Aos 75 anos, 45 anos depois de ter sido comido por Mrs. Robinson-Anne Bancroft em A Primeira Noite de um Homem, após cerca de 70 outros filmes e 59 prêmios, inclusive dois Oscars, Dustin Hoffman resolveu estrear na direção. Estreou com a energia de um pimpolho e a segurança de um veterano. O Quarteto é uma maravilha.
Deixando de lado tanto seu país quanto qualquer modéstia, Dustin Hoffman estreou na terra de William Shakespeare, dirigindo atores brilhantes com longas carreiras no país que mais concentra atores brilhantes na face do planeta.
Alguns números sobre os atores que o veterano Dustin Hoffman dirigiu em sua estréia atrás das câmaras:
* Maggie Smith, 78 anos em 2012, ano de lançamento do filme; mais de 70 títulos no filmografia, 40 prêmios, inclusive dois Oscars, fora outras 55 indicações;
* Tom Courtney, 75 anos; 48 títulos na filmografia, 10 prêmios, fora outras oito indicações, inclusive duas ao Oscar;
* Pauline Collins, 72 anos; 56 títulos na filmografia, três prêmios, fora outras quatro indicações, inclusive uma ao Oscar;
* Billy Connolly, 70 anos; 63 filmes e/ou séries, um prêmio e oito indicações.
E ainda, além desse quarteto, Michael Gambon, 72 anos; 135 filmes e/ou séries, 18 prêmios, fora outras 11 indicações.
É muita experiência, muito talento junto.
Uma mansão maravilhosa para músicos eruditos aposentados
Em 1967, Dustin Hoffman viveu as aventuras do jovem recém-graduado Ben Braddock ao som das canções cristalinas, límpidas, gloriosas, de Paul Simon, nas vozes perfeitamente harmônicas de Simon & Garfunkel. A história que o veterano Dustin Hoffman escolheu para contar em seu primeiro filme como realizador é toda banhada em música, tão bela quanto a de Paul Simon, mas de outro gênero. Os autores que ouvimos ao longo dos maravilhosos 98 minutos de O Quarteto são Bach, Schubert, Saint-Saëns, Boccherini, Haydn, Brindisi, Puccini e, sobretudo, Verdi.
Toda a ação do filme se passa na Beecham House, uma daquelas centenárias, maravilhosas mansões do campo inglês, cercada por não menos maravilhosa vegetação. Um letreiro nos informa, de cara, nos créditos iniciais (sim, o filme tem créditos iniciais) que a Beecham House é um lar para músicos aposentados. Não músicos quaisquer. Músicos eruditos: cantores líricos e instrumentistas que haviam passado pelas grandes orquestras dedicadas ao repertório clássico.
A Beecham House é um luxo. Parece casa de repouso para idosos muito, muito ricos. Foi criada por milionário filantropo há muito falecido, que lhe deu o nome. No momento da ação, no entanto, aquele quase paraíso está ameaçado; os mantenedores estão sendo obrigados a cortar despesas – e funcionários. A médica simpática e competente que dirige o lugar, a dra. Lucy Coogan (Sheridan Smith), anda ultimamente tendo que fazer algumas tarefas menores antes cuidadas por funcionários menos qualificados.
Na verdade, pesa sobre aquela bela propriedade em que músicos velhinhos passam seus últimos dias nesta terra o perigo de simplesmente ter que fechar as portas.
A cada ano, para comemorar o aniversário de Giuseppe Verdi, os músicos da Beecham House faz um espetáculo de gala para angariar fundos entre os muito ricos que prezam as mais finas artes.
A ação se passa nos dias que antecedem um desses espetáculos anuais.
Dois grandes amigos – um alegre, brincalhão, o outro sisudo
Diversos personagens nos são apresentados simultaneamente desde o início da narrativa. O espectador leva algum tempo para perceber quais serão os protagonistas da história.
Há um sujeito mandão, que age como se foi o manda-chuva, o ditador, o chefão do lugar. Chama-se Cedric Livingston (o papel do irlandês Michael Gambon), e o fantástico é que boa parte dos velhinhos ali não liga muito para a mandonice dele.
Wilf Bond (o papel do escocês Billy Connolly), por exemplo, insiste em chamar o emproado Cedric de Cédric, com o e aberto – ao que o outro sempre retruca que o correto é Cídric. Ora, é óbvio que Wilf sabe a pronúncia correta do nome – é apenas um jeito de contestar a autoridade que o outro imagina absoluta.
