Estranhos Normais, de Gabriele Salvatores, começa de forma brilhante, estupidamente brilhante. É um início tão sensacional que faz a gente esperar algo como O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, (500) Dias com Ela, Medianeras – filmes inteligentes, que soltam faísca de tanto brilho, tanta idéia, tanta criatividade.
Infelizmente, depois de um início de fato sensacional, de encher os olhos, de lavar a alma, o filme cai um pouco, fica um tanto repetitivo. Mesmo assim, é um bom filme, uma gostosa, agradável comédia. Que delícia haver comédias gostosas vindas da Itália de hoje. É uma pena que esteja diminuindo o número de produções italianas – ou pelo menos o número de filmes italianos que chegam aqui. Afinal, o cinema italiano já foi o melhor do mundo.
Estranhos Normais, no original Happy Family, assim, em inglês, começa com uma catarata de palavras – e de belas imagens. O ator Fabio De Luigi se dirige diretamente à câmara, ao espectador. Enquanto ele fala, caminha pela sua ampla casa, um loft, como os nova-iorquinos, situado sobre o galpão de uma antiga fábrica. A montagem é ágil, há diversas tomadas diferentes enquanto ele vai falando:
– “Me chamo Ezio Colanzi. Tenho 38 anos e nunca fiz nada na vida. Quero escrever um filme, um filme de autor. Não precisa ser um cult, mas tem que ser um bom filme. Quando não se tem nada para fazer, escrever é a melhor coisa do mundo. Eu tenho tudo de que preciso: meu computador, saúde – e a solidão. Não tenho ainda uma idéia, mas tudo bem.”
Ezio faz pausas enquanto fala. Depois de uma das pausas, diz:
– “Há mais ou menos nove meses Francesca me deixou. Além de levar o meu amor, também levou tudo aquilo que eu acreditava ser meu. Esta manhã, olhando o que restou, encontrei este disco.”
Mostra para a câmara a capa do LP Simon & Garfunkel’s Greatest Hits. Por alguns poucos segundos, a capa do LP ocupa todo o espaço da tela, enquanto Ezio prossegue:
– “Simon and Garfunkel. (Ele pronuncia corretamente o Garfânquel, ao contrário de muita gente, que diz Gárfunquel.) Coisa que as pessoas já não ouvem mais, inclusive eu. Mas… é o único que tenho.”
Mas que história é essa de que ninguém mais ouve Simon & Garfunkel?
Epa: péra lá, Ezio, péra lá, Gabriele Salvatores: que negócio é esse de que as pessoas não ouvem mais Simon & Garfunkel? De onde vocês tiraram isso?
Bem, eu ouço. Com imenso prazer, after all these years. Mary também. Tenho no iTunes 81 canções de Simon & Garfunkel. Quando caminho e toca uma delas no iPod, me dá uma grande alegria – se posso, canto junto.
Simon & Garfunkel é uma das melhores coisas da vida. Tão absolutamente imortal, perene quanto Beatles, Dylan, Joan Baez, Chico, Caetano, Nara.
E, já que estamos nesse ponto, e já que ao longo de todo o filme ouvimos canções de Simon & Garfunkel, aproveito para lembrar que a coletânea que Ezio mostra ao espectador saiu em 1972, dois anos depois do quinto e último álbum da dupla, Bridge Over Troubled Water. Tanto Simon quanto Garfunkel, naquele ano, tocavam suas carreiras solo. Reuniram-se uma única vez naquele ano, para cantar num evento da campanha presidencial do senador George McGovern (democrata, naturalmente; a dupla jamais cantaria para um candidato republicano), no Madison Square Garden de Nova York.
O disco tem 14 canções, diversas delas de fato grandes sucessos, das mais conhecidas dos cinco discos anteriores.
É interessante: a primeira música de um disco de Simon & Garfunkel que ouvimos neste Happy Family não foi composta por Paul Simon. É a instrumental “Anji”, composta e tocada pelo violonista de jazz inglês Davy Graham, que está no segundo álbum da dupla, Sounds of Silence, de 1965.
“Este filme é dedicado àqueles que têm medo”
E então Ezio coloca o LP para tocar. Vemos o LP do alto, a câmara lá em cima do toca-discos, em plongée total.
