Meu Passado me Condena / Victim

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Nota: ★★★½

Victim, que no Brasil recebeu o título grotesco de Meu Passado me Condena, é um filme de grande importância histórica. Mas não apenas isso: é uma beleza de filme.

Feito em 1961, pelo diretor inglês Basil Dearden (1911-1971), é um dos primeiros filmes a falar abertamente sobre homossexualidade. Com a impressionante característica de que, na época, homossexualidade era crime na Grã-Bretanha, crime que dava cadeia, e era considerado tão grave – como diz um personagem – quanto assalto com violência.

Para os muito jovens, 1961 pode parecer distante como a idade da pedra lascada. Não é: em termos de História, meio século não é absolutamente nada; 1961 foi outro dia mesmo. No ano seguinte os Beatles estavam lançando seu primeiro disco.

Visto hoje, o filme é, sim, datado. De uma maneira geral, um filme ser datado é defeito. Neste caso específico, é o contrário: vemos, no filme, exatamente a forma com que a sociedade inglesa tratava o homossexualidade naquela época.

É como encontrar, sob uma geleira, um animal pré-histórico inteiramente preservado.

zzvictim2Victim mostra, como se tivesse sido preservado numa cápsula do tempo, todos os preconceitos que havia contra o homossexualidade. E não se está falando de país muçulmano, ou de cultura regida por códigos religiosos estreitos, e sim da Inglaterra, um dos países culturalmente mais desenvolvidos do planeta.

É impressionante, fantástico, incrível como, em meio século, a sociedade avançou na forma de ver o homossexualidade. Pense-se no seguinte: as mulheres levaram milhares de anos para obter o direito de voto, para ter assegurados todos os mesmos direitos dos homens. Ainda há sociedades machistas, e ainda há muita iniquidade, mas já se avançou demais na questão dos gêneros.

Ver que em 1961 homossexualidade era considerado crime grave, sabendo tudo o que se conquistou de avanço, lembrando as paradas gays, a aceitação da união estável, em alguns lugares já também do casamento, é chocante. Chocante de uma forma positiva, é claro.

Não estou dizendo que já atingimos a perfeição, a plenitude. Mas é forçoso admitir – até mesmo o Luiz Mott teria que admitir: avançou-se demais, neste meio século.

O rapaz em fuga liga para o advogado bem sucedido 

Os roteiristas Janet Green e John McCormick e o diretor Dearden contam a história como se fosse um thriller, um caso policial – o que faz todo sentido, porque, afinal, se tratava mesmo de um caso policial.

E até se demora um pouquinho a dizer do que, afinal, trata a história.

Começa com um rapaz que faz serviços burocráticos numa construtora vendo, do alto de um prédio em construção em Londres, a chegada ali de um carro de polícia. O rapaz, Jack Barrett (Peter McEnery), foge correndo do prédio em obras. De um telefone público, liga para seu amigo Eddy (Donald Churchill), que mora na mesma casa de cômodos alugados. Instrui Eddy para pegar um pacote guardado no fundo de seu armário e ir se encontrar com ele em um determinado bar. No momento em que Eddy está saindo da casa, dois policiais estão chegando; pedem para falar com a dona de casa a respeito de um inquilino dela, Jack Barrett.

zzvictim3De outro telefone público, Jack liga para o escritório de Melville Farr (o papel do grande Dirk Bogarde). Veremos que Melville é um advogado extremamente bem sucedido; casou-se com a jovem filha de um juiz, Laura (Sylvia Syms), se deu muito bem na carreira. Está mesmo cotado para ser chamado para um importante cargo no Judiciário.

Melville atende ao telefone, mas apenas diz, bruscamente, que, caso Jack ligue de novo, ele chamará a polícia.

Veremos que Jack havia roubado 2.300 libras da empresa em que trabalhava – e por isso está sendo procurado pela polícia.

Acabará sendo preso, num bar numa cidade não muito distante de Londres, no momento em que tentava destruir o conteúdo do pacote que o amigo Eddy havia lhe levado.

O inspetor que interroga Jack Barrett é educado, polido. Chama-se Harris (John Barrie, ao centro na foto abaixo), e pede a Jack que revele por que motivo roubou aquela pequena fortuna. Foi para pagar a chantagistas?

Jack se recusa a responder. Pouco depois, se mata dentro da cela.

“90% dos casos de chantagem envolvem homossexualidade”

O advogado Melville Farr é chamado à delegacia de polícia. O inspetor Harris mostra o que Jack estava destruindo no momento em que foi preso: um scrapbook, um caderno de recortes com tudo o que a imprensa noticiou a respeito dos importantes casos em que Melville atuou.

O inspetor faz ao figurão as perguntas de praxe sobre como ele e Jack Barrett se conheceram. Estamos com exatos 27 minutos de filme quando se dá este diálogo:

Inspetor Harris – “O senhor tem alguma idéia do que ele estava pagando para manter em segredo?”

Melville Farr: – “Nenhuma idéia.”

Inspetor Harris: – “O senhor sabia, é claro, que ele era homossexual.”

