O tema de Circuito Fechado – fascinante drama politico inglês lançado em 2013 – é um ataque terrorista ocorrido em Londres, obra, segundo todos os indícios, de radicais muçulmanos. Mas o filme é, todo ele, uma crítica virulenta não aos terroristas, aos radicais muçulmanos, mas às próprias autoridades britânicas.
É preciso ser uma democracia consolidada, avançada, estável, tranquila, para que haja um filme como este Closed Circuit, escrito por Steven Knight e dirigido por John Crowley, com um elenco que inclui o australiano Eric Bana, os ingleses Rebecca Hall e Jim Broadbent, o irlandês do Ulster Ciarán Hinds e a americana Julia Stiles.
Não é um filme fácil, que agrade a todas as platéias, de forma alguma. Falcões de todos os matizes, defensores da Lei do Talião, do olho por olho dente por dente, do combate aos radicais e terroristas com todas as armas possíveis e imagináveis, à la George W. Bush, Dick Chenney, por exemplo, devem passer bem longe dele – ou vão se expor ao risco de um choque anafilático.
O roteirista e o diretor não procuram facilitar muito a vida do espectador, em especial os não britânicos. O roteiro faz questão de não ficar explicitando fatos – muitas vezes, prefere deixar as coisas subentendidas, como, por exemplo, como e quando foi o relacionamento afetivo entre os dois protagonistas, Martin Rose e Claudia Simmons-Howe, os papéis de Eric Bana e dessa fascinante Rebecca Hall, a cada filme mais impressionante. Tampouco há qualquer cuidado em esclarecer coisas básicas do funcionamento do complexo sistema judicial britânico.
Não vai aí, nessas afirmações, qualquer crítica – são apenas constatações.
O ministro da Justiça é duramente questionado em entrevista na TV
Na abertura do filme – nada menos que brilhante –, há uma absurda concentração de informações, capaz de deixar o espectador um tanto zonzo.
Começa com a tela dividida em duas, duas imagens diferentes. O espectador percebe de imediato que são imagens de câmaras de segurança colocadas em diversos pontos de um mercado londrino, Borough Market. A data aparece em cada imagem: 30/11/2012. Não são apenas as imagens – há também a reprodução das vozes das pessoas focalizadas em cada uma das câmaras.
Rapidamente passam a ser quarto imagens diferentes. Seis. O espaço da tela vai sendo dividido em fatias cada vez menores. Oito câmaras. Um furgão estaciona em uma das várias imagens, uma voz alerta que ali é proibido estacionar.
Enquanto isso, vão rolando os créditos iniciais.
Logo são 12 imagens, captadas por 12 câmaras de segurança diferentes. Quinze.
Uma explosão – todas as 15 câmaras agora mostram apenas poeira.
Chegam carros de polícia, equipes de resgate. Vemos e ouvimos noticiários de TV informando que há muitos feridos, que já se fala em ataque terrorista, que o número de mortos é alto.
Os créditos iniciais continuam rolando, enquanto vemos tropas especiais da polícia – tipo tropa de choque, tipo SWAT – invadindo uma casa simples, um depósito. Repórteres de TV informam que um suspeito foi levado preso pela polícia, assim como sua mulher e filho – ele se chama Farroukh Erdogan (Denis Moschitto), de origem turca.
Um advogado é nomeado para a defesa de Erdogan – Simon Fellowes (James Lowe).
Os créditos iniciais ainda estão rolando. O Attorney General (interpretado pelo grande Jim Broadbent) está sendo entrevistado na TV, e o entrevistador é incisivo, duro, cortante. Quem faz o entrevistador é de fato um jornalista da TV britânica, John Humphreys, embora, naturalmente, nós não tenhamos como saber disso a não ser vendo depois a relação de atores.
O Attorney General está na defensiva ao falar do julgamento de Farroukh Erdogan, o único suspeito vivo do atentado que matou mais de cem pessoas: – “Em casos de terrorismo, há circunstâncias em que revelar provas em julgamento aberto prejudicaria ações presentes e futuras (das investigações).”
John Humphreys, o entrevistador: – “Mas provas cruciais da promotoria serão escondidas da defesa. Se isso acontecesse em qualquer outro país, diríamos que é um processo viciado.”
O Attorney General: – “O acusado será completamente representado.”
O entrevistador: – “Mas não pelo seu próprio advogado!”
O Attorney General: – “Na audiência aberta, diante do júri, ele terá seu próprio advogado. Na audiência fechada, será representado por um defensor especial.”