O LP começa a girar no toca-discos, o violão elétrico de Davy Graham começa a tocar “Anji” e a bolota que era o LP se transforma na roda dianteira da bicicleta em que Ezio passeia pelas ruas de Milão.
Como já havia sido dentro do loft, as tomadas são curtas, a montagem é ágil. Vemos diversas paisagens de Milão, as pessoas nas ruas, entremeadas com tomadas de Ezio em sua bicicleta, enquanto a voz dele, agora em off, prossegue falando para o espectador.
E o texto é belo como as imagens que vemos.
– “O problema é que temos medo. É só prestar atenção. Temos medo de que num momento tudo o que construímos seja destruído. Temos medo de que nosso trem descarrile. Medo de brancos, de negros, da polícia. Medo de perder o emprego, e também de ficar gordo, corcunda, velho, rico. Medo de perder o trem e chegar atrasado para um compromisso. Medo de explodir uma bomba, de perder um braço, um olho, um filho, uma folha. Uma folha na qual escrevemos algo muito importante. Medo de terremotos, de vírus, de errar, de dormir. Medo de morrer antes de fazer tudo o que gostaríamos de fazer. Medo que nossos filhos sejam homossexuais, ou de que nos tornemos homossexuais. Medo dos vizinhos, das doenças, medo de não saber o que dizer, de sujar as calças num momento importante. Medo das mulheres, dos homens, de ladrões, de ratos, de baratas. Medo de feder, de votar, de voar. Medo de multidões, de falir, de cair, de roubar, de cantar. Medo de gente. Medo dos outros.”
A essa altura Ezio já terminou seu passeio de bicicleta, voltou para seu loft, sentou-se diante do computador. Vira-se para a câmara e conclui essa introdução brilhante:
– “Por isso, este filme é dedicado àqueles que têm medo.”
Margherita Buy ilumina cada tomada em que aparece
Uau!
Nesse momento, Mary e eu soltamos exclamações. E, é claro, demos rewind para ver de novo essa abertura brilhante.
Após a abertura, surge um letreiro com o nome de um capítulo: “Personagens e intérpretes”. (Os outros capítulos serão “Confidências” e “A Família”.)
Os personagens todos de Happy Family vão se apresentar para o espectador, falando para a câmara. Eles vão agindo, vão fazendo as coisas de suas vidas, e vão falando com o espectador, apresentando-se.
Interessante: todos eles fazem questão de dizer suas idades.
Ao contrário do que diz o título, Happy Family, no singular, são duas as famílias dos personagens que se apresentam para o espectador – fora Ezio.
O que une as duas famílias são os garotos Filippo e Marta. Filippo (Gianmaria Biancuzzi) e Marta (Alice Croci) estudam no mesmo colégio, ambos têm 16 anos, e, segundo contam para o espectador, vão se casar. Não quando crescerem, mas já, aos 16 anos.
Filippo é um garoto estranho, peculiar, particular, segundo a definição dada por diversos dos personagens. É o que nos westerns os caubóis chamavam de almofadinha; um patricinho, todo vestido com uns ternos um tanto berrantes, como se fosse um senhor inglês do século XIX. E tem uns trejeitinhos um tanto afeminados.
E, calma, patrulha do LGBTTT, o filme não é homofóbico, de forma alguma. Só brinca com a homossexualidade, assim como brinca com o machismo, com tudo que aparece à sua frente.
Primeiro conhecemos a família de Filippo. Vincenzo (Fabrizio Bentivoglio, na foto acima) é o padrasto do garoto; é um homem rico, está com 55 anos e teve diagnosticado um tumor maligno no cérebro. Perdeu sua primeira mulher, Anna, dez anos antes, num acidente. Teve com ela uma filha, Caterina (Valeria Bilello), de 27 anos, que agora vive com ele, com Filippo e com a mãe do garoto, Anna, sua segunda mulher. Mora também com a família no amplo, belo apartamento, a mãe de Vincenzo, a Nonna Anna (Corinna Agustoni), que tem Alzheimer e adora cozinhar.