Esse Wilf é uma figuraça. Parece um adolescente que acaba de descobrir o sexo: fala de sexo a cada momento, canta as funcionárias jovens, faz galenteios à dra. Coogan.
Bem no iniciozinho do filme, quando uma enfermeira termina de examiná-lo e lhe entrega a bengala, Wilf a toma para um passo de dança – e aí ouvi Mary dizer: “Será que este enfim é um filme que mostra velhinhos felizes em uma casa de repouso?”
Wilf é amigo inseparável de Reginald Paget, que todos chamam pelo diminutivo de Reggie, e de Cissy Robson.
Reggie (interpretado maravilhosamente por Tom Courtenay, que em 1965, dois anos antes de A Primeira Noite de um Homem, fez o papel de Pasha, o jovem estudante apaixonado por Lara no clássico Doutor Jivago de David Lean) é praticamente o oposto de seu maior amigo Wilf. Enquanto este é brincalhão, piadista, Reggie é sério, sisudo.
Cissy (o papel da excelente Pauline Collins, de, entre tantos outros, o maravilhoso Shirley Valentine) é alegre, bem humorada, de bem com a vida, mais até do que Wilf. Mas tem momentos em que perde a memória, perde quase toda a lucidez.
“Eu queria uma senilidade digna. Agora que ela está aqui, não vai ser possível”
O Quarteto leva nove minutos para mostrar pela primeira vez Jean Horton, a personagem de Maggie Smith.
Wilf, Reggie e Cissy foram grandes cantores de ópera – mas Jean Horton , que na juventude tinha feito com os outros três uma gravação histórica do “Rigoletto”, de Verdi, havia tido um sucesso muito maior que os demais.
Quando estamos com 10 minutos de filme, um motorista da Beecham House chega ao imenso apartamento em que Jean Horton havia morado até então. Chegou o momento em que a grande diva terá que deixar sua casa, o imóvel caro, respeitabilíssimo, e ir para o lar de músicos aposentados.
A queda é de extrema violência para a diva – que nos é apresentada como uma espécie de Greta Garbo, de Maria Callas, uma estrela de ego ainda maior que o imenso talento e/ou fama. Mas a chegada dela à Beecham House será também absolutamente avassaladora para Reggie.
Ao saber que ela é a nova hóspede da casa, Reggie, furioso, vai conversar com a dr. Coogan. Quer saber se Jean tinha conhecimento de que ele vivia ali. Diante do silêncio da administradora, que confirma que sim, Jean sabia, Reggie, com uma expressão de profundo desalento, diz:
– “Eu queria uma senilidade digna. Agora que ela está aqui, não vai ser possível.”
Estamos com exatos 20 minutos de filme, então. Os motivos da fúria de Reggie contra Jean serão apresentados aos poucos, ao longo da narrativa.
O roteirista, também autor da peça original, tem vários grandes filmes no currículo
O Quarteto tem momentos e situações pesadas, duras, mas na maior parte do tempo o bom humor prevalece. É uma suave, gostosa, agradável comédia musical, ao estilo inglês. Há inteligentes, deliciosos diálogos ao longo de toda a narrativa. Como por exemplo este, entre os dois grandes amigos:
Wilf: – “É melhor se acostumar. O rap veio para ficar.”
Reggie: – “Não creio nisso.”
Wilf: – “Você dizia a mesma coisa sobre os Beatles.”
Reggie: – “Isso não é música.”
Wilf: – “Mas eles acham que é.”
O roteiro do filme é de autoria de Ronald Harwood, que adaptou para o cinema sua própria peça de teatro. A peça estreou no West End de Londres em 1999, e não fez grande sucesso, tendo ficado apenas quatro meses em cartaz.
Ronald Harwood, nascido em 1934, na África do Sul, radicou-se na Inglaterra em 1951. A importância de suas peças e roteiros fez com que ele recebesse da Rainha o título de Sir. Assinou o roteiro de diversos grandes filmes, entre os quais O Fiel Camareiro/The Dresser (1983), O Pianista (2002) e Oliver Twist (2005), ambos de Roman Polanski, Adorável Júlia (2004) e O Escafandro e a Borboleta (2007).
Uma das maravilhas da versão para o cinema é o fato de que diversos dos atores coadjuvantes, que interpretam os músicos aposentados da Beecham House, são de fato músicos aposentados. Nos créditos finais, vemos seus nomes e fotos de suas apresentações nos palcos de grandes teatros de Londres.
