No final de Antoine et Colette, de 1962, o segundo volume de suas aventuras, Antoine Doinel está com 18 anos, vive sozinho e trabalha na fábrica de discos da Philips. Quando começa este Baisers Volés, de 1968, haviam-se passado, portanto, seis anos, Antoine está com 24, e há nada menos de três anos serve como soldado raso no exército francês.
É um soldado da pior qualidade possível e imaginável. O oficial superior que vai conversar com ele, bem no início do filme, para comunicá-lo de que está sendo dispensado do serviço militar sem qualquer honra ou privilégio, nem sequer entende como foi possível que o rapaz houvesse se alistado de livre e espontânea vontade, já que sempre se demonstrou absolutamente incapaz de qualquer uma das tarefas de um soldado.
A rigor, Antoine passou mais tempo preso – por algum ato de indisciplina ou desleixo – do que de fato trabalhando, em seu tempo de exército.
Não recebe com tristeza as admoestações todas, as reprimendas do oficial superior, que está para devolvê-lo à vida de civil. Ao questionamento dele, de por que afinal se alistou, Antoine responde apenas que foi levado a isso por questões pessoais. E até tem que segurar um sorriso: está é muito feliz por se livrar da farda e do fardo do exército.
E, ao sair do quartel, quase saltitando de alegria, faz o que faria qualquer rapaz da idade dele, naquela época: vai às putas.
A primeira que encontra se mostra cheia de não me toques: diz que beijo na boca nem pensar, carinho no cabelo de jeito nenhum – atrapalha o laquê. Antoine está saudoso, mas nem tanto. Deixa a mulher no quarto, desce as escadas. Lá embaixo, encontra uma outra, que acaba de descer após um serviço – sobem novamente as escadas do hotelzinho fuleiro.
O filme começa na Cinemateca, ao som da canção esplêndida de Trenet
Baisers Volés. Em inglês, Stolen Kisses – comme il faut. Na Itália, Baci Rubati. Na Espanha, Besos Robados. Em Portugal, Beijos Roubados. Só no Brasil é que roubaram o sentido original do título, e virou Beijos Proibidos.
Baisers Volés é uma expressão roubada da maravilhosérrima canção de Léo Chauliac-Charles Trenet, “Que reste-t-il de nos amours”. O filme abre ao som da canção, na voz do próprio Trenet: “Bonheur fané, cheveux au vent, Baisers volés, rêves mouvants, Que reste-t-il de tout cela, Dites-le-moi” – meu Deus do céu e também da terra, que absoluta maravilha. Felicidade murcha, cabelos ao vento, beijos roubados, sonhos mutantes – o que resta de tudo isso?
Enquanto ouvimos essa maravilha, vão rolando os créditos iniciais, sobre a imagem da entrada da Cinemateca Francesa – ou Musée du Cinéma, como estava escrito na entrada da Cinémathèque, localizada, até poucos anos atrás, numa das extremidades do Palais de Chaillot, no Trocadero, o monumental prédio diante da Torre Eiffel.
(Em 2005, depois de décadas naquele lugar mais que nobre, a Cinémathèque passou a ocupar o prédio do antigo American Center, na Rue de Bercy, próximo da Gare de Lyon. A única vez na vida em que fui a Paris, praticamente arrastado pela Mary, ainda não fora feita a mudança. Então levei-a até o prédio da Cinématèque com que François Truffaut abre seu Baisers Volés; fui até lá com a paixão de um cristão em visita à Praça São Pedro, um muçulmano em Meca. Só não me ajoelhei. Vimos um Bergman leve e gracioso, A Flauta Mágica, seguido de debate. Entendi menos da metade do que se disse no debate, mas saí de lá de alma lavada, como um religioso que cumpriu sua peregrinação.)
Ao final dos créditos há a dedicatória: “Baisers Volés é dedicado à Cinemateca Francesa de Henri Langlois.” Com a assinatura: F.T.
Ao sair do exército, Antoine tem a sorte de reencontrar o senhor Darbon
François Truffaut, nascido em Paris em 1932, estava portanto com 36 anos quando o filme foi lançado – 12 a mais que Antoine Doinel, seu alter-ego, e também que Jean-Pierre Léaud, o garoto que tinha apenas 14 anos quando, em 1958, foi escolhido para fazer o papel principal de Os Incompreendidos/Les Quatre-Cents Coups.
Entre 1959, o ano de lançamento do filme, seu primeiro longa-metragem, e 1968, o ano deste terceiro filme da série Antoine Doinel, François Truffaut obteve o reconhecimento mundial como um dos maiores realizadores da história do cinema.