Meville Farr: – “Imaginei que fosse.”

Inspetor Harris: – “Sabia também que 90% dos casos de chantagem envolvem homossexualidade?”

É fundamental que se entenda o contexto, a época 

zzvictim4O espectador não deve ver Victim com os olhos de hoje, como se estivesse vendo um filme feito hoje. Todos os filmes, é claro, precisam ser vistos dentro do contexto, da época em que foram feitos – mas isso, no caso de Victim, é absolutamente essencial.

Victim foi o primeiro filme a contestar as leis até então vigentes que definiam o que chamavam de sodomia como crime. O filme é, clarissimamente, contra a criminalização das relações homossexuais – mas, é claro, foi feito dentro dos padrões que havia na época.

Visto sem que o espectador entenda esse contexto, o filme pode parecer troglodita, vindo diretamente da Idade das Trevas. Os homossexuais do filme não exibem orgulho de sua opção – como vemos há tantos anos nas Paradas de Orgulho Gay. Alguns têm até vergonha dela. Henry, o barbeiro, por exemplo, diz para Melville Farr: “A natureza me pregou uma peça. Você poderia defender a causa. Diga a eles que não há uma cura para o que somos. Certamente não atrás das grades da prisão. Eu me sinto como um criminoso, um fora da lei.”

Numa seqüência em que Melville Farr se encontra com três homossexuais, eles fazem questão de expor que não tentam seduzir os jovens. Que só têm relações entre adultos, por consentimento mútuo.

E o próprio personagem central da história, o advogado Melville Farr, é o que seria visto hoje como um poço de contradições. Havia sido apaixonado por um homem, na juventude – mas não se permitiu relações físicas com ele. Casado com uma mulher jovem, bela, rica, apaixona-se de novo por um homem, o rapaz Jack Barrett, mas de novo não permite que a paixão resulte em contato físico. Luta contra ela, como se fosse uma doença.

O próprio título brasileiro do filme exprime uma visão preconceituosa, pavorosa: Meu Passado me Condena expressa pecado, crime.

“Bogarde deixa de lado sua imagem de ídolo das matinês”

Pauline Kael, a primeira-dama da crítica norte-americana, se recusou a colocar as coisas sob a perspectiva do seu tempo, de seu contexto. “Essa tentativa pioneira de criar a simpatia do público pelos homossexuais e para divulgar as leis inglesas que os colocavam como um perigo é habilidosa, moralista e moderadamente divertida. Estruturalmente, é um thriller esperto sobre uma rede de chantagistas que ataca os homossexuais. Há uma terrível tentativa de separar o ‘amor’ que o herói advogado (Dirk Bogarde) sente por sua esposa (Sylvia Syms) e o desejo físico – presumivelmente uma emoção de categoria mais baixa – que ele uma vez sentiu por um jovem (Peter McEnery), que parece ser mais interessante em todos os sentidos do que a esposa.”

E então Pauline Kael revela o final da trama, coisa que, naturalmente, não vou fazer. E continua: “O filme marcou um ponto de virada na carreira de Bogarde; tendo sido ator por mais de 20 anos, ele estava cansado de interpretar papéis de um jovem charmoso, feliz (‘Eu era a Loretta Young da Inglaterra’, ele disse), e aqui ele interpreta um papel que mostra sua idade e que, naquela época, era um personagem ousado.”

zzvictim5Leonard Maltin dá 3.5 estrelas em 4: “Ótimo thriller com o advogado Bogarde arriscando sua reputação ao tentar confrontar uma quadrilha de chantagistas que assassinou seu antigo amor. Considerado ousado na época pelo tratamento da homossexualidade.”

O Guide des Films de Jean Tulard diz: “Um filme com vocação social que denuncia a legislação inglesa da época sobre homossexualidade. Foi um dos primeiros em que o tema foi abordado tão abertamente, e daí vem o interesse do filme, que além disso é bem feito e tem um bom Dirk Bogarde”.

O maravilhoso livro Cinema Year by Year 1894-2000, que só trata de filmes e fatos importantes, marcantes, diz, sob o título “Temas morais disfarçados de thriller”: “Dirk Bogarde decidiu deixar de lado sua imagem de ídolo das matinês para interpretar um advogado homossexual em Victim, dirigido por Basil Dearden. Ele enfrenta a ruína quando um jovem com quem ele vinha tendo um caso se enforca numa cela de delegacia. Sua morte leva Bogarde a expor uma quadrilha de chantagistas que explora o fato de que a homossexualidade permanecia um crime grave. (…) É um filme corajoso que arranca uma atuação ainda mais corajosa de Bogarde, que finalmente se cansou das comédias e dos filmes de guerra e de época que fez nos dez anos anteriores. Ele recebe ajuda firme de Sylvia Syms como a esposa que tem que enfrentar a vida secreta do marido.”

