Livre / Wild

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2.5 out of 5.0 stars

Já vi muito filme na vida, mas acho que poucos começam com uma sequência tão violenta – e uma série de sequências tão francamente incomodativas, perturbadoras desagradáveis, repulsivas mesmo – quanto este Wild, que o diretor canadense Jean-Marc Vallée lançou em 2014.

O espectador ouve os ruídos de uma respiração absolutamente descontrolada antes de ver qualquer pessoa na tela. É um resfolegar forte, alto, que até parece ser de uma mulher no auge do gozo. Não, não é: é de uma mulher que sente muita dor, uma dor física imensa.

Estamos diante de uma paisagem belíssima, estrondosa, o alto de uma montanha magnífica, e então a câmara mostra a heroína, na figura de Reese Witherspoon. Não, ela não está gozando. Está gemendo de imensa dor, porque tirou as botas e as unhas estão ensaguentadas. E então ela faz uma força imensa, e arranca a unha de um dos dedões dos pés, e dá um grito de dor imenso, gigantesco, incomensurável.

Mas a violência da primeira seqüência de Wild não terminou ainda, não, senhor.

O movimento que Cheryl, a personagem interpretada por Reese Witherspoon, faz para arrancar a unha é tão violento que a bota que ela havia retirado para examinar o estado lastimável de seus pés acaba caindo ribanceira abaixo. Uma ribanceira imensa, incomensurável como a dor de quem arranca a unha do seu próprio pé.

Diante da tragédia, Cheryl pega o outro pé de sua bota, tornado agora absolutamente inútil, e o joga montanha abaixo, enquanto dá um berro furioso de fuuuuuuuuck!

Reese Witherspoon as "Cheryl Strayed" in WILD.

Claro: Cheryl está absolutamente sozinha numa montanha altíssima, longe de qualquer sinal de civilização, e terá a partir de agora que andar sem as botas.

Pensei bastante em parar o filme naquele exato momento. Por que, raios, eu, que absolutamente morro de medo de qualquer pequena dor, iria  me expor a um filme que começa com uma pessoa arrancando a unha do dedão, e que vai ter que a partir daí caminhar sem botas para proteger os pés?

O desempenho de Reese Witherspoon teve loas e muitos prêmios

Resolvi continuar vendo o filme – sem saber absolutamente nada sobre Jean-Marc Vallée, canadense do lado de fala francesa, o diretor – porque ele tem sido fartamente elogiado, e o desempenho de Reese Witherspoon tem recebido loas e mais loas.

A atriz recebeu indicações para o Oscar, o Globo de Ouro, o Bafta e o prêmio do Screen Actors Guild, o sindicato dos atores, e mais diversas indicações em festivais ao redor do mundo – e de fato seu desempenho é extraordinário, magnífico.

E o filme, de resto, é soberbamente bem realizado em todos os quesitos técnicos – fotografia, movimentos de câmara, trilha sonora, direção de arte, reconstituição de época – a ação se passa duas décadas atrás, em meados dos anos 1990.

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O roteiro (de Nick Hornby, o autor dos livros que deram origem a Alta Fidelidade, 2000, e Um Grande Garoto, 2002) usa e abusa, como tem sido cada vez mais comum, de idas e vindas no tempo, misturando o hoje, os dias em que Cheryl está caminhando, com acontecimentos do passado da moça.

Sim, tem diversas qualidades, sem dúvida alguma. Eu, pessoalmente, achei que enfrentar aqueles 115 minutos de duração de Wild é uma experiência torturante, excruciante, pavorosa.

Wild mostra uma bela loura se chicoteando ao longo de 115 minutos

O filme se baseia numa história real, que foi contada num livro de memórias publicado por Cheryl Strayed em 2002, Wild: From Lost to Found on the Pacific Crest Trail – selvagem: de perdida a achada na Trilha Crista do Pacífico. O livro foi um fantástico sucesso; ficou durante sete semanas consecutivas como número 1 da celebrada lista de best-sellers do New York Times; três meses e pouco após ser lançado, foi escolhido para abrir a seleção do Clube do Livro de Oprah Winfrey 2.0. Já teve tradução em mais de 30 línguas.