Nesse mesmo período, Antoine Doinel fugiu várias vezes de casa, roçou a marginalidade, foi parar num reformatório, fugiu de lá quando estava com 15 anos. Não se sabe exatamente o que fez entre esse período – mostrado em Les Quatre-Cents Coups – e 1962, quando reapareceu em Antoine et Colette, aos 18 anos de idade, morando sozinho num apartamentozinho pequeno em Montmartre, trabalhando na fábrica de discos da Philips e frequentando todos os concertos para a juventude.
Novo período sem que acompanhemos os passos dele, e eis que agora, no filme de 1968, o terceiro dos cinco que contam suas aventuras, Antoine Doinel se livra do exército, após três anos.
Havia abandonado os estudos muito cedo. Aos 14 anos cabulava aulas – para ir ao cinema, andar sem rumo pelas ruas da cidade. Agora, aos 24 anos, não tem diploma, formação professional alguma.
Mas não é mais um quase marginal, e está longe de ser miserável. Tem o apartamentozinho em Montmartre, pequenino, num prédio deteriorado – mas epa! – é um apartamento em Montmartre. É leitor voraz, adora Balzac. E tem conhecidos. Um casal extremamente simpático, afetuoso, os Darbon (interpretados por Daniel Ceccaldi e Claire Duhamel), tem grande afeição por ele. Lucien Darbon o encontra na rua, e logo o convida para jantar em sua casa, com a mulher e a filha, Christine (o papel de Claude Jade, nas fotos acima e abaixo). No passado – não se explica como –, Christine havia conhecido Antoine, e tinham ficado muito amigos.
Antoine e Christine se gostam, mas as coisas não parecem engrenar direito
Antoine amigo de uma jovem, conquistando a afeição dos pais dela. Antoine, que vem de um lar desfeito, triste, que não tem mais qualquer ligação com seus próprios pais, encontramdo guarida em um lar bem estabelecido, tranquilo, confortável, seguro.
Antoine que não estudou e começou cedo a trabalhar. Uma amiga que não trabalha, só estuda.
Já vimos esse filme antes, é claro. Isso que é mostrado no início deste Baisers Volés, Antoine frequentando a casa de Christine, já havia acontecido em Antoine et Colette.
A diferença entre os dois casos, no entanto, é importante. No filme anterior, Antoine estava apaixonadinho por Colette (Marie-France Pisier), mas Colette não sentia nada por ele – era um bom amigo, e só, e nunca seria mais que isso.
Aqui, não. Christine sente uma atraçãozinha pelo rapaz. E ele também se interessa pela moça, mas acha que ela se faz de difícil. Até roubará um beijo dela, na adega da casa – uma sequência especialmente linda, terna e delicada como tudo o que Truffaut faz –, mas as coisas entre os dois não engrenam. Ou parece que não vão dar certo nunca.
É como dizia a canção de Georges Moustaki, as coisas não acontecem em linha reta, direta, e é sempre preciso dar voltas e voltas para que duas pessoas se encontrem de fato.
Aos 24 anos, Antoine é uma criança, um meninão que não cresceu
E, afinal, Antoine, 24 anos de idade, após três longos anos no exército, não está ainda interessado em compromisso sério. Quer saracotear um pouco, dar uma de beija-flor, antes de se tornar um joão de barro.
Antoine não é um sujeito altão, exatamente como seu criador (Jean-Pierre Léaud tem 1 metro e 70 e Truffaut tinha 1 metro e 68, segundo o IMDb). Mas gosta de mulheres altas, gigantescas. Há uma deliciosa seqüência em que ele aparece caminhando ao lado de uma mulher uns 15, 20 centímetros maior que ele. Vemos os dois pelas costas – e Antoine se vira para o lado e para cima, a fim de ver o rosto dela.
A seqüência é tão deliciosa que Truffaut a repetiria como um flashback em O Amor em Fuga/L’Amour en Fuite, o quinto e último filme do ciclo.
Antoine fará nova visita às putas.
E terá uma paixão estrondosa, magnífica, pela mulher de seu ocasional patrão, Fabienne Tabard – interpretada, com encanto e charme, por Delphine Seyrig (na foto abaixo), a musa de Alain Resnais em O Ano Passado em Marienbad (1961), que teve também uma bela participação em Pele de Asno de Jacques Demy (1970) e trabalhou com Luís Buñuel em O Discreto Charme da Burguesia (1972).
