
Produção Ce Qui Me Meut Motion Pictures, TPS Cinéma,
Lunar Films, StudioCanal, France 2, Canal+. DVD Europa Filmes
Cor, 125 min
R, ***1/2
Rapaz, eu vi esse no cinema, adorei, mas não lembrava o nome nem a pau, não sabia o nome de ator nenhum. Tempos depois eu vi outras coisas c/ o Romain Duris, eu acho ele uma figura pra se prestar atenção como ator, vi um dele bacana no meio da ciganada, uma cigana bigoduda, que cospe o tempo todo e gostosa que só ela. Lembro que a bailarina russa me fez sonhar muito tempo com ir pra Rússia e achar uma igual ou ao menos parecida…
Entrei no cinema por puro acaso e adorei o troço todo, saí de lá todo felizinho. Agora vem vc e escrarece. Sabe tudo!
Mais uma: e tem a coisinha mais bonitinha que Deus pôs no mundo: Audrey Tautou. Vc viu um dela chamado Salão não sei o que não (Venus?), se bobear o 1o. dela?
“Instituto de Beleza Vênus”, no original “Vénus beauté”, grande Heitor.
Pois é, rapaz. Fui checar nas minhas anotações, e eu vi o filme, na TV a cabo, erm 2006. Nossa, três belas atrizes – Nathalie Baye, Mathilde Seigner, Audrey Tautou.
Mas acho que não entendi o filme, não sintonizei com ele. Anotei apenas, além da ficha técnica, o seguinte: “Pequenas desventuras de empregadas de um salão de beleza em busca do amor.” E dei só uma estrelinha.
Acho que precisaria ver o filme de novo…
Grande abraço, Heitor!
Sérgio
Sergio, o do Romain Duris com a cigana bigoduda se chama Gadjo Dilo. Em português podia se chamar Como Era Porca e Gostosa a Minha Cigana…
Vc vê esse tipo de coisa? O engraçado é q/ tá inteirinho no Youtube. Foi lá q/ eu vi… craro, uma coisa daquela não passa no cinema aqui…
“Bonecas Russas” foi o filme de que menos gostei dessa trilogia. A história parece que não andava, o roteiro não me prendeu, lembro de ter achado muito chato. A indecisão e imaturidade do personagem do feioso Romain Duris dão nos nervos. Na época passei por algo parecido, e talvez por isso não tenha gostado do filme; ou vai ver a história é que é ruim mesmo, não sei. Essas suas duas frases resumem bem a personalidade de Xavier Rousseau: “É um jovem adulto imaturo, confuso, que não sabe direito o que quer. Tem 30 anos mas parece um adolescente.” E como eu detesto pessoas confusas, mal resolvidas em relação a seus sentimentos! Só causam sofrimento aos outros; não deveriam se envolver jamais.
Enfim, precisaria rever para ver se mudo de opinião sobre o filme.
Como sou da mesma faixa etária dos atores, vi os filmes à medida em que foram sendo lançados, com quase a mesma idade que eles; então se o diretor resolver fazer mesmo um quarto episódio, vai ser daqui uns dez anos, e eu espero que demore a chegar. he
Digo o mesmo sobre a trilogia de Richard Linklater, embora os dois atores sejam mais velhos que eu.
Queria enxergar esse filme com os olhos que vocês enxergam, porque sinceramente…