É um relato em primeira pessoa de como Cheryl, em 1995, aos 26 anos de idade, caminhou sozinha por 1.800 quilômetros na Pacific Crest Trail. Vamos lá: 1.800 quilômetros é pouco menos que a distância, por estradas, entre São Paulo e Salvador.

É muito chão.

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A Pacific Crest é uma trilha para andarilhos que atravessa os Estados Unidos de Sul a Norte – começa junto da fronteira do México, não muito longe de Tijuana e San Diego, e vai até a fronteira com o Canadá, não muito distante de Vancouver. Passa pelos Estados da Califórnia, Oregon e Washington.

A trilha fica de 160 a 240 km da costa do Pacífico – e boa parte dela é no cume de largos trechos da Sierra Nevada e Cascade, embora haja também um trecho dentro do deserto de Mojave, perto da fronteira de Califórnia e Nevada. Ela alterna altitudes desde praticamente 0, ou seja, o nível do mar, até 4 mil metros, no topo da Sierra Nevada.

Em suma: não é bolinho. De jeito nenhum. Não é pra qualquer um. Não é para amadores. É para montanhistas e andarilhos experimentados, tarimbados, treinados.

O filme mostra que Cheryl não era uma montanhista e/ou andarilha experimentada, tarimbada, treinada. Bem ao contrário. Era uma danada de uma amadora: pelo jeito, nunca tinha sequer armado uma barraca na vida. Não compra o gás correto, e então passa os primeiros dias sem poder usar o fogareiro – só para dar um pequeno exemplo. E até mesmo usava botas mais apertadas do que seria o recomendável!

Para os montanhistas e andarilhos experimentados, tarimbados, treinados e bem equipados, fazer essa trilha deve ser uma experiência gloriosa, extasiante, nirvânica, celestial: a paisagem é estrondosamente maravilhosa.

A questão é que Cheryl não está fazendo a trilha para aproveitar a vista, a beleza: está se submetendo a uma provação para pagar pecados, para expiar culpas, para se livrar do peso dos erros que vinha acumulando nos últimos meses, depois que sua mãe, Bobi, uma mulher forte, alegre, cheia de vontade de viver (bem interpretada por Laura Dern, na foto abaixo), havia morrido de câncer.

Laura Dern as "Bobbi" in WILD.

Após a morte de Bobi, Cheryl abandonou o marido, Paul (Thomas Sadoski), o estudo, o emprego, tudo, para se afundar na heroína e numa trepação sem fim, com o primeiro que aparecesse – e apareceram dezenas.

Até que então um dia resolveu parar com aquela dissipação autodestrutiva e, para pagar os pecados, para expiar as culpas, para se livrar do peso dos erros, submete-se à tarefa dura, duríssima, de enfrentar a trilha por montanhas e desertos, do cume gelado ao calor sufocante.

Mais ou menos como aqueles religiosos medievais que se chicoteavam.

Wild é um filme que mostra uma bela loura se chicoteando ao longo de 115 minutos.

Convenhamos: não é nada agradável de se ver. Nada, nada, nada, nada.

O espectador que não está a fim pagar pelos seus pecados, o que é que ele tem a ver com todo aquele sofrimento?

Um diretor competente, seguro, que domina o ofício

Mas é uma história real, e, afinal de contas, uma história de superação. Cheryl, que, ao se divorciar de Paul, passou a adotar oficialmente como sobrenome o adjetivo strayed – perdido, desgarrado, extraviado – ao fim e ao cabo deu a volta por cima, tornou-se famosa e respeitada entre os trilheiros americanos e, ao contar sua experiência de se chicotear, vendeu muitos livros, deve ter juntado um monte de dinheiro.

E então, é claro, o filme agrada às platéias. O Box Office Mojo não tem o valor do custo do filme, mas mostra que ele rendeu US$ 52 milhões (US$ 37,8 no mercado interno, US$ 14,6 mundo afora). Não é um blockbuster, mas é um belo resultado para um drama sobre seres humanos.

Sim: Jean-Marc Vallée, o diretor. Nascido em Montreal, em 1963, tem 13 títulos na filmografia como diretor, entre eles o recente e muito badalado Clube de Compras Dallas (2013), o bom A Jovem Rainha Victória (2009) e C.R.A.Z.Y. – Loucos de Amor (2005).