Em outra seqüência deliciosa, Antoine fica, diante do espelho do banheiro, repetindo infinitas vezes, nas mais diferentes tonalidades, o seu próprio nome, o nome de Fabienne Tabard e o de Christine Darbon. Como quem vai tirando as pétalas de uma flor, bem-me-quer, mal-me-quer, bem-me-quer, mal-me-quer.
Antoine está com 24 anos, mas é uma criança, um meninão que não cresceu. Em L’Amour en Fuite, Liliane (interpretado por Dani, belíssima atriz), uma das mulheres da vida dele, em conversa com Christine (a personagem de Claude Jade), faz a síntese perfeita da figura: “Antoine está sempre num estado terrível. Ele precisa de esposa, amante, irmãzinha, babá e enfermeira. Não consigo intepretar todos esses papéis de uma vez.”
“Todo o filme é baseado no provisório. Pouca coisa na vida de Antoine é permanente”
Fabienne, a mulher por quem ele se apaixona, é casada com um comerciante (e os artistas franceses em geral detestam os comerciantes), Georges Tabard (o sempre ótimo Michael Lonsdale), dono de uma sapataria. Antoine vai parar na sapataria de Tabard como parte de uma missão da agência de detetives particulares onde ele estava trabalhando.
A agência de detetives é o terceiro lugar em que vemos Antoine trabalhar (isso se não contarmos o exército como um local de trabalho): ele foi empregado na fábrica de discos da Philips em Antoine et Colette, e, ao sair do exército, arranja um emprego como porteiro noturno de um pequeno hotel parisiense. Na verdade, quem arranja o emprego para ele é Lucien Darbon, o pai de Christine; ele era amigo do dono do tal hotel, e sabia que o porteiro da noite havia morrido, e então indica Antoine para o posto.
Depois de um tempinho, Antoine faz lá uma besteira e é demitido. Por sorte, acaba conseguindo uma vaga na agência de detetives, o que permite que Truffaut e seu diretor de fotografia Denys Clerval façam sequências hilariantes – doces, ternas e hilariantes – de um desajeitadíssimo Antoine Doinel seguindo pessoas pelas ruas e avenidas de Paris.
Numa belíssima sacada, aos detetives da agência que seguem pessoas na rua o roteiro (assinado por Truffaut, Claude de Givray e Bernard Revon) mistura um tipo que segue Christine incessantemente. O tipo (interpretado por Serge Rousseau) aparecerá com um discurso que parece absolutamente louco na última seqüência do filme – mas que, na verdade, fala da oposição provisório x permanente, conforme assinalam Robert Ingran e Paul Duncan em seu livro François Truffaut, uma belíssima edição da Taschen.
“Todo o filme é baseado no provisório, desde a sua concepção até à execução”, escrevem os autores. “Pouca coisa na vida de Antoine é permanente, e em termos de trabalho e amor ele altera, por vezes de forma desconcertante, o rumo das coisas.”
De fato, quase tudo é provisório na vida de Antoine. Ele fica dividido entre dois amores – pela jovem Christine e pela bela Fabienne Tabard –, mas, entre uma e outra, visita prostitutas. Muda de emprego como se muda de camisa: trabalha na Philips, vai para o exército, sai do exército, trabalha como porteiro de hotel, depois na agência de detetives, se emprega na sapataria de Tabard, vira funcionário de empresa de conserto de televisores. No início do filme seguinte, Domicílio Conjugal, o veremos trabalhando com flores, depois, por um fortuito acaso, numa empresa de engenharia hidráulica, para, em L’Amour en Fuite, virar revisor de texto em uma gráfica – tendo, entre uma atividade e outra escrito um livro, um romance absolutamente autobiográfico.
De repente, andando pela rua, Antoine Doinel reencontra a moça que amou
Em outra maravilhosa sacada do roteiro, Antoine, caminhando por uma rua qualquer, é reconhecido por uma jovem, que está com o marido e um bebê. A jovem o pára na rua, o cumprimenta com um sorriso aberto – fica claro que os dois não se viam fazia muito tempo. Conversam durante um tempinho, e depois cada um segue seu caminho.
Não é dito o nome da personagem – e, nos créditos finais, o nome da atriz que faz essa pontinha em Baisers Volés não aparece.
