Querido Companheiro é um filme tão simples, tão despretensioso, tão tranquilo, que é até possível que alguns espectadores passem por ele e não percebam muito bem suas qualidades.
Há filmes cheios de fogos de artifício, que chamam tanta atenção quanto, digamos, um sujeito que entra num vagão de metrô usando meia melancia tamanho gigante como chapéu. Filmes berrantes, que parecem estar gritando Cheguei!
Querido Companheiro é o exato oposto. É todo feito de sutilezas.
A trama é de uma simplicidade absoluta. Os redatores do Cinéguide, o guia mais conciso que já vi, poderiam fazer uma sinopse assim:
Mulher encontra cachorro na rua e o adota; um ano depois, a família se reúne para o casamento da filha numa casa nas montanhas, e o cachorro se perde.
Em Querido Companheiro, não é tanto a trama, a história que importa. São os personagens, as pessoas. As relações entre elas, as pequenas descobertas que cada uma delas vai fazendo.
Uma das principais qualidades do filme é o elenco extraordinário, finíssimo, afinadíssimo. São cinco atores de imenso talento, nenhum deles propriamente um grande astro, mas todos excelentes, experientes, todos bem passados dos 50 anos – Diane Keaton, Kevin Kline, Dianne Wiest, Richard Jenkins e Sam Shepard –, mais alguns jovens já experientes, igualmente talentosos – Elisabeth Moss, Mark Duplass, Ayelet Zurer.
O roteiro, delicado, sensível a não mais poder, foi escrito a quatro mãos pelo casal Meg e Lawrence Kasdan.
Fazia nove anos que Lawrence Kasdan não dirigia. Seu último filme foi um dos mais fracos deles – O Apanhador de Sonhos/Dreamcatcher, de 2003, baseado em uma história de Stephen King.
Pois ele voltou com um belo filme – uma produção independente, pessoal, intimista. Aos 63 anos (ele é de 1949), fez seu primeiro filme longe dos grandes estúdios, se não estou enganado. “Hollywood não faz mais filmes sobre pessoas, em especial pessoas com mais de 60 anos”, diz ele.
Se Hollywood não faz, o cinema independente pode fazer.
O encontro do cachorro resulta no casamento da moça com o veterinário
Quando a ação começa, Beth (o papel de Diane Keaton, radiante aos 66 anos) está se despedindo da filha mais velha, Ellie (Lindsay Sloane) e do primeiro netinho, no aeroporto. Na volta para casa, numa daquelas autopistas gigantescas, ao lado da filha mais nova, Grace (Elizabeth Moss), Beth vê um cachorro na neve, ao lado da estrada. Param o carro, vão até lá. Sabem que é loucura, mas recolhem o bicho. Levam-no a um veterinário, Sam (Jay Ali), um descendente de indianos simpático e boa pinta. O diagnóstico é de que o bicho não tem nenhuma doença grave – só precisa de bons tratos.
Ao chegar em casa do trabalho, Joseph (o papel de Kevin Kline, 65 anos de idade) se assusta com o cachorro que Beth lava dentro da banheira. Médico bem sucedido, cirurgião especializado em coluna cervical, Joseph nunca gostou muito de cachorro, nunca teve cachorro. Fica combinado que aquilo é temporário, vão achar alguém que queira criar o bicho.
Obviamente, o bicho fica na casa – que passa a receber visitas do veterinário. Beth cria grande afeição pelo cachorro, que recebe o nome óbvio de Freeway, o lugar em que foi encontrado, e Grace e o veterinário Sam criam grande afeição um pelo outro. Passa a fazer parte da rotina de Joseph, cirurgião ocupadíssimo, dar umas passeadas com Freeway – ele, que jamais tinha pensado em ter um cachorro na vida.
Corta, pulamos para dali a um ano, e toda a família de Joseph e Beth e dos indianos pais de Sam estão reunidos na bela casa do primeiro casal nas Montanhas Rochosas para o casamento de Grace e Sam.