Dirk Bogarde (1921-1999), 70 filmes no currículo, nove prêmios, quatro outras indicações, cavaleiro do Império Britânico, faria, exatamente dez anos depois, o papel principal de Morte em Veneza, do mestre Luchino Visconti; na adaptação do livro de Thomas Mann, seu personagem, um compositor erudito (levemente inspirado em Gustav Mahler), sente uma atração forte por um jovem adolescente, Tadzio.

Em O Porteiro da Noite, de Liliana Cavanni (1974), interpretaria um guarda de campo de concentração nazista que reencontra uma ex-prisioneira (interpretada por Charlotte Rampling), e estabelece com ela uma relação sado-masoquista.

Só em 1967 a homossexualidade deixou de ser crime na Inglaterra

O IMDb diz que diversos atores recusaram o papel de Melville Farr, e cita especificamente Jack Hawkins, James Mason e Stewart Granger.

zzvictim7Também segundo o IMDb, Victim foi o primeiro filme inglês a usar a palavra “homossexual”. A palavra é falada diversas, diversas vezes ao longo do filme, que traz também – e considero isso ainda mais ousado – a palavra “queer”. “Queer” é uma palavra forte, de clara conotação pejorativa, grosseira, preconceituosa, como veado ou bicha.

A capa do DVD do filme, lançado no Brasil pela Cult Classic DVD, diz que “este filme foi o primeiro a abordar o tema gay explicitamente no cinema”. Aí vai um exagero. Foi um dos primeiros, e certamente, entre os pioneiros, foi o mais aberto e corajoso. Mas em 1960 já havia sido lançado The Trials of Oscar Wilde, no Brasil Os Crimes de Oscar Wilde, em que Peter Finch interpreta o escritor, e mostram-se as cenas de tribunal em que ele foi julgado pelo crime de homossexualidade.

Há outros exemplos, é claro. Em 1959, Billy Wilder havia feito uma referência clara – gostosa, bem humorada – à homossexualidade em Quanto Mais Quente Melhor/Some Like It Hot.

E, apenas um ano depois de Victim, em Tempestade Sobre Washington/Advise & Consent, Otto Preminger mostraria um senador dos Estados Unidos sendo chantageado por ter tido, durante a guerra, um caso homossexual.

É bem verdade que Billy Wilder e Otto Preminger eram realizadores audaciosos, ousados, à frente de seu tempo.

Falta dizer que foi apenas em 1967, no auge do flower power, da contracultura, os Beatles lançando Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, as ruas de Londres tomadas por roupas coloridas e mulheres de minissaias no meio dos ainda renitentes ternos escuros, chapéu coco e guarda-chuva, todo mundo experimentando drogas e numa trepação sem fim, que o Sexual Offences Act descriminalizou o homossexualidade consentido entre homens acima de 21 anos de idade.

Quando se leva isso em consideração, vê-se claramente a importância deste filme corajoso.

Anotação em janeiro de 2013

Meu Passado me Condena/Victim

De Basil Dearden, Inglaterra, 1961.

Com Dirk Bogarde (Melville Farr)

e Sylvia Syms (Laura Farr), Dennis Price (Calloway), Anthony Nicholls (Lord Fullbrook), Peter Copley (Paul Mandrake), Norman Bird (Harold Doe), Peter McEnery (Jack Barrett), Donald Churchill (Eddy Stone), Derren Nesbitt (Sandy Youth), John Barrie (detetive inspetor Harris)

Roteiro Janet Green e John McCormick

Fotografia Otto Heller

Música Philip Green

Montagem John D. Guthridge

Produção Michael Relph, Basil Dearden, Allied Film Makers. DVD Cult Classic.

P&B, 100 min.

***1/2

5 Comentários para “Meu Passado me Condena / Victim”

  1. Sérgio,

    Hoje já não se emprega a palavra homossexualismo que vem de um tempo em que amor/desejo entre dois homens era considerado doença.

    Deve-se falar em homossexualidade e não homossexualismo, depois que a Organização Mundial de Saúde passou a não considerar mais a homossexualidade como uma doença.

    Empregar hoje o termo homossexualismo é equivocado, pois esta palavra carrega o estigma de uma doença que não existe mais.

    E homossexualidade/homossexual remete ao fato de ser uma condição com a qual se nasce. Não é nenhuma opção como muita gente ainda considera. A palavra homossexualismo conduz a esta ideia de opção, que é bastante errônea.

    Quanto a homossexualidade no Cinema, um filme incontornável é “O Celulóide Secreto” (1995) de ROB EPSTEIN E JEFFREY FRIEDMAN, onde se mostra como a homossexualidade foi escamoteada durante anos no Cinema Americano. Este fabuloso Doc faz ao final referência aos primeiros filmes de língua inglesa que trataram abertamente do tema homossexualidade. Um deles é “Meu Passado Condena” ( “Victim”). http://43.mostra.org/br/filme/2018-Celuloide-Secreto

    Abraços,
    Nelson- 25/07/2020

  2. É bem verdade. O termo homossexualismo foi uma das muitas vítimas da praga do politicamente correto.
    Agradeço ao Nelson pelo toque, e passei o pente do polticamente correta pelo meu texto.
    Sérgio

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