Pelo que vi dele, A Jovem Rainha Victória e este Wild aqui, é competente, seguro, domina o ofício.

A Cheryl real aparece em uma tomada, e sua filha faz o papel dela criança

A indicação de Reese Witherspoon ao Oscar foi sua segunda, e de novo por interpretar uma personagem real: ela havia sido indicada antes pelo papel de June Carter, a cantora da sagrada família do country que se casou com Johnny Cash, em Johnny & June/Walk the Line (2005). Naquela ocasião, Reese levou a estatueta para casa.

Wild teve outra indicação ao Oscar: Laura Dern, que faz, como já foi dito, a mãe da protagonista Cheryl, foi indicado ao prêmio de melhor atriz coadjuvante.

Nenhuma das duas levou – mas suas interpretações são de fato extraordinárias.

Reese Witherspoon as "Cheryl Strayed" in WILD. Courtesy Fox Searchlight Pictures. Copyright © 2014 Twentieth Century Fox

Na vida real, Laura Dern é apenas nove anos mais velha que Reese Witherspoon: a primeira nasceu em 1967, e a segunda, em 1976.

O IMDb aponta, em sua página de Trivia – informações, histórias sobre a produção –, que a verdadeira Cheryl Strayed tinha 26 anos quando começou a fazer a trilha Pacific Crest; Reese Witherspon estava bem mais velha, tinha 38 quando o filme foi feito. Não que isso seja um defeito, ou chegue a comprometer: a atriz parece ter uns 30 anos.

E Reese Witherspoon tem tudo a ver com o filme, com o papel. A própria autora mandou os originais para a atriz, antes mesmo da publicação do livro, porque achava que ela seria perfeita para interpretar o papel. Reese e seu agente não são bobos nem nada, e imediatamente compraram os direitos de filmagem do livro – antes que ele virasse o estrondoso sucesso que virou.

Cheryl Strayed aparece rapidissimamente no filme, embora nem dê para ver seu rosto direito. Ela faz a motorista que dá uma carona a Cheryl–Reese bem no inicinho da narrativa, e a deixa no motel em que ela passa uma noite antes de ir para o início da trilha, no extremo Sul da Califórnia, junto da fronteira com o México.

Nas sequências de flashback, em que a protagonista se lembra de acontecimentos da sua infância, quem faz papel dela criancinha é a filha de Cheryl na vida real, Bobbi Strayed Lindstrom.

Sim: ao final de sua aventura pelos 1.800 quilômetros da Pacific Crest Trail, Cheryl Strayed deixou de ser strayed, perdida, desgarrada, extraviada. Em 1999, casou-se com o diretor de cinema Brian Lindstrom; vivem em Portland, Oregon, não muito longe do final da trilha, e têm dois filhos.

Além de seu livro autobiográfico que deu origem ao filme, Cheryl Strayed publicou outros dois, Torch e Tiny Beautiful Things: Advice on Love and Life from Dear Sugar.

Agora, por que raios os exibidores brasileiros mudaram o título do filme de Wild – selvagem – para Livre, ah, isso aí nem Freud seria capaz de explicar.

Reese Witherspoon as "Cheryl Strayed" in WILD.

Anotação em maio de 2015

Livre/Wild

De Jean-Marc Vallée, EUA, 2014.

Com Reese Witherspoon (Cheryl Strayed),

e Laura Dern (Bobbi, a mãe), Thomas Sadoski (Paul, o ex-marido), Keene McRae (Leif, o irmão), Michiel Huisman (Jonathan), W. Earl Brown (Frank), Gaby Hoffmann (Aimee), Kevin Rankin (Greg), Cliff De Young (Ed), Mo McRae (Jimmy Carter)

Roteiro Nick Hornby

Baseado no livro de memórias de Cheryl Strayed, Wild: From Lost to Found on the Pacific Crest Trail

Fotografia Yves Bélanger

Montagem Martin Pensa e Jean-Marc Vallée

Produção Fox Searchlight Pictures, Pacific Standard.

Cor, 115 min

**1/2

 

4 Comentários para “Livre / Wild”

  1. Interessante, sr Sérgio, nunca tive vontade de assistir a este filme, pois pensava: um filme sobre uma andarilha, não dá! Diante de seu comentário, como sempre, excelente, vou tentar vê-lo!

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