Uma bela, festiva cerimônia. Grace e Sam vão para a lua-de-mel em Bora Bora, Ellie e o netinho voltam para casa, os convidados voltam para casa. Ficam ali, na gostosíssima casa de montanha, num lugar especialmente belo, além de Joseph e Beth, apenas Penny, Russell, Bryan e Carmen.
Penny (o papel de Dianne Wiest, 64 anos de idade) é irmã de Joseph, e Bryan (Mark Duplass) é filho dela; o tio pagou seus estudos, ele se formou em Medicina e trabalha no mesmo hospital que Joseph.
O pai de Bryan abandonou mulher e filho muito tempo atrás e sumiu no mundo, e Penny pelo jeito colecionou uma fileira de namorados. O mais recente deles é Russell (o papel de Richard Jenkins, 65 anos de idade), um sujeito que nunca foi muito estável profissionalmente, e está pensando agora em abrir um bar, um pub irlandês, em Omaha, Nebraska, onde ele e Penny vivem.
Nem Joseph, nem Beth, nem Bryan vão muito com a cara do novo namorado de Penny. Em parte por puro preconceito social – pelo fato de Russell não ter profissão definida, trabalho firme, muito dinheiro no banco. Em parte também porque temem que a aventura de abrir um bar possa acabar com as economias de Penny.
E, finalmente, Carmen é a empregada que cuida da casa da montanha do casal bem de vida. Carmen é interpretada por Ayelet Zurer (na foto acima), atriz de uma beleza fantástica e diferente, um rosto forte, nada convencional. Nascida em Tel Aviv, em 1969, começou no cinema israelense, e já trabalhou em vários filmes importantes ou interessantes, como Munique, de Steven Spielberg (2005), Ponto de Vista (2008) e Anjos e Demônios (2009).
Aquelas pessoas todas vão se conhecer melhor – umas às outras e a si próprias
Antes de ir embora para a lua-de-mel, Grace pede ao pai que redobre as atenções com Beth. A mãe agora ficará sem as duas filhas, e só poderá contar com o marido. Joseph promete à filha que tomará muito cuidado.
A essa altura, já sabemos que Beth se ressente do fato de o marido trabalhar demais, ficar pouco com ela, dar pouca atenção a ela.
E, no primeiro dia em que estão sozinhos ali, só a família e a empregada antiga e de confiança, Joseph sai para passear com Freeway; não colocou a coleira no cachorro, e se esqueceu de levar o apito que Beth normalmente usa para chamar o animal.
E aí Freeway foge e desaparece.
Estamos aí com uns 30 minutos de filme.
A procura por Freeway vai proporcionar emoções inesperadas, descobertas, sensações. Aquelas pessoas todas vão se conhecer melhor – umas às outras e a si próprias.
Um realizador singular, fascinante, autor de filmes intimistas, reflexivos
Lawrence Kasdan é um realizador absolutamente singular – e, na minha opinião, um dos mais fascinantes das últimas décadas.
Kasdan – em geral as pessoas não se lembram disso – tem seu nome associado a dois fenômenos de bilheteria, dois dos maiores da segunda metade do século XX: Caçadores da Arca Perdida e Star Wars. Em 1980, aos 31 anos de idade, foi um dos dois autores do roteiro do Episódio V – O Império Contra-Ataca, o segundo filme da trilogia biliardária de George Lucas. E, no ano seguinte, foi o autor do roteiro – baseado em história criada por George Lucas e Philip Kaufman – de Raiders of the Lost Ark, o primeiro filme da série biliardária do Indiana Jones de Steven Spielberg.
Um sujeito que escreveu os roteiros desses dois imensos sucessos poderia perfeitamente virar um escritor de histórias de aventuras para o encantamento de crianças e jovens entre 8 e 80 anos.
Lawrence Kasdan preferiu outro caminho. Escreveu poucos roteiros, dirigiu poucos filmes – vários deles intimistas, pessoais, reflexivos, embora feitos em Hollywood, com bons orçamentos e grandes atores.