Eu não a reconheci na hora – mas é Colette, a protagonista feminina do segundo tomo das aventuras de Antoine Doinel, Antoine et Colette, o segmento francês do filme O Amor aos 20 Anos/L’Amour a 20 Ans (os outros segmentos são dirigidos pelo japonês Shintarô Ishihara, pelo alemão Marcel Ophüls, pelo italiano Renzo Rossellini e pelo polonês Andrzej Wajda).
Há um atenuante para o fato de eu não ter reconhecido Marie-France Pisier, a atriz que havia interpretado Colette no segundo tomo da série. Ela mudou bastante, entre 1962, ano de lançamento de Antoine et Colette, e 1968, o ano deste Baisers Volés. Era uma adolescente então, tinha cabelinho bem curto; aqui é uma jovem mulher, cabelos longos ao vento como na canção de Trenet, bonheur fané, cheveux au vent, baisers volés, rêves mouvants.
Essa rápida sequência em que Antoine e Colette se reencontram na rua, ela casada e mãe de um bebê, vai reaparecer em L’Amour en Fuite, o último dos cinco filmes da série, em que ela terá uma presença muito importante na trama. Em 1979, o ano de lançamento de L’Amour en Fuite, Marie-France Pisier estava com 35 anos – e, fascinantemente, está ainda mais linda do que era bem jovenzinha, em 1962, como a adolescente por quem Antoine se apaixonou perdidamente. Também de forma fascinante, naquele ultimo filme da série Antoine Doinel Marie-France Pisier é uma das roteiristas, ao lado de Truffaut, Jean Aurel e Suzanne Schiffman – esta uma das mais frequentes e fiéis colaboradoras do realizador.
Os dois primeiros filmes da série são em preto-e-branco. Os demais, em cores
Usar uma ou outra sequência do filme anterior, ou dos filmes anteriores, é uma característica da série Antoine Doinel. Truffaut usou e abusou dessa possibilidade. Volta e meia surge uma sequência, uma tomada do filme anterior.
Ele vai abusar de fato desse recurso justamente em L’Amour en Fuite, o filme que encerra a série. L’Amour en Fuite retoma diversos fios que haviam sido espalhados nos quatro filmes anteriores e vai juntando tudo, fazendo uma maravilhosa colcha de retalhos. Nele aparecem tomadas de todos os quatro filmes anteriores.
Jacques Demy, contemporâneo de Truffaut e que, como Truffaut, encantou o garoto Sérgio Vaz nos anos 60, também gostava de fazer isso, misturar os personagens de uma história na outra. Assim, Cassard, personagem de Lola (1961), reaparece em Os Guarda-Chuvas do Amor/Les Parapluies de Cherbourg (1964); ele corteja a jovem Geneviève (o papel da jovenzinha Catherine Deneuve), e, lá pelas tantas, conta para a garota e sua mãe a história de sua paixão por uma bela mulher chamada Lola – e aí o espectador vê tomadas de Lola, feitas em glorioso preto-e-branco, intrometendo-se num dos filmes mais intensamente coloridos da história do cinema.
A mesma Lola – interpretada sempre por Anouk Aimée, aquele Boeing 747 – reapareceria em Model Shop (1969), filme que Demy fez nos Estados Unidos e no Brasil teve o título de O Segredo Íntimo de Lola.
Preto-e-branco, colorido. Os anos 60 marcaram, no cinema europeu de um modo geral, a passagem do preto-e-branco para as cores. Todos os grandes cineastas que, no início dos anos 60, filmavam em preto-e-branco, acabaram aderindo às cores. Os dois primeiros tomos da série Antoine Doinel, Les Quatre-Cents Coups e Antoine et Colette, são em preto-e-branco. Este Baisers Volés, o seguinte Domício Conjugal e o derradeiro L’Amour en Fuite são em cores.
A rigor, a rigor, como traz tantas tomadas dos dois primeiros filmes, L’Amour en Fuite é em parte cor, em parte P&B.
Um período conturbadíssimo na vida da França e na vida pessoal do cineasta
O livro François Truffaut, de Rober Ingran e Paul Duncan, que citei acima, explica por que o realizador dedicou seu livro ao lendário Henri Langlois. Langlois foi o fundador da Cinémathèque Française, em 1936 – e a Cinemateca teve grande importância na vida do realizador. Foi lá, no início dos anos 50, que ele ficou conhecendo Jean-Luc Godard, Eric Rohmer, Claude Chabrol, Jacques Rivette, Liliane Litvin. Os primeiros seriam todos seus colegas na criação da nouvelle vague; esta última, o único nome da turma que não ficou conhecidíssimo, tem, no entanto, importância especial: foi ela que inspirou o personagem Colette.