Anna, a mulher de Vincenzo, é interpretada por Margherita Buy (na foto acima), essa atriz fascinante, maravilhosa. Margherita Buy ilumina cada tomada em que aparece.
Anna se queixa para o espectador, no momento em que ela se apresenta para a câmara, que há quatro meses não faz sexo com o marido.
A mesma coisa acontece na outra família. Na hora de se apresentar à câmara, a garotinha Marta confidencia que há seis anos não ouve mais ruídos de trepadas no quarto dos pais.
Os pais de Marta não têm nomes, quer dizer, seus nomes não são ditos ao espectador. A mãe (Carla Signoris) aparentemente não tem profissão, é dona de casa. O pai (interpretado por Diego Abatantuono, na foto abaixo) é um velho hippie; tem cabelão grande, barbona grande, usa camisas coloridíssimas, e está sempre fumando um baseado.
Sandra Milo aparece em participação especial – uma homenagem do diretor Salvatores
Essa é a fauna criada pelo dramaturgo Alessandro Genovesi em uma peça de teatro, que ele próprio e o diretor Salvatores adaptaram para o cinema.
Além desses personagens, há apenas outros dois no filme. Há uma massagista chinesa que Ezio vai visitar, interpretada por uma china engraçada chamada Man Lo Zhang, e, em uma única sequência, a mãe de Ezio, interpretada pela veterana Sandra Milo. Acho que a participação especial de Sandra Milo é assim uma espécie de homenagem do diretor Gabriele Salvatores à geração mais velha do grande cinema italiano.
Sandra Milo é de 1933. É da mesma geração de Ettore Scola, Paolo Taviani (os dois de 1931), Sophia Loren (1934). Claudia Cardinale é um pouquinho mais nova, de 1938. Como La Cardinale, Sandra Milo é uma atriz italiana nascida em Túnis, na época em que a Tunísia era uma colônia francesa; como La Cardinale, trabalhou em Oito e Meio de Fellini.
Gabriele Salvatores, é fundamental lembrar, é o autor de uma obra-prima, Mediterrâneo, e do belíssimo Eu Não Tenho Medo.
Salvatores, de 1950, é da geração de Isabella Rossellini, de 1952, a filha de Ingrid Bergman com o diretor Roberto Rossellini, um dos grandes nomes da época de ouro do cinema italiano. Salvatores nasceu (assim como eu) no ano em que Federico Fellini fez Mulheres e Luzes, seu primeiro filme como diretor; em que Michelangelo Antonioni fez Crimes da Alma, seu primeiro longa. Vittorio De Sica havia feito Ladrões de Bicicleta dois anos antes, em 1948, o mesmo ano de A Terrra Treme, de Luchino Visconti.
As chances de dois raios caírem exatamente no mesmo lugar devem ser mais ou menos semelhantes às de uma cinematografia ter, no mesmo espaço de tempo, Fellini, Antonioni, De Sica, Visconti, Rossellini.
Happy Family não chega a ser um grande filme, um filmaço. Mas é muito bom. Dá alegria ver um bom filme italiano.
Mary faz aqui uma boa observação: Paul Simon e Art Garfunkel, aqueles dois velhinhos que também deram suas passadas pelo cinema, devem ter adorado Happy Family.
Anotação em maio de 2013
Estranhos Normais/Happy Family
De Gabriele Salvatores, Itália, 2010.
Com Fabio De Luigi (Ezio), Fabrizio Bentivoglio (Vincenzo), Margherita Buy (Anna), Valeria Bilello (Caterina), Corinna Agustoni (Nonna Anna),
Gianmaria Biancuzzi (Filippo), Alice Croci (Marta), Diego Abatantuono (o pai de Marta), Carla Signoris (a mãe de Marta), Man Lo Zhang (a massagista), e, em participação especial, Sandra Milo (a mãe de Ezio)
Roteiro Alessandro Genovesi e Gabriele Salvatores
Baseado na peça de Alessandro Genovesi
Fotografia Italo Petriccione
Música de Louis Siciliano
Com canções de Paul Simon, com Simon & Garfuniel
Montagem Massimo Fiocchi
No DVD. Produção Colorado Film Production, Rai Cinema. DVD Europa Filmes.
Cor, 90 min
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