Começou genialmente, com Corpos Ardentes/Body Heat (1981), argumento, roteiro e direção dele. William Hurt e Kathleen Turner brilham numa trama misteriosa, cheia de sensualidade, com um clima noir ofegante, opressivo. (Cacete: faz tempo que não vejo Corpos Ardentes. Preciso rever.)
Em O Reencontro/The Big Chill (1983), estabeleceu o formato dos filmes que fazem balanços de uma geração, seus sonhos, suas desilusões: para o enterro de um deles, reúne-se um grupo de amigos. Passam um longo e revelador fim de semana juntos. São belos personagens, interpretados por alguns dos mais talentosos astros de sua geração: William Hurt, Glenn Close, Tom Berenger, Jeff Goldblum, JoBeth Williams, Kevin Kline – mais a então jovenzinha Meg Tilly.
Ficou famosa a história de que o jovem ator que fazia o papel do amigo morto acabou não aparecendo na montagem final do filme. Faria um imenso sucesso nos anos seguinte, o rapaz – Kevin Costner.
Kevin Costner estaria no filme seguinte de Kasdan, Silverado (1985). Um western outonal, Silverado tinha ainda Danny Glover, Scott Glenn e, de novo, Kevin Kline.
Kasdan e Kevin Kline trabalhariam juntos de novo em Te Amarei até te Matar (1990), uma comédia escrachada, na minha opinião o pior filme do grande realizador, e também em Grand Canyon (1991), Surpresas do Coração/French Kiss (1995), deliciosa comédia romântica com Meg Ryan, e agora de novo neste Querido Companheiro.
Lawrence Kasdan dirigiu apenas 11 filmes, entre 1981 e 2012. Em 31 anos, 11 filmes. Ele está mais para ourives, como Paul Simon e Dorival Caymmi, do que para criador incansável, como Woody Allen, Bob Dylan e Paul McCartney.
Um filme sobre amigos aos 30 anos, outro sobre amigos aos 40 e tantos
Foi o jovem ator Mark Duplass (na foto abaixo), que interpreta Bryan, o médico sobrinho de Joseph, que fez uma observação interessantíssima sobre Querido Companheiro, num dos curtos making ofs que acompanham o filme no DVD. Querido Companheiro – disse o rapaz – forma uma espécie de trilogia informal com O Reencontro e Grand Canyon.
Em O Reencontro, temos um grupo de amigos na faixa dos 30 anos. Em Grand Canyon, um grupo de pessoas na faixa dos 40 e tantos, que conversam, como faziam os mais jovens do filme anterior, sobre seus desejos, seus sonhos, suas frustrações. Querido Companheiro reúne um punhado de pessoas na faixa dos 60 anos, que, de alguma maneira, examinam sua vida, suas ações, seu passado, e passam a se conhecer melhor.
Sujeito sensível, esse Mark Duplass. É uma bela observação, essa. De fato, o filme fecha uma espécie de trilogia talvez não planejada, não pensada como tal.
Mark Duplass. Nasceu em New Orleans em 1976 – tinha cinco anos quando Lawrence Kasdan deslumbrou o mundo com Corpos Ardentes. Tem mais de 20 títulos na filmografia – mas nove deles são curta-metragens. Está em A Hora Mais Escura, o filme de 2012 de Katryn Bigelow. Parece ser um ator aplicado, que vê filmes, tenta aprender com eles. Faz um comentário delicioso em um dos making offs: diz que, para ele, foi uma loucura ter a oportunidade de trabalhar neste filme, e estar no mesmo set com atores que ele admira desde sempre: Diane Keaton, Kevin Kline, Dianne Wiest, Richard Jenkins – e, ah, semana que vem chega Sam Shepard.
Uma pequena gema, este filme. Grande Lawrence Kasdan.