Pois bem. No início de fevereiro de 1968 – exatamente quando Truffaut estava rodando seu filme –, o Ministério da Cultura da França tirou Henri Langlois do cargo. Diversas pessoas – cineastas, atores, técnicos – da nouvelle vague protestaram contra a demissão, Truffaut à frente. Houve passeatas, enfrentamento com policiais. Langlois foi readmitido em abril.
Truffaut materializou sua admiração pelo grande cinéfilo na abertura de seu filme daquele período conturbado.
Logo viria o maio de 1968 – e põe conturbação nisso. Mas Truffaut não se envolveu com os acontecimentos, a luta dos estudantes e depois também os trabalhadores por reformas, mudanças amplas, gerais e irrestritas. Era um ser apolítico. Nenhum de seus 24 longa-metragens é político. “A vida”, ele disse numa entrevista à revista Nouvel Observateur, “não é nazista, nem comunista, nem gaullista – é anárquica.”
Enquanto o pau quebrava nas ruas de Paris, a vida pessoal do realizador fervilhava. Diz o livro François Truffaut (a edição que tenho é em português de Portugal):
“A Primavera de 1968 marcou outro período turbulento na vida de Truffaut. Ele apaixonou-se por Claude Jade durante as filmagens de Beijos Roubados e esteve próximo a se casar com ela. Contatos feitos na pesquisa a agência de detectives particulares para a realização deste filme levaram-no a procurar a identidade do seu pai biológico. A investigação conduziu a Roland Lévy, um dentista de Bayonne agora a trabalhar em Belfort. Ele era judeu. A família de sua mãe contestou os resultados da investigação mas Truffaut acreditava que eles explicavam alguns aspectos de seu carácter: ‘A sua simpatia pelos proscritos, mártires e marginais’. Por fim, o transtorno emocional destes acontecimentos foi agravado pela morte de sua mãe, em agosto de 1968. Ele nunca lhe tinha perdoado (e vice-versa).”
Aqui é necessário lembrar: Janine de Monferrand, jovem da classe média parisiense, era solteira quando, em 1932, aos 19 anos de idade, deu à luz o garoto que chamaria de François. O bebê foi entregue a uma ama de leite. Um ano e meio mais tarde, Janine casou-se com Roland Truffaut, que resolveu criar o garoto e deu a ele seu sobrenome.
Depois do parágrafo que transcrevi acima, o livro sobre os filmes do realizador diz:
“Contra todas as expectativas, Beijos Roubados foi um sucesso financeiro. Alegre, cómico, nostálgico, o filme vira as costas às convulsões políticas e sociais em França, oferecendo ao público um alívio para sua miséria.”
Sucesso de público, de crítica, de tudo, Baisers Volés foi indicado tanto ao Oscar quanto ao Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro. Não levou nenhum dos dois, mas ajudou a estabelecer a fama de Truffaut entre os americanos.
“Baisers volés é justamente um filme que espero que se pareça com uma canção”
Crítico de cinema antes de virar realizador, portanto um homem do texto, da palavra, Truffaut costumava escrever uma apresentação de seus filmes para distribuir para a imprensa na época do lançamento. Um press release, em suma. O texto que ele escreveu sobre Baisers Volés (e que é reproduzido no maravilhoso livro Truffaut par Truffaut, de Dominique Rabourdin) é uma delícia. Dá vontade de transcrevê-lo inteiro aqui. Aí vai a parte final:
“Em um filme como Baisers Volés, os personagens são prioritários sobre as situações, sobre os cenários, sobre o tema. Eles são mais importantes do que a construção, mais importantes que tudo o mais, e por isso é fundamental escolher bem os atores.”
E aí ele diz que foi procurar no teatro os atores para o filme. Cita os nomes de diversos atores que faziam também ou principalmente teatro: Delphine Seyrig, Michel Lonsdale, Claude Jade, André Falcon, Harry Max… E continua:
“Mas o pivô do filme, sua razão de ser, é evidentemente Jean-Pierre Léaud. Se de um filme interpretado por ele se esperar um testemunho sobre a juventude moderna, haverá decepção, porque Jean-Pierre me interessa justamente por seu anacronismo e seu romantismo. Ele é um jovem do século XIX. Quanto a mim, sou nostálgico, minha inspiração constantemente se volta para o passado. Não tenho antena para captar o que é moderno, eu não caminho a não ser por sensações; é por isso que meus filmes – e mais particularmente Baisers Volés – são cheios de recordações e se esforçam para ressuscitar as lembranças do espectador que os vêem.