O entrevistador insiste: – “Há margem para dúvidas.”
O Attorney General: – “O processo judicial neste país é, e continuará sendo, justo e transparente.”
As legendas traduzem Attorney General por procurador-geral. Na verdade, na Grã-Bretanha, o Attorney General é o ministro da Justiça.
E é apenas quando o ministro da Justiça interpretado por Jim Broadbent diz com a maior firmeza do mundo a frase “O processo judicial neste país é, e continuará sendo, justo e transparente” é que terminam os créditos iniciais do filme.
Os dois protagonistas vão fazer a defesa do turco acusado pelo atentado
Soterrado por tanta informação num período de tempo exíguo – não mais que os primeiros 5 dos 96 minutos de bom cinema –, o espectador poderá respirar rapidamente enquanto vê uma tomada aérea de Londres, o Tâmisa recortando aquela paisagem maravilhosa, a Tower Bridge na parte de baixo da tela, as pontes a montante, a Oeste, situadas mais para cima da tela.
Um letreiro indica: “Seis meses depois”. Uma tomada em plongée radical, a câmara bem no alto, o Tâmisa visto como se fosse de um satélite – um pequeno barco de corrida de remo no meio do rio. Uma tomada em que vemos o remador – Eric Bana – e, acima dele, a Ponte de Westminster, e, atrás dele, o prédio monumental do Parlamento inglês.
O personagem interpretado por Eric Bana pára para respirar exatamente ao lado das Houses of Parliament. O telefone celular toca, ele diz seu nome, Martin Rose.
Corta, e Martin Rose está numa igreja em que se celebra a homenagem fúnebre a Simon Fellowes, o advogado de defesa do acusado do ataque terrorista, Farroukh Erdogan. Fellowes – é o que se diz – se matou, provavelmente abalado psicologicamente pela pressão de estar no centro de um caso que está sendo tratado como o julgamento do século.
À saída da cerimônia religiosa, o ministro da Justiça, que também estava presente, procura Martin Rose para uma conversa; Martin será o substituto do falecido Fellowes na defesa do turco acusado de promover o atentado que matou mais de cem inocentes. Ele fará a defesa no julgamento aberto, com júri e público presentes.
A advogada escolhida como defensora especial de Erdogan, nas sessões fechadas do tribunal, sem imprensa, sem júri, sem populares, é Claudia Simmons-Howe (o papel de Rebecca Hall).
O espectador é informado de cara de que Martin e Claudia tiveram um caso no passado. Martin separou-se da mulher algum tempo atrás, e as relações entre os dois não são nada cordiais – ela estabelece horários rígidos para que ele fique com o filho adolescente do casal. Isso não é ditto hora alguma, mas dá para inferir que Claudia pode ter sido o motivo do divórcio não amigável de Martin e da mãe de seu filho.
O complexo sistema jurídico britânico exige, naquele caso específico, que o advogado de defesa de Erdogan – Martin – e sua defensora especial – Claudia – não troquem informações sobre o caso. A rigor, o fato de eles terem tido um caso deveria levar um dos dois a se declarer impedido da tarefa – mas não é o que acontece. Não é dito claramente, mas dá para inferir (o espectador tem o direito de inferir muito, ao ver Circuito Fechado) que os dois, profissionais sérios, dignos, honestos, acham que o fato de terem tido um caso não impedirá que exerçam seus deveres com toda a isenção e o profissionalismo necessários.
A partir daqui, spoilers. Quem não viu o filme não deve ler o que vem abaixo
Por essa descrição acima, o eventual leitor que não tiver visto ainda o filme poderá imaginar que Circuito Fechado de fato despeja muita informação sobre o espectador já nos primeiros 15, 20 minutos.
E é bem verdade.
Porém, quando o filme está aí com 25, 30, 35 minutos, há uma grande reviravolta.
Muito provavelmente todas as sinopses do filme abrem as informações que virão a seguir, mas eu tenho estado cada vez mais paranóico com essa coisa de spoiler. Acho que as informações que virão agora atrapalham a vida de quem não viu ainda o filme. É spoiler.
As informações vão se somando, Martin Rose vai juntando os pontos da trama – e conclui que, na verdade, Farroukh Erdogan trabalhava para o MI6, o serviço secreto britânico, a CIA do Reino Unido. Cometeu um erro, e fez explodir no Borough Market um furgão com uma potência destruidora inimaginável.
Não se trata, assim, apenas de condenar o uso de métodos sujos na guerra contra o terrorismo – como tem sido feito em belos filmes realizados após os atentados do 11 de setembro de 2001, como, por exemplo, Strip Search (2004), Ataque Terrorista/Shoot on Sight (2007), O Traidor /Traitor (2008).
Condenar o uso de métodos sujos na guerra contra o terrorismo já é, em si, uma posição controvertida. Muita gente teria argumentos para justificar ações radicais contra radicais assassinos de inocentes.
No próprio filme, quando a narrativa já se aproxima do fim, um agente da MI6 diz para Claudia, enquanto tenta sufocá-la: “Você tem todas as vantagens da nossa sociedade, mas não as defende, não é? Eu luto contra os homens que querem botar uma máscara em você apenas porque você é mulher”.
É extremamente difícil, mesmo numa sociedade avançada, civilizada, defender a postura – moralmente correta, juridicamente, humanamente, todos os mente possíveis correta – de que o crime, mesmo o terrorismo, tem que ser combatido dentro das normas do Direito, da Justiça, ou então o Estado que o combate passará, ele mesmo, a ser fora da lei.
Tem ficado cada vez mais difícil, após cada golpe aplicado pelos radicais, pelos fundamentalistas muçulmanos.
Circuito Fechado defende essa postura, contra a opinião de provavelmente a maioria das pessoas hoje em dia.
Mas vai ainda além. Claro que se trata de uma história de ficção – mas investe contra o Estado britânico cujos agentes fizeram uma besteira imensa, e cuja máquina foi posta em ação para evitar que a verdade sobre o atentado fosse conhecida pelo público.
É um belo, corajoso filme.
Uma atriz excelente, um diretor novato, um roteirista veterano
Uma palavrinha sobre Rebecca Hall.
A cada filme que vejo com ela, cresce minha admiração. Que maravilhosa, que estupenda atriz.
Rebecca Hall é a prova de que o talento não precisa necessariamente de vir acompanhado de imensa beleza. A rigor, a rigor, pelos padrões mais comuns, Rebecca Hall não é uma mulher bonita. Mas ela usa com maestria todos os traços de seu rosto – traços fortes, marcantes – para transmitir as emoções dos personagens que interpreta.
Ela faz de Claudia Simmons-Howe um personagem fascinante. É uma mulher evidentemente bem nascida (o próprio sobrenome duplo indica), bem criada, bem educada. Tem princípios firmes, é profissional dedicada, competente, e parece ter muita segurança – mas a segurança vai pelo ralo quando se vê defrontando a força das instituições do Estado.
Roteirista e diretor souberam muito bem manter a tensão crescente entre os dois protagonistas, Claudia e Martin – a tensão diante de toda o caso jurídico e político complexo, difícil, apavorante, em que mergulham, e diante do reencontro após uma paixão que visivelmente ainda não se apagou.
John Crowley, o diretor, é um garotão que deve estar beirando os 40 anos. Circuito Fechado é seu quinto longa-metragem; não tenho referência alguma sobre os anteriores.
Steven Knight, o roteirista, é mais veterano, nasceu em 1959, e tem 26 títulos como roteirista. É o autor do roteiro do excelente Coisas Belas e Sujas/Dirty Pretty Things (2002), de Stephen Frears, sobre imigração, miséria material e moral na Inglaterra de hoje.
É isso aí: um bom filme. Mais um bom filme do cinema inglês, o que hoje, na minha opinião, é o melhor do mundo.
Anotação em janeiro de 2015
Circuito Fechado/Closed Circuit
De John Crowley, Inglaterra-EUA, 2013
Com Eric Bana (Martin Rose), Rebecca Hall (Claudia Simmons-Howe),
e Ciarán Hinds (Devlin), Jim Broadbent (Attorney General), Denis Moschitto (Farroukh Erdogan), Julia Stiles (Joanna Reece), Riz Ahmed (Nazrul Sharma), Anne-Marie Duff (Melissa), Kenneth Cranham (Cameron Fischer), Kate Lock (mãe), James Lowe (Simon Fellowes)
Argumento e roteiro Steven Knight
Fotografia Adriano Goldman
Música Joby Talbot
Montagem Lucia Zucchetti
Produção Focus Features, Working Title Films.
Cor, 96 min
***
Gostei muito do filme! Sou tb fã número um de filmes ingleses! Rebecca Hall é linda demais! E como trabalha bem!
Abraços