Anotação em janeiro de 2013
Querido Companheiro/Darling Companion
De Lawrence Kasdan, EUA, 2012
Com Diane Keaton (Beth), Kevin Kline (Joseph), Dianne Wiest (Penny), Richard Jenkins (Russell), Elisabeth Moss (Grace), Mark Duplass (Bryan), Ayelet Zurer (Carmen), Sam Shepard (xerife Morris), Lindsay Sloane (Ellie), Jay Ali (Sam)
Argumento e roteiro Lawrence e Meg Kasdan
Fotografia Michael McDonough
Música James Newton Howard
Montagem Carol Littleton
Produção Werc Werk Works, Kasdan Pictures, Likely Story. DVD Sony Pictures.
Cor, 104 min.
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Cachorrinho bonitinho (Isso é pleonasmo, claro. TODOS os cachorros são bonitos)!!!
Que bom que você gostou do filme, Sergio! Pensava que tinha sido a única, além do site Decine21. Até no imdb a nota foi severa. Um abraço, S.
É, Stella, gosto é uma coisa muita esquisita, não é? Tenho detestado alguns filmes elogiadíssimos. E alguns que levam cacetadas da crítica me emocionam, como este aqui.
Eis a resenha do By Star Filmes da Stella:
http://bystarfilmes.blogspot.com.br/2013/01/querido-companheiro.html
Bom filme, leve e divertido, o drama não chega a pesar. Só achei meio chata a papagaiada da Carmen, com as visões que não davam em nada; mas ao mesmo tempo achei interessante que o médico tenha se apaixonado por ela, mesmo ela sendo mística, e ele cético, mesmo ele tendo uma profissão de status, e ela não. Para mim esse foi o ponto alto do filme. A atriz é realmente muito bonita, e está muito bem para a idade que tem (ao que parece sem ter recorrido à plástica, ao passo em que muitas que nem chegaram ainda aos 30 já o fizeram).
O fato do marido da Beth trabalhar muito e colocar a profissão à frente da família: quem nunca viu, vivenciou, conhece um caso assim? É o calcanhar de Aquiles de muita gente. Tanto que digo que algumas profissões (dependendo do grau de dedicação) não são conciliáveis com família. Mas as pessoas insistem…
No mais, foi bem legal ver todos esses bons atores acima dos 60 anos reunidos. Não reconheci o Kevin Kline nem o Sam Sheperd, fazia tempo que não via filme com eles. Diane Keaton me agrada, mas Dianne Wiest daqui a pouco não vai mais conseguir abrir os olhos, de tanto botox (para mim ela faz sempre as mesmas personagens. Gosto e não gosto dela, sei lá).
And last but not least: o cachorro é lindo e fofo, e lembra uma cachorra que eu também tirei da rua.
Um fato curioso foi ter visto uma alusão à cidade de Des Moines (Iowa): quando o Russel diz que vai abrir um pub inglês em Omaha porque lá não tem nenhum, e que quem quer comer linguiça com purê de batatas tem que ir até Des Moines.
Teria passado batido o nome da cidade, não fosse o fato de eu ter uma prima que passou um ano lá, fazendo estágio na área de agricultura.
Assisti este filme no domingo,07 deste mês.
Gostei muito, melhor, ótimo filme.
Olha, não sei não, mas para mim aquele lindo cão tem pedigree.
O que eu achei um pouco chatinho foi aquela cena em que a Beth coloca o osso do braço do Joseph no lugar naquela escuridão tôda.
As locações são lindas demais.
Caramba!! como eu gostaria de morar naquela cidadezinha ao pé da montanha. O clima ali deve ser maravilhoso, ao meu gôsto.
O freeway pouco aparece mas para mim,ele foi o “que” do filme.
Ele foi o “causador” da afeição e também do casamento da Grace com o Sam. E, sem dúvida, foi por causa de seu desaparecimento e a tentativa de encontrá-lo, que ocorreram tôdas aquelas situações.
Foi um filme perfeito para o final do domingo.
Abraços, Sergio!!
Esperava tanto da parceira dos astros Keaton / Kline que admiro tanto.
Infelizmente não foi dessa vez…