“Quando eles ficam prontos, me apercebo que meus filmes são sempre mais tristes do que eu gostaria. Faço a cada vez a mesma constatação. Este aqui, Baisers Volés, eu quis que fosse engraçado. Não sei se ele é, mas, em todo caso, nós nos divertimos muito. Quando eu comecei a fazer cinema, já lá se vão dez anos, acreditava que havia coisas engraçadas e coisas tristes, então pus em meus filmes coisas engraçadas e coisas tristes. Depois tentei passar bruscamente de uma coisa triste para uma coisa alegre. Me parece hoje que o mais interessante é fazer de tal forma que a mesma coisa seja engraçada e triste ao mesmo tempo. Esta é uma das razões pelas quais pedi a Charles Trenet a autorização de pegar para o título duas palavras – Baisers volés –, que ele juntou na canção “Que reste-t-il de nos amours”, que é ouvida nos créditos iniciais. Penso que foi Trenet quem encontrou o mais justo equilíbrio poético, que soube misturar a gravidade e a leveza dentro da canção. Baisers volés é justamente um filme que espero que se pareça com uma canção.”
Depois desse texto de François Truffaut, não há mais nada a dizer.
Anotação em abril de 2015
Beijos Proibidos/Baisers Volés
De François Truffaut, França, 1968
Com Jean-Pierre Léaud (Antoine Doinel), Claude Jade (Christine Darbon),
e Delphine Seyrig (Fabienne Tabard), Michael Lonsdale (Georges Tabard), Daniel Ceccaldi (Lucien Darbon), Claire Duhamel (Madame Darbon), Harry-Max (Monsieur Henri), André Falcon (Monsieur Blady), Catherine Lutz (Catherine), Martine Ferrière (a chefe das vendedoras da sapataria), Jacques Rispal (Monsieur Colin), Serge Rousseau (o tipo que segue Christine), Marie-France Pisier (Colette Tazzi)
Argumento, roteiro e diálogos François Truffaut, Claude de Givray e Bernard Revon
Fotografia Denys Clerval
Música Antoine Duhamel
Montagem Agnès Guillemot
Produção Les Films du Carrosse, Les Productions Artistes Associés. DVD Fox Lorber.
Cor, 90 min
****
Título em inglês: Stolen Kisses. Em Portugal: Beijos Roubados.
Ah, que maravilha, o Truffaut está aqui novamente!
Em breve, aqui, Senhorita, as anotações sobre “Domicílio Conjugal” e “O Amor em Fuga”…
Sérgio
Aguardando esperançosa em ler aqui o nome “Alain Souchon” na anotação de “O amor em fuga”.
Quem viver verá, Senhorita!
Um abraço.
Sérgio
Primeiramente, parabéns pelo site.
Já faz quase seis meses que conheci alguns dos filmes de Truffaut, isso aconteceu após alguns problemas em minha vida, e arrasado com isso, me deparei com alguns dos filmes deste grande diretor.Não digo que esteja ainda totalmente recuperado, porém os filmes de Truffaut me ajudaram e ajudam, pois mostram a vida como ela realmente é, não tem essa coisa de Hollywood. Acho genial nos filmes de Truffaut, que cada vez que se assiste-os novamente descobre-se algo novo. Por exemplo, há uma cena em “Os Incompreendidos” em que se passa na escola de Antoine, os alunos estão em uma aula de Inglês, o amigo de Antoine, René, tem dificuldade em repetir a frase “Where is the father?”, após assistir o filme algumas vezes que me dei conta que por ser um filme quase autobiográfico, essa pergunta nos remete ao passado do próprio Truffaut.
Por último, tenho uma dúvida sobre “Beijos Proibidos”.
Assisti o filme algumas vezes, porém, continuo a não entender uma cena. Antoine Doinel está bebendo café com Fabienne Tabard, e eu acho que ela pergunta se ele aceita mais, e ele responde algo e logo sai assustado do apartamento. Por que essa reação?
Sérgio, brilhante resenha. Pensando sobre o que você escreveu a respeito do título do filme, lembrando que só no Brasil o título foi modificado de “Beijos Roubados” para “Beijos Proibidos”, recordei que na época os censores da ditadura militar – tesoura nas mãos e revólveres na cintura – proibiam tudo que achassem “imoral”. Imagino a cena, com o censor esbravejando: “Beijos? e ainda Roubados? Que indecência. Nada disso. Coloca Beijos Proibidos”.