Um filme sobre velhos que é alegre, pra cima. Mas a velhice não é para maricas
Mas, afinal, “será que este enfim é um filme que mostra velhinhos felizes em uma casa de repouso?”
A resposta à pergunta que Mary se fez bem no início da narrativa é sim. O Quarteto é um filme alegre, bem humorado, pra cima.
Não dá para deixar de lembrar que O Quarteto segue uma linhagem de bons filmes recentes que retratam a vida de velhinhos com humor, alegria. Vem depois de O Exótico Hotel Marigold, de John Madden, E se Vivêssemos Todos Juntos?, de Stéphane Robelin, ambos de 2011.
“Hollywood não faz mais filmes sobre pessoas, em especial pessoas com mais de 60 anos”, disse Lawrence Kasdan, que, aos 63 anos, fez um filme sobre pessoas com mais de 60, Querido Companheiro, em 2012.
Claro, O Quarteto (assim como os três filmes citados logo acima) não quer propriamente dizer que a velhice é “a melhor idade”. Isso é uma imensa bobagem, é claro, e o filme dá várias provas que não é a melhor idade porra nenhuma. Em vários momentos do filme, personagens reclamam da velhice, da dor aqui, dor ali. Quando Cissy aparece com uma nova edição em CD do “Rigoletto” cantado pelo quarteto, Wilf, o gozador, diz algo do tipo: “Eu me lembro de vários detalhes dos dias da gravação, mas não consigo dizer o que comi no café da manhã”.
E Cissy, lutando com a memória, tenta se lembrar quem foi que falou a frase “old age is not for sissies” – velhice não é para maricas. Ela acaba se lembrando: a frase é de Bette Davis.
Bette Davis sabia do que estava falando. Velhice não é para maricas. É por isso que eu, de minha parte, sempre achei que entre senilidade indigna e morte digna, não há qualquer dúvida possível. Sou pela segunda opção – e dane-se se me chamarem de maricão.
Anotação em agosto de 2013
O Quarteto/Quartet
De Dustin Hoffman, Inglaterra, 2012
Com Maggie Smith (Jean Horton), Tom Courtenay (Reginald Paget), Billy Connolly (Wilf Bond), Pauline Collins (Cissy Robson), Michael Gambon (Cedric Livingston), Sheridan Smith (Dr. Lucy Cogan), Andrew Sachs (Bobby Swanson), Dame Gwyneth Jones (Anne Langley), Trevor Peacock (George), David Ryall (Harry), Michael Byrne (Frank White), Ronnie Fox (Nobby), Patricia Loveland (Letitia Davis), Eline Powell (Angelique), Luke Newberry (Simon)
Roteiro Ronald Harwood
Baseado em sua peça teatral
Fotografia John de Borman
Música Dario Marianelli
Montagem Barney Pilling
Produção Headline Pictures, BBC Films, DCM Productions, Finola Dwyer Productions. DVD Paris Filmes.
Cor, 98 min
***1/2
Foi em 19 de maio que vi este filme, Sergio.
Para mim, uma verdadeira obra-prima .
Um filme lindíssimo !! A trilha sonora é das mais lindas e brilhantes que já vi e ouvi.
Dustin Hoffman teve uma estréia abençoada e inspiradíssima.
Elenco ímpar . Atuações marcantes.
Billy Connolly está estupendo,seu personagem Wilf,com suas cantadas,investidas é hilário demais. Dizer que a Maggie Smith está ótima já não é novidade nenhuma.
A Cissy da Pauline Collins que coisa linda meu Deus, ela me cativou por inteiro. Tom Courtenay tbm está muito bem.
Mas para mim, a Cissy e o Wilf mandam no filme, estão maravilhosos .
De fato, “envelhecer não é para maricas” .
” Eu queria uma senilidade digna . . . ”
Assisti ” O Exótico Hotel ” e ” Querido Companheiro ” . Estou tentando encontrar ” E se Vivessemos Todos Juntos ” .
Gostei muito dos créditos finais onde aparece as fotos do “ontém e hoje” .
Depois de assistir este filme, fica-se com a alma lavada.
Um abraço !!
gostaria de saber onde posso comprar o CD com a trilha sonora do filme. Aguardo. Obrigada
Maria do Carmo,
O amazom.com é uma opção. Veja a página:
https://www.amazon.com/gp/product/B00AN6JWQ4/176-1242138-0796414?ie=UTF8&*Version*=1&*entries*=0
Boa sorte